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Recibos Verdes do Estado - Aplicação do Acórdão 413/2014 do Tribunal Constitucional
Um Grupo de deputados à Assembleia da República eleitos pelo Partido Socialista pediram a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 33.º, 75.º, 115.º e 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro de 2013, que aprova o Orçamento do Estado para 2014.
ACÓRDÃO N.º 413/2014
Processo n.º 14/2014
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
I - Relatório
1. Pedido formulado no âmbito do processo n.º 14/2014
Um Grupo de deputados à Assembleia da República eleitos pelo Partido Socialista pediram a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 33.º, 75.º, 115.º e 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro de 2013, que aprova o Orçamento do Estado para 2014.
Fundamentam o pedido nos seguintes termos:
«Artigo 33.º da LOE 2014
a) As normas deste preceito violam o direito à retribuição consagrado no artigo 59.º, n.º 1, a), o princípio geral da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 1, e os princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança, ambos ínsitos no princípio do Estado de direito (artigo 2.º).
b) As normas em causa consubstanciam uma restrição do direito constitucional à retribuição, na medida em que, efetuando uma diminuição sensível da contrapartida remuneratória pelo trabalho prestado, constituem uma ablação unilateralmente imposta pelo Estado que afeta sensível e desvantajosamente o acesso individual ao bem constitucionalmente protegido por aquele direito na concretização que lhe foi dada pela lei e pelos contratos em vigor.
c) Nesse sentido, aquela restrição só não seria constitucionalmente censurável se tivesse uma justificação bastante para fazer ceder o bem constitucional e se, para além disso, a medida concreta resultante daquela imposição unilateral respeitasse os princípios constitucionais que condicionam a atuação estatal restritiva dos direitos fundamentais, designadamente os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da proteção da confiança.
d) Quaisquer das razões excludentes da inconstitucionalidade anunciadas pela jurisprudência constitucional não se aplicam às presentes medidas.
e) Apesar de no Relatório que acompanhou a proposta de lei do orçamento para 2014 se reafirmar literalmente o “caráter transitório” das reduções remuneratórias em causa, essa afirmação é puramente retórica, visando ostensivamente uma aparência de conformação aos limites jurídicos traçados pelo Tribunal Constitucional, na medida em que, tanto no texto da proposta de orçamento quanto nas afirmações públicas dos responsáveis governamentais, foi claramente abandonada toda e qualquer delimitação temporal do respetivo alcance.
f) Como qualquer outra norma jurídica com caráter permanente, as presentes reduções remuneratórias, não obstante a obrigatoriedade da sua renovação orçamental, vigorarão até que o legislador entenda alterá-las, inexistindo qualquer determinação, mesmo previsional e indicativa, de um termo para a sua vigência plurianual.
g) Ao impor-se esta medida adicional de sacrifício (“redução remuneratória”) pelo quarto ano consecutivo aos trabalhadores do setor público, em termos agora alargados (a partir dos 675 euro mensais) e agravados (atingindo os 12% a partir dos 2000 euro), ultrapassam-se vários dos limites a que uma “ablação diferencial” desta natureza estará sempre exposta.
h) No quarto ano de aplicação, a medida discriminante já não pode justificar-se, como se justificou inicialmente, pela “eficácia” que assegura em confronto com reformas que pudessem requerer mais tempo.
i) Se as reduções iniciais eram já significativas (não incidindo sobre salários abaixo dos 1500 euro, a que correspondia a taxa dos 3,5%, nem acima dos 10% no escalão mais elevado), estas incidem agora também sobre titulares de vencimentos muito mais baixos, já não longe do salário mínimo, com impacto mais gravoso nas suas vidas (e em concreto, aditando-se aos demais já suportados).
j) Realizando uma ponderação do peso do impacto que estas reduções produzem no grupo afetado, em comparação com os grupos não remunerados através de verbas públicas, e das razões invocadas pelo legislador, semelhante às que o Tribunal Constitucional já realizou nos acórdãos n.º 353/2012 e 187/2013, não pode deixar de se concluir pela violação do princípio da igualdade, como neles se concluiu.
k) Por outro lado, esta é uma imposição violadora do princípio da proporcionalidade.
l) Na sua aplicação a todos os que, pela quarta vez, suportam continuadamente a redução remuneratória, só esta medida - que como se sabe se acrescenta á várias outras, e algumas específicas - levará a que o sacrifício exigido de cada um deles, só a este título, se eleve para um valor compreendido entre 14% a 40% da sua remuneração anual. Este parece um critério quantitativo não eliminável para aferir o alcance duma medida que, admitida como transitória, se pretende que venha mais uma vez acrescentar os seus efeitos sacrificiais aos já por três vezes acumulados.
m) O princípio da proporcionalidade é violado em dois dos seus segmentos: o da necessidade e o da proporcionalidade em sentido estrito.
n) É infringido o segmento da necessidade uma vez que o próprio legislador mostra que há alternativas igualmente eficientes para promover os fins prosseguidos, mas mais lenientes. Na verdade, ao mesmo tempo que efetua reduções salariais significativas promove a redução do esforço fiscal doutros contribuintes. O legislador poderia atingir os efeitos a que se propõe optando por soluções orçamentais que não reduzissem salários a partir de 675 euro mensais e não reduzissem (ou reduzissem menos) a carga fiscal sobre certos contribuintes.
o) Por outro lado, a ponderação do nível de sacrifício imposto (especialmente) a quem aufere salários no limiar inferior da tabela, a partir de 675 euro, e o grau de satisfação dos interesses que se pretende atingir com isso - a consolidação orçamental em poucas décimas - só pode conduzir à conclusão da intolerabilidade daquele sacrifício, tendo em conta os “benefícios” conseguidos, o que se traduz na violação do segmento da proporcionalidade em sentido estrito.
p) Para se aferir da intolerabilidade do sacrifício é relevante ter em conta que, para além das situações específicas antes referidas, no que se refere à generalidade dos trabalhadores agora atingidos as atuais reduções cumulam, para além do enorme aumento de impostos sofrido pela generalidade dos cidadãos, com o registo de diminuição de rendimento e de cortes salariais que já incidiram nos anos anteriores exclusivamente sobre estes trabalhadores; cumulam com a supressão efetiva dos 13.º e 14.º meses no ano de 2012, não obstante a sua declarada inconstitucionalidade; e cumulam com a redução indireta de retribuição em que se traduzem tanto o aumento do horário de trabalho para as 40 horas semanais, como os sucessivos aumentos de contribuição para a ADSE.
q) Para além disso, também a eventual violação do princípio da proteção da confiança por parte das reduções remuneratórias deve ser apreciada segundo um crivo mais apertado do que ocorreu em anteriores apreciações do Tribunal Constitucional.
r) De facto, as reduções remuneratórias incidindo exclusivamente sobre os trabalhadores em funções públicas e das empresas públicas sempre haviam sido perspetivadas como transitórias e com um horizonte temporalmente delimitado e pré-estabelecido. E, na medida em que foi com essa pretensa natureza que não foram ab limine invalidadas pelo Tribunal Constitucional, o Estado fez criar nos cidadãos a convicção reiterada de que a normalidade remuneratória seria reposta no fim do PAEF.
Artigo 75.° da LOE 2014
a) As normas do artigo 75.º da LOE contendem com o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º), o princípio geral da igualdade (artigo 13.º, n.º 1), e o princípio da proporcionalidade, também decorrente do princípio do Estado de direito.
b) As normas do artigo 75.º redefinem o regime de complementos de pensão de trabalhadores de empresas do setor público empresarial, restringindo o seu pagamento aos casos em que os mesmos “sejam integralmente financiados pelas contribuições ou quotizações dos trabalhadores, através de fundos especiais ou outros regimes complementares”.
c) Deve começar por se assinalar que se trata de uma conditio impossibilis, dada a fáctica inexistência de tais fundos em diversos casos, notória e documentável, acoplada, no tocante à delimitação do âmbito de aplicação temporal, por outra condição (n.º 6 do artigo 75.º) cuja verificação é impossível face à esperança de vida dos trabalhadores afetados.
d) O alcance das normas é, pura e simplesmente, a ablação unilateral pelo Estado de montantes negociados e devidos.
e) Aquelas normas surgem na sequência de negociação de reformas antecipadas em empresas, com a respetiva penalização, sendo imediatamente goradas as expetativas de quem se conformou com o que já era uma alteração das suas expetativas: agora, já reformados antecipadamente, os trabalhadores são surpreendidos por uma norma inscrita da LOE 2014 que impede as empresas em causa de cumprirem os compromissos assumidos para com eles.
f) Por exemplo, nos últimos anos o Metropolitano de Lisboa incentivou (certamente seguindo orientações da tutela) os seus trabalhadores com mais de 55 anos a solicitarem a reforma antecipada, assegurando o pagamento do complemento de reforma previsto no Acordo de Empresa, o que levou, só nos anos de 2011 e 2012, à saída, por reforma antecipada, de 96 trabalhadores, que, sem essa garantia, certamente não se teriam reformado, aguardando chegar até ao final da sua carreira contributiva;
g) As normas do artigo 75.° da LOE 2014 contém soluções legislativas manifestamente assistemáticas e desenquadradas de qualquer esforço global de sustentabilidade do sistema público de proteção social e de repartição inter e intrageracional do ónus dessa sustentabilidade, merecendo por isso o mesmo destino que as normas que estiveram em apreciação no acórdão n.º 862/2013 desse Tribunal, isto é, a declaração de inconstitucionalidade por violação do princípio da proteção da confiança.
h) Mas, para além disso, aquelas normas dos artigos 75.º da LOE 2014 violam também o princípio da igualdade. Visivelmente, o legislador isolou categorias ou classes específicas de pensionistas, com apenas algumas dezenas ou poucas centenas de pessoas e introduziu diferenciações que nem sequer parecem ter um fundamento racional, desse modo violando a versão mais elementar do princípio geral da igualdade como proibição do arbítrio.
i) Embora haja várias empresas do setor público empresarial com complementos de pensão atribuídos aos seus reformados e pensionistas, a condição estipulada naquele preceito da apresentação de resultados líquidos negativos restringe a aplicação desta lei ao Metropolitano de Lisboa e à Carris.
j) Designadamente, a norma prevista no n.º 3 do artigo 75.º da LOE 2014 tem consequências demolidoras para os trabalhadores já reformados e pensionistas do Metropolitano de Lisboa e Carris, conduzindo, pelo menos ao nível do Metropolitano de Lisboa, a cortes no valor total bruto da pensão recebida que pode ultrapassar os 60%.
k) Ora, é inequívoco que é o Estado que define os objetivos das empresas do setor público empresarial e que condiciona/aprova a política tarifária, no entendimento, partilhado por todos os governos, de que as tarifas praticadas em redes urbanas de grandes cidades têm sempre uma componente social que não permite cobrir os custos de produção do transporte.
1) Por conseguinte, a existência de resultados líquidos negativos não é imputável aos trabalhadores ou aos ex-trabalhadores, que nada poderiam fazer para que eles fossem ou deixassem de ser negativos. Nesse contexto, escolher como “razão” ou critério da diferenciação entre grupos de pensionistas a circunstância da existência ou não de resultados líquidos negativos da respetiva empresa torna a medida completamente arbitrária e remete-a para o domínio da irracionalidade.
m) As normas do artigo 75.° da LOE 2014 violam também o princípio da proporcionalidade. Desde logo porque, conforme se alegou a propósito do artigo 33.º, o próprio legislador, pelos seus comportamentos noutras zonas da política orçamental, mostra que existe margem para medidas alternativas menos drásticas para estas categorias específicas de beneficiários da proteção social. Consequentemente, há violação do segmento da necessidade.
n) E há também violação do segmento da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que o sacrifício imposto, particularmente quando analisado pelo ângulo individual de cada uma das pessoas atingidas, é de tal forma intenso que não é justificado pela obtenção de ganhos de consolidação orçamental manifestamente escassos.
Artigo 115.º da LOE 2014
a) As normas deste preceito ofendem o princípio da proporcionalidade (artigo 2.º) e o princípio da igualdade (artigo 13.º).
b) Doentes e desempregados constituem categorias, definidas substantivamente em função de fatores dos mais vulnerabilizadores na vida individual e social, a que a Constituição confere uma proteção compensatória (v. artigo 59.º, n.º 1, alínea e) e artigo 63.º, n.º 3), traduzida em prestações pecuniárias específicas, verificados certos requisitos. Ainda que sem se descer agora abaixo do mínimo legal (inferior ao salário mínimo), é constitucionalmente inadmissível gravar, de novo, essas prestações com reduções de 5 e 6 %
c) Embora o ponto já tenha sido objeto de exame, há aspetos novos que se colocam à segunda vez e no específico contexto orçamental em que tal ocorre.
d) Que as prestações que são devidas, em execução do programa constitucional a doentes e desempregados sejam, em dois anos consecutivos, objeto de uma ablação que já atinge os 10 e l2% de redução é algo de constitucionalmente inadmissível.
e) Invertendo a ordem de prioridades da proteção constitucional, atribui-se aqui, de forma repetida, a doentes e desempregados um tratamento “em pior”, num contexto em que se desagravam outros e se reduz o esforço exigido noutras direções. Aliás, não tendo o legislador imposto a todos, a partir do valor mínimo considerado, contribuições adicionais específicas no valor de 10% a l2%, escolher doentes e desempregados para esse efeito ofende o princípio da proporcionalidade em várias das suas dimensões (nomeadamente o da necessidade) e ainda o princípio da igualdade, por aplicação - repetida e duplicada - de tratamento mais gravoso a quem é constitucionalmente merecedor de mais proteção.
Artigo 117.° da LOE 2014
a) As normas do artigo 117.° da LOE contendem com o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º), o princípio geral da igualdade (artigo 13.º, n.º 1), e o princípio da proporcionalidade, também decorrente do princípio do Estado de direito. Há ainda restrição do direito à propriedade, direito com natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, restrição essa que se deve entender como violadora do princípio da proporcionalidade.
b) Opta-se, para essas pensões e para os seus titulares, por um tratamento mais gravoso, a ponto de atingir a desapropriação total - quando aqueles fatores imporiam proteção diferencial (sobre a viuvez e a orfandade, é expressa a orientação protetora da nossa constituição social – cf. artigo 63.º, n.º 4).
c) Prevê-se no artigo 117.° da LOE 2014 a ablação, parcial ou total, de prestações a atribuir ou pagas a título de pensão de sobrevivência. Sendo o primeiro caso em que se atinge este nível sacrificial na esfera da segurança social, é injustificável que seja em situações de viuvez e análogas, e em sede contributiva, que se pretenda consumar esse excesso.
d) Em alguns casos, as normas em causa consubstanciam uma redução retrospetiva, operada através de recálculo, de pensões de sobrevivência já em pagamento, pelo que afetam direitos consolidados na esfera patrimonial dos seus titulares, o que constitui uma afetação gravosa e inédita do direito à pensão protegido constitucionalmente.
e) Na medida em que não haja um interesse público suficientemente forte que justifique uma afetação tão gravosa, tanto do direito à segurança social, quanto da confiança legítima que os cidadãos depositam na continuidade e estabilidade do regime jurídico em vigor e, sobretudo, na estabilidade de direitos já formados, aquela afetação terá de ser configurada como inconstitucional.
f) As normas do artigo 117.° da LOE 2014 contém soluções legislativas manifestamente assistemáticas e desenquadradas de qualquer esforço global de sustentabilidade do sistema público de proteção social e de repartição inter e intrageracional do ónus dessa sustentabilidade, merecendo por isso o mesmo destino que as normas que estiveram em apreciação no acórdão n.º 862/2013 desse Tribunal, isto é, a declaração de inconstitucionalidade por violação do princípio da proteção da confiança.
g) Para além disso, as normas do artigo 117.° da LOE 2014 violam o princípio da igualdade. Com efeito, o legislador isolou categorias ou classes específicas de pensionistas e submeteu-os a tratamento diferenciado cujo impacto, comparando com a situação dos grupos de pensionistas que não são atingidos, se mostra claramente desequilibrado em relação às razões da diferenciação.
h) As normas do artigo 117.° da LOE 2014 violam o princípio da proporcionalidade. Desde logo porque, conforme se alegou a propósito do artigo 33.º da LOE 2014, o próprio legislador, pelos seus comportamentos noutras zonas da política orçamental, mostra que existe margem para medidas alternativas menos drásticas para estas categorias específicas de beneficiários da proteção social. Consequentemente, há violação do segmento da necessidade.
i) E há também violação do segmento da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que o sacrifício imposto, particularmente quando analisado pelo ângulo individual de cada uma das pessoas atingidas, é de tal forma intenso que não é justificado pela obtenção de ganhos de consolidação orçamental manifestamente escassos.
j) Finalmente, na medida em que existe uma parcela das contribuições pagas, identificada e quantificada, expressamente destinada à pensão de sobrevivência, está também em causa uma eventual restrição ilegítima de um direito análogo a um direito, liberdade e garantia.
k) Através das presentes medidas de “reconfiguração”, o Estado apropria-se da contrapartida para a qual, e em nome da qual, recolheu específicas verbas, desviando-as – podendo-o fazer na totalidade – da finalidade anunciada aos que a suportaram, em regra ao longo de uma vida. Há, por isso, uma restrição desproporcionada do direito à propriedade o que se traduz numa violação do artigo 62.º
2. Pedido formulado no âmbito do processo n.º 47/2014
Um Grupo de Deputados à Assembleia da República eleitos pelo PCP, BE e PEV pediram a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 33.º, 75.º, 115.º e 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro de 2013.
Com a indicação de que o pedido se baseia na consideração dos elementos novos, resultantes especificamente da LOE 2014, os quais, em face da anterior jurisprudência do Tribunal, justificarão um novo juízo quanto à conformidade das normas impugnadas com princípios constitucionalmente consagrados, os requerentes invocam os fundamentos seguintes:
«Da inconstitucionalidade do artigo 33.°
1. O artigo 33.° da LOE 2014 determina a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9 (que têm em comum o facto de serem diretamente suportadas por dinheiros públicos), de valor ilíquido superior a 675 euro, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos:
a)Para valores de remunerações superiores a 675 euro e inferiores a 2000 euro, aplica-se uma taxa progressiva que varia entre os 2,5% e os 12%, sobre o valor total das remunerações;
b) 12 % sobre o valor total das remunerações superiores a 2000 euro. 2. Deste modo, a LOE 2014 faz transitar para 2014 os cortes salariais impostos pelas leis orçamentais relativas a 2011, 2012 e 2013, mas agrava-os muito significativamente, não apenas nos montantes dos cortes, que deixam de se situar entre os 3,5% e os 10% para se situar entre os 2,5% e os 12%, mas sobretudo através do alargamento do universo dos abrangidos a quem aufere remunerações ilíquidas entre os 675 euro e os 1500 euro mensais.
3. Por outro lado, neste quarto ano consecutivo de imposição de cortes salariais, em que sobre cada um dos lesados se acumulam os efeitos de múltiplos cortes impostos em anos anteriores, já não podem estas medidas ser encaradas como transitórias, excecionais, indispensáveis e insubstituíveis para obter efeitos imediatos na redução do défice das contas públicas. Estas medidas são já assumidas, muito claramente, como medidas definitivas e destinadas a impor um ajustamento (leia-se, redução substancial) dos níveis de rendimentos dos servidores do Estado.
4. Embora as reduções salariais dos funcionários públicos tenham sido aplicadas pela primeira vez em 2011, ou seja, ainda antes da assinatura do chamado Programa de Assistência Económica e Financeira, foi este documento que passou a servir de referencial justificativo das medidas de austeridade em que se incluem os cortes de salários e de pensões pagos com dinheiros públicos, e que serviu de fundamento ao caráter transitório e irrepetível dessas medidas. Sucede que a vigência desse memorando termina em maio de 2014, mas não se vislumbra qualquer sinal de que termine a aplicação das medidas impostas em seu nome.
5. As decisões do Tribunal Constitucional que concluíram pela não inconstitucionalidade dos cortes salariais impostos pelos Orçamentos do Estado anteriores assentaram em pressupostos muito concretos que já não se verificam em 2014.
6. Ao analisar a LOE 2011, o Acórdão n.º 396/2011, assentou o seu juízo no pressuposto de que a redução então imposta seria uma medida idónea para fazer face à situação de défice orçamental, dando como adquirido que só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata para garantir resultados a curto prazo na consolidação orçamental. Por não haver razões de evidência em sentido contrário, o Tribunal considerou que a medida prevista para 201 1 se incluía ainda dentro dos limites do sacrifício que a transitoriedade e os montantes das reduções ainda salvaguardavam.
7. Como é sabido porém, chamado a decidir sobre idênticos cortes salariais contidos no Orçamento do Estado para 2012, conjugados com a suspensão dos subsídios de férias e de Natal dos cidadãos que auferem remunerações públicas, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 353/2012, considerou que a conjugação entre o congelamento de salários e pensões do setor público vigente desde 2010, os cortes salariais vigentes desde 2011 e o corte dos subsídios de férias e de Natal de 2012 aplicáveis aos trabalhadores e pensionistas do setor público, ultrapassavam de forma evidente os limites do sacrifício a que aludia o Acórdão n.º 396/201 1.
8. Assim, o Tribunal declarou inconstitucional o corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários e pensionistas do setor público, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de igualdade proporcional, consagrado no artigo 13.° da Constituição.
9. Já quanto aos cortes salariais, apesar da proteção do direito dos trabalhadores à remuneração, do cumprimento pontual dos contratos e da proporcionalidade na imposição de sacrifícios aos cidadãos por parte do Estado não serem valores alheios à ordem constitucional portuguesa, foi entendido que a restrição desses direitos fundamentais ainda se continha dentro dos limites impostos pelo respeito do princípio da proporcionalidade.
10. Porém, os cortes salariais impostos na LOE 2014 obrigam a um novo juízo quanto à sua idoneidade ou adequação para atingir os fins visados, quanto à sua exigibilidade, necessidade ou indispensabilidade, e quanto à sua proporcionalidade em sentido estrito, isto é, quanto a saber se tais medidas se incluem na justa medida ou se devem considerar-se excessivas.
11. Importará salientar desde logo que a dimensão do sacrifício imposto pelos cortes salariais, que pode ascender a 12% dos vencimentos, não é menor que a que foi imposta com o corte de um dos subsídios de férias ou de Natal declarado inconstitucional pelo Acórdão n.º 353/2012, sendo certo que um desses subsídios representa uma redução de 7% do vencimento anual.
12. Quanto à questão da idoneidade ou adequação, é hoje manifesto que os cortes salariais não foram um meio idóneo para a redução imediata do défice das contas públicas. Na versão inicial do PAEF, assumiu-se como objetivo que o défice das contas públicas deveria ser de 4,5% no final de 2012, de 3,0% em 2013 e de 2,3% em 2014. Acontece que, não obstante os cortes salariais efetuados (a par de outras medidas assentes nos cortes dos rendimentos do trabalho e das pensões), estes objetivos foram sucessivamente revistos. O objetivo de um défice de 3% para 2013 foi revisto primeiro para 4,5% e depois para 5,5%. O objetivo de 2,3% para 2014 passou para 2,5% e acabou por ser fixado em 4% na LOE 2014.
13. Para além dos cortes salariais não se terem revelado um meio idóneo para a redução do défice das contas públicas, já não é possível invocar a sua indispensabilidade para esse efeito, quando se verificam na LOE 2014 medidas em sentido contrário a esse objetivo. Não é aceitável que os cortes salariais sejam considerados como uma medida indispensável para a redução do défice das contas públicas quando na mesma LOE 2014 os encargos públicos com parcerias público-privadas são agravados em 800 milhões de euro e se preveja uma revisão do regime legal do IRC por forma a desagravar significativamente a carga fiscal sobre as grandes empresas com a consequente perda de receita pública.
14. A questão fundamental que se coloca porém relativamente aos cortes salariais previstos na LOE 2014 é a de saber se não estão largamente ultrapassados os limites do sacrifício a que aludiu o Acórdão n.º 396/2011 e se não se verifica situação idêntica à que justificou a declaração de inconstitucionalidade do corte dos subsídios de férias e de Natal de 2013.
15. Na verdade, os cidadãos que auferem remunerações públicas têm vindo a ser duramente lesados nas suas condições de vida pela sucessiva imposição cumulativa de medidas de austeridade que começam, na perceção, não apenas dos próprios, mas da própria opinião pública, a assumir um caráter persecutório que parece não conhecer limites: cortes salariais em 2011, 2012 e 2013; cortes de subsídios de férias e de Natal em 2012; aumento da carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho, com a redução de escalões, aumento de taxas, supressão de escalões, eliminação de deduções e imposição de sobretaxa de 3,5% em sede de IRS; aumento do IVA e do IMI; congelamento de salários desde há muitos anos; proibição de promoções e de progressões, redução de ajudas de custo e de remuneração por trabalho suplementar; aumento do horário de trabalho para 40 horas semanais; aumento dos descontos para a ADSE, cujo agravamento já foi inclusivamente anunciado.
16. Quando, para além destas medidas, se alargam os cortes salariais de modo a abranger trabalhadores que auferem salários mensais ilíquidos no montante de 675 euro, estão ultrapassados todos os limites constitucionalmente admissíveis. Estes cortes incidem sobre rendimentos de tal modo exíguos que violam claramente o princípio constitucional da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais.
17. O Acórdão n.º 353/2012, referindo-se aos pensionistas e aos trabalhadores da função pública com rendimentos ilíquidos situados entre os 600 e os 1100 euro mensais, considerou estar perante um universo em que a exiguidade dos rendimentos já impe tais provações que a exigência de um sacrifício adicional, como seja a sua redução, tem um peso excessivamente gravoso.
18. Com efeito, não concebem os requerentes que se possa entender que cortar remunerações a trabalhadores que auferem vencimentos líquidos inferiores a 600 euro mensais não configure uma restrição excessiva do direito consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.° da Constituição à retribuição do trabalho de forma a garantir uma existência condigna.
19. É que, como afirmou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 396/2011, se as circunstâncias de verdadeira excecionalidade que levaram Portugal a solicitar ajuda financeira internacional não se encontra[va]m superadas e por isso, se justifica[v]am, neste contexto das medidas de consolidação orçamental introduzidas, não se ignora também que estas mesmas medidas não podem deixar de ser aferidas à luz dos princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança que, em qualquer Estado de Direito, sustentam as relações entre o Estado e os cidadãos.
20. Acresce ainda que só por mero artificio se pode considerar em 2014 que tais medidas têm caráter temporário. Mesmo admitindo que a plurianualidade das medidas inscritas na LOE não lhes confere a natureza de cavaleiros orçamentais, dado que a sua renovação fica sempre dependente da LOE para cada ano subsequente, há que aferir se as normas em causa, na medida em que ferem direitos fundamentais, são excecionais e transitórias ou se pretendem assumir um caráter definitivo. Esta questão é decisiva, na medida em que dela pode depender o juízo quanto à conformidade constitucional dessas normas.
21. O juízo de não inconstitucionalidade dos cortes salariais assentava na sua temporalidade com parâmetros bem definidos. Tratava-se de atingir, por via dessas medidas, até 2013, os objetivos de redução do défice assumidos no PAEF. Acontece que na LOE 2014 desapareceu qualquer referência a esses limites e parâmetros. O ano de 2013 já passou sem que os supostos objetivos tenham sido assumidos; o PAEF termina em maio de 2014 sem que os cortes salariais sejam limitados em função da cessação desse Programa. Não existe pois na LOE 2014 nenhum elemento juridicamente vinculante do caráter transitório dos cortes efetuados, o que obriga, no entender dos requerentes, a rever o juízo de constitucionalidade que teve lugar em anos anteriores quanto à sua natureza transitória.
22. Entendem pois os requerentes, em conclusão, que o artigo 33.° da LOE 2014 restringe o direito à retribuição do trabalho (artigo 59.°, n.º 1, a) da Constituição) em violação do princípio da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional consagrado no artigo 13.°.
Da inconstitucionalidade do artigo 75.°
23. O artigo 75.° da LOE 2014 impõe que nas empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados apenas seja permitido o pagamento de complementos às pensões atribuídas pelo Sistema Previdencial da Segurança Social, pela CGA ou por outro sistema de proteção social, nos casos em que aqueles complementos sejam integralmente financiados pelas contribuições ou quotizações dos trabalhadores, através de fundos especiais ou outros regimes complementares. Tal disposição aplica-se (nos termos do n.º 2 desse artigo) ao pagamento de complementos de pensão aos trabalhadores no ativo e aos antigos trabalhadores aposentados, reformados e demais pensionistas.
25. O princípio da proteção da confiança como exigência indeclinável do princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.° da Constituição tem sido densificado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional em termos que não deixam dúvidas quanto à inconstitucionalidade do artigo 75.° da LOE 2014.
26. O Acórdão n.º 287/90, citado em diversos acórdãos posteriores (v.g. Acórdãos n.º 396/2011 e n.º 862/2013), clarifica os dois critérios conformadores da inadmissibilidade de medidas legítimas à luz de tal princípio: a afetação de expetativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas não possam contar, e ainda quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes.
27. E mais adiante, citando jurisprudência firmada em diversos Acórdãos, o Acórdão n.º 396/2011 conclui que para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança necessário em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados expectativas de continuidade; depois, devem tais expetativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
28. Vejamos então: os beneficiários dos complementos de pensão que serão afetados pela aplicação do artigo 75.° da LOE 2014 são trabalhadores do Metropolitano de Lisboa e da Carris que, ao abrigo do regime legal vigente, negociaram a antecipação das respetivas reformas, com penalizações, tendo como contrapartida os complementos de reforma atribuídos pelas empresas aos respetivos pensionistas.
29. Como é evidente, nenhum trabalhador aceitaria antecipar a sua reforma se tivesse a mínima suspeita de que no seu horizonte de vida alguma medida legislativa pudesse vir a alterar negativamente o quadro legal em que fez assentar as suas expetativas.
30. As expetativas de continuidade eram absolutas; eram legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; e obviamente, todos os trabalhadores nessa situação traçaram os seus planos de vida baseados na convicção da continuidade do comportamento estadual.
31. Resta a questão de saber se é invocável algum interesse público que possa ser considerado prevalecente para afastar neste caso a tutela do proteção da confiança. Não se vislumbra qual possa ser.
32. O número de trabalhadores afetados pelas medidas em apreço não permite que se considere que está aqui em causa o cumprimento dos acordos internacionais que têm servido de justificação às medidas penalizadoras dos rendimentos do trabalho e das pensões, nem assumem qualquer dimensão digna de nota quanto à sustentabilidade da segurança social. Não se trata manifestamente de uma medida idónea, indispensável, ou proporcional.
33. E deve ter-se por uma medida arbitrária e violadora do princípio da igualdade, na medida em que visa penalizar os trabalhadores de empresas públicas de transportes pelos prejuízos de exploração dessas empresas, quando esses prejuízos resultam claramente de uma opção estadual a que os trabalhadores são alheios.
34. Nestes termos, o artigo 75.° da LOE 2014 deve ser declarado inconstitucional por violação do princípio da igualdade (artigo 13.°) e por violação do princípio da proteção da confiança decorrente do Estado de Direito Democrático (artigo 2.°).
35. Segundo o n.º 7 do artigo 75.°, o regime fixado tem natureza imperativa, enquanto se verificarem as condições nele estabelecidas, prevalecendo sobre contratos de trabalho ou instrumentos de regulação coletiva de trabalho e quaisquer outras normas legais, especiais ou excecionais, em contrário, não podendo ser afastado ou modificado pelas mesmas. É assim posto em causa o direito de contratação coletiva (artigo 56.°, n.º 3 da Constituição), na medida em que são revogadas normas livremente acordadas entre as partes e é afastada a possibilidade de negociações futuras sobre a matéria
Da inconstitucionalidade do artigo 115.°
36. O artigo 115.° da LOE 2014 estabelece que as prestações do sistema previdencial concedidas no âmbito das eventualidades de doença e desemprego são sujeitas a uma contribuição nos seguintes termos:
a) 5% sobre o montante dos subsídios concedidos no âmbito da eventualidade de doença;
b) 6% sobre o montante dos subsídios de natureza previdencial concedidos no âmbito da eventualidade de desemprego.
A aplicação deste regime não prejudica, em qualquer caso, a garantia do valor mínimo das prestações, nos termos previstos nos respetivos regimes jurídicos.
37. Esta cláusula de salvaguarda do valor mínimo das prestações, destinada a contornar a declaração de inconstitucionalidade do corte dos subsídios de doença e de desemprego, não toma esta medida, salvo melhor opinião, conforme à Constituição.
38. No Acórdão n.º 187/2013, precisamente sobre estas medidas, o Tribunal Constitucional entendeu que uma tal opção legislativa é de todo desrazoável, quando é certo que ela atinge os beneficiários que se encontram em situação de maior vulnerabilidade por não disporem de condições para obterem rendimentos do trabalho para fazer face às necessidades vitais do seu agregado familiar e abrange as prestações sociais que precisamente revestem uma função sucedânea da remuneração salarial, de que o trabalhador se viu privado, e que era suposto corresponderem no limite ao mínimo de assistência material que se encontrava já legalmente garantido.
39. Importa não esquecer que os beneficiários destas prestações já viram os seus rendimentos substancialmente reduzidos em função da situação de doença ou de desemprego em que involuntariamente se encontram. O valor do subsídio de desemprego corresponde a 65% da remuneração média, não podendo ultrapassar o valor de 2,5 IAS, e é reduzido em 10% ao fim de seis meses (redução que já atinge hoje a maioria dos desempregados devido ao peso relativo do desemprego de longa duração); e o valor do subsídio de doença oscila entre os 55% e os 75% da remuneração média, conforme a duração da incapacidade para o trabalho, sendo de notar que em situação de doença os encargos tendem a aumentar.
40. Não é admissível que cidadãos que se encontram em situação de falta ou de diminuição de meios de subsistência e que por isso são credores de proteção social (artigo 63.°, n.º 3 da Constituição) vejam os seus meios de subsistência ainda mais reduzidos por um encargo para o qual não se apresenta justificação.
41. A restrição do direito à segurança social nestes casos só seria constitucionalmente justificável se se vislumbrasse um interesse geral protegido que devesse prevalecer sobre os direitos individuais sacrificados. E não se vislumbra.
42. Os cortes de 5% e de 6% respetivamente sobre os subsídios de desemprego e de doença não são manifestamente um meio idóneo para resolver ou minorar significativamente eventuais problemas de sustentabilidade da segurança social, e quando representam um sacrifício adicional para quem já se encontra numa situação de particular fragilidade, entram no domínio da desproporcionalidade, por inadmissibilidade e injustificação.
43. Entendem por isso os requerentes que o artigo 115.° da LOE 2014 é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade decorrente do Estado do Direito Democrático (artigo 2.° da Constituição)
Da inconstitucionalidade do artigo 117.°
44. O artigo 117.° da LOE 2014 reduz as pensões de sobrevivência atribuídas aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente ou beneficiários do regime geral de segurança social que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a 2000 euro, resultando mesmo em alguns casos na supressão total da pensão de sobrevivência.
45. As normas em acusa configuram uma redução retrospetiva de pensões já em pagamento, afetando direitos já consolidados na esfera patrimonial dos seus titulares, sendo que estes se encontram numa situação (viuvez ou orfandade) credora de proteção nos termos do n.º 3 do artigo 63.° da Constituição.
46. Acresce que as pensões de sobrevivência atribuídas no âmbito do sistema de proteção social dos trabalhadores da administração pública são prestações do sistema contributivo integradas na proteção da eventualidade morte e destinam-se a compensar os seus beneficiários da perda de rendimentos determinada pelo falecimento de um familiar. Trata-se portanto de uma pensão que é formada pelos trabalhadores, através de contribuições efetuadas pelos seus salários, na expetativa de que, depois da sua morte, os seus familiares terão direito a uma determinada prestação.
47. A redução do valor das prestações atribuídas no âmbito de sistemas contributivos, seja qual for o seu valor, corresponde a uma violação da relação jurídica de segurança social estabelecida entre o Estado e o cidadão beneficiário, tanto mais grave neste caso, porquanto se trata da quebra de um compromisso estabelecido com um cidadão entretanto falecido o que obviamente já não poderá formar outros direitos à luz de novas regras.
48. Enquanto solução legislativa desenquadrada de qualquer lógica de sustentabilidade global do sistema de segurança social e ao incidir sobre uma categoria isolada de pensionistas, o artigo 117.º da LOE 2014 incorre no vício de inconstitucionalidade semelhante ao que foi declarado no Acórdão n.º 862/2013 que declarou inconstitucional o Decreto da Assembleia da República n.º 187/XII sobre mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático plasmado no artigo 2.° da Constituição.
3. Pedido formulado no âmbito do Processo n.º 137/2014
O Provedor de Justiça pede a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante da alínea r) do n.º 9 do artigo 33.º, na parte aplicável aos trabalhadores de empresas de capitais maioritariamente públicos, e dos n.ºs 1, 5, e 6 do artigo 117.° da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos:
1.º O artigo 33.° da L0E2014 mantém para o ano em curso a redução, inaugurada em 2011, das remunerações daqueles que exerçam funções no setor público, ocorrendo, ainda assim, uma sua configuração em novos moldes, refletida em modificações substantivas das regras aplicáveis nos precedentes exercícios orçamentais, em virtude não só da ampliação do universo de sujeitos abrangidos pela medida (por força do acréscimo da base de incidência), como também da elevação dos coeficientes médio e máximo de redução.
2.° Estando pendentes iniciativas que têm em vista a declaração de inconstitucionalidade in totum de tal solução legal, cabe ao Provedor de Justiça, neste exato contexto, formular um pedido subsidiário, prevenindo a possibilidade de aquelas iniciativas não merecerem o respaldo do Tribunal Constitucional.
3.°Julga-se assim ser de destacar, de entre as várias situações funcionais abarcadas no âmbito da redução remuneratória em apreço, aquela cuja previsão se explicita na alínea r), do n.º 9, do citado artigo 33.º, pelas razões que passo a densificar.
4.º Com efeito, entre outros destinatários da medida de redução remuneratória em causa e por força do disposto no normativo aqui questionado, esta aplica-se igualmente aos «trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o setor empresarial regional e municipal».
5.º Neste horizonte, a apreciação de desconformidade constitucional da disposição citada atém-se na inclusão, no âmbito subjetivo de incidência da medida, dos trabalhadores de empresas do setor público de capitais maioritariamente públicos, confluindo parceiros privados na formação do restante capital.
6.° Concretizando, tem-se especificamente em vista a situação dos trabalhadores integrados naquele lastro empresarial abrangido na previsão da norma questionada, em que há associação de capitais públicos e privados, sendo que os poderes públicos detêm a maioria do capital.
7.º Ante este círculo assim circunscrito e na ausência de norma que determine a entrega, por parte das entidades processadoras das respetivas remunerações das quantias correspondentes às reduções remuneratórias daqueles trabalhadores nos cofres públicos, por exemplo em termos análogos aos que estabelece o n.º 10 do mesmo artigo 33.º, considero estar violado, na presente situação, o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso que adensa e densifica o princípio do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição).
8.º Efetivamente, conforme pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2001, publicado no Diário da República, II série, de 26 de junho de 2001, «o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito. Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projetada ação aos fins pretendidos, e não configurar as medi- das que tomam como desnecessária ou excessivamente restritivas.»
9.° Sendo indubitável a diferenciação da vinculação ao princípio da proporcionalidade por parte do Estado-legislador e do Estado-administrador, com reflexos no alcance do seu controlo jurisdicional, nestas duas distintas esferas do exercício do poder público, e sempre com amparo no citado aresto do Tribunal Constitucional, «[n]ão pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da atividade administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da proporcionalidade cobra no controlo da atividade do legislador um dos seus significados mais importantes.»
10.º Neste enquadramento, o princípio da proporcionalidade impõe que a solução normativa se revele «como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei», assim como medida necessária, «porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos» para os direitos dos cidadãos, e não surja ainda como uma medida «desproporcionada[...], excessiva[...], em relação aos fins obtidos», situando-se em um patamar de justa medida (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pág. 392-393).
11.º Do exposto sobressaem já as três dimensões que determinam e balizam o princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de conformidade ou adequação, necessidade ou exigibilidade e, ainda, de justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito.
12.º No tocante especificamente à norma vertida na alínea r), do n.º 9, do artigo 33.º da L0E2014, com a demarcação acima explicitada, entende-se desrespeitado o princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 2.° da Lei Fundamental, na vertente cimeira da adequação da medida legislativa em causa, de sentido indubitavelmente ablativo, à prossecução do seu escopo.
13.º A afirmação antecipada procede da indagação dos objetivos prosseguidos pela medida contida no citado artigo 33.º e pela inclusão, na respetiva esfera de eficácia subjetiva, dos trabalhadores de empresas de capitais maioritariamente públicos, tal como esses fins foram expressamente assumidos e divulgados no âmbito do procedi- mento legislativo que culminou com a publicação da L0E2014.
14.º Subsequente e cumulativamente, procede de uma apreciação de manifesta incompatibilidade da solução normativa que flui da alínea r), do n.º 9, do artigo 33.º da L0E2014, na parte relevante, com a finalidade perseguida pelo legislador. Vejamos.
15.º Não se mostra complexo prefigurar a medida legislativa de redução das remunerações, aqui em causa, como dirigida, em um quadro de esforço de consolidação orçamental, a uma finalidade contabilística de redução da despesa pública.
16.º Efetivamente, pode ler-se no Relatório que acompanhou a Proposta de lei relativa ao 0E2014 (in: Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 11, 2.º suplemento, de 15 de outubro de 2013; de agora em diante, Relatório do 0E2014) ser «necessário prosseguir o ajustamento concedendo a prioridade ao lado da despesa (...). É precisamente neste contexto que se situa o ajustamento da medida de redução das remunerações de todos os trabalhadores das Administrações Públicas e do Setor Empresarial do Estado» (pág. 31).
17.º A esta luz, afirmada inequivocamente do lado da despesa, não pode racionalmente compreender-se como adequada uma medida do legislador que, atingindo trabalhadores de empresas de capitais maioritariamente públicos e sem que esteja determinada a entrega nos cofres públicos dos montantes correspondentes às reduções remuneratórias que atingem aqueles trabalhadores, se revela apta, em absoluto contraste com o seu afirmado desiderato, a gerar distribuição, na proporção devida, de dividendos ou outras vantagens patrimoniais pelos parceiros privados na mesma empresa, detentores do capital remanescente, frustrando-se, na medida equivalente, o escopo de redução da despesa pública a que deve vir integralmente dirigido o esforço que o legislador também fez recair sobre este específico círculo de trabalhadores.
18.º Vale por dizer: a supressão parcial da remuneração destes trabalhadores não satisfaz integralmente fins públicos de alívio da despesa pública mas igualmente permite considerar verificadas vantagens diretas e quantificáveis para entidades privadas.
19.º No incomprimível imperativo de afirmação de um direito materialmente justo, que a radicação do princípio da proporcionalidade indubitavelmente condensa, apresenta-se assim como manifestamente irrazoável uma medida de ablação remuneratória que em sobrecarga dos referidos trabalhadores não serve in totum, como a razão necessariamente o impõe, o fim de consolidação orçamental do lado da despesa pública, revelando-se em uma vantagem patrimonial para as entidades privadas cotitulares do capital social, no que pode ser concebido, verdadeiramente, como uma espécie de enriquecimento sem causa destas últimas, inaceitável em um Estado de Direito.
20.° Neste patamar de compreensão, ante a relação medida-objetivo em debate, não se antevê, conforme já referido, complexidade na avaliação da realidade que subjaz à opção legislativa em presença, sendo manifesta a radicação, no presente caso, de uma medida legislativa de contenção da despesa pública.
21.º Nesse sentido e na situação específica vertente, os efeitos da norma em causa extravasam o proclamado objetivo, sendo, desse modo, contraditórios com o escopo definido, em uma solução normativa que gera tanto mais perplexidade quanto é certo, neste nosso tempo, o esforço que impende ante a obrigação de consolidação orçamental, sendo incompreensível que uma medida consignada a esse efeito não prossiga integralmente o seu fim.
22.° Para tanto, repete-se, em uma suposição de legitimidade a montante, que aqui não compete debater, da redução remuneratória per se, bastaria a conformação em termos normativamente adequados que salvaguardasse a entrega, na sua integralidade, dos montantes correspondentes à diminuição salarial sofrida pelos trabalhadores em causa.
23.º Por outro lado, não se perde de vista que, como é também destacado pelo Tribunal Constitucional (vejam-se os Acórdãos n.ºs 396/2011, 353/2012 e 187/2013, publicados no Diário da República, respetivamente, na II série, de 17 de outubro de 2011, e na I série, de 20 de julho de 2012 e de 22 de abril de 2013), o fator determinante na aplicação da medida de redução remuneratória – justificada, em um contexto de excecionalidade de gestão financeira dos recursos públicos, por imperativo do interesse público de garantir a sustentabilidade das finanças públicas mediante a redução da despesa pública — é a circunstância de estarem em causa remunerações pagas por dinheiros públicos a trabalhadores que se inscrevem em todas as áreas da Administração Pública.
24.º Adensando este posicionamento da jurisprudência constitucional, embora não tenha sido analisada especificamente a conformidade constitucional da redução remuneratória quando aplicada também a categorias específicas de trabalhadores que não se inscrevem na Administração Pública no seu conceito mais estrito, o Tribunal Constitucional, nos fundamentos que aduziu logo no Acórdão n.º 396/2011, considerou em bloco a categoria dos que recebem por verbas públicas.
25.º Este entendimento densifica a compreensão de que nos situamos, ante a solução normativa questionada, em uma lógica de estratégia de consolidação orçamental, não sendo racionalmente admissível que uma medida, como aquela dirigida aos trabalhadores de empresas de capitais maioritariamente públicos, extravase a referida lógica financeira.
26.° Nesse sentido, pode afirmar-se existir erro manifesto de apreciação do legislador na sua adoção, pela sua não inteira correspondência com o fim perspetivado e que justificou a determinação legislativa de reduções remuneratórias.
27.° Ora, como afirmou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 187/2001, anterior mente citado, «a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos (...).»
28.° Valorando, pelos motivos expostos, estar-se perante uma situação de erro manifesto, como as prefiguradas por esse Tribunal na passagem acabada de transcrever, considero que a norma constante da alínea r), do n.º 9, do artigo 33.°, na parte aplicável aos trabalhadores de empresas de capitais maioritariamente públicos, viola o princípio da proporcionalidade, no segmento da adequação, tanto bastando para um juízo positivo de inconstitucionalidade.
[…]
29.º Por força do disposto no artigo 117.° da L0E2014, são fixadas as regras de cálculo das pensões de sobrevivência a atribuir a partir de 1 de janeiro de 2014, bem como as regras de recálculo ou redução das pensões de sobrevivência já atribuídas.
30.º Neste recorte normativo e em linha de harmonia com a delimitação previamente feita a respeito da medida vertida no artigo 33.° da L0E2014, não compete similarmente aqui suscitar a questão da bondade constitucional da introdução de uma condição de recursos nas pensões de sobrevivência abrangidas, nomeadamente ante o princípio da proteção da confiança, matéria sobre a qual esse Tribunal foi já chamado a pronunciar-se no âmbito de processos pendentes.
31.° As regras em apreço aplicam-se nas situações em que os destinatários das determinações normativas em causa aufiram um valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000,00, abrangendo as pensões de sobrevivência a cargo tanto da Caixa Geral de Aposentações (CGA) como do Centro Nacional de Pensões (CNP).
32.° Adensando o legislador o sentido de valor global mensal percebido a título de pensão, para efeitos do disposto no artigo 117.°, cujas normas são objeto do presente pedido, vem determinado no n.º 7 deste preceito o que passo a citar: «considera-se valor global mensal percebido a título de pensão o montante correspondente ao somatório do valor mensal de subvenção mensal vitalícia e subvenção de sobrevivência com todas as pensões de aposentação, reforma e equiparadas, pensões de velhice e invalidez, bem como pensões de sobrevivência, que sejam pagas, ao titular da pensão a atribuir ou a recalcular, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza, institucional, associativa ou empresarial, do seu âmbito territorial, nacional, regional ou municipal, e do grau de independência ou autonomia, incluindo entidades reguladoras, de supervisão ou controlo e caixas de previdência de ordens profissionais, diretamente ou por intermédio de terceiros, designadamente companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões.»
33.º Mais se dispõe no n.º 15 do artigo 117.°, o seguinte: «A aplicação do regime do presente artigo depende de o cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto ser titular de, pelo menos, uma prestação prevista no n.º 7 excluindo pensões de sobrevivência.»
34.º Ante a sucessão das medidas adotadas no âmbito dos últimos exercícios orçamentais, sob a vigência do programa de assistência económica e financeira ao Estado português, as regras contidas no artigo 117.° da LOE2014 consubstanciam uma medida inovatória e constitutiva, que introduz, com efeitos a 1 de janeiro de 2014, uma condição de recursos nas pensões de sobrevivência pagas com dinheiros públicos, a ser valorada na sua atribuição, como determinando o recálculo, em conformidade, das pensões já em pagamento.
35.º Trata-se, por conseguinte, de uma modificação em sentido regressivo, que afeta tanto posições jurídicas já constituídas como em formação dos titulares das pensões visadas, materializada na diminuição do respetivo quantum.
36.° Nos termos da lei orçamental, são destinatários da medida não todos os pensionistas de sobrevivência, mas apenas aqueles que percebem já um determinado montante global mensal a título de pensão – mais concretamente, pelo menos uma das prestações previstas no acima citado n.º 7, excluindo a própria pensão de sobrevivência, conforme flui, por seu turno, do n.º 15 do artigo 117.º, igualmente supra aludido.
37.º De igual modo, admitindo-se, aqui como ali, em um horizonte hipotético, que a medida ablativa agora questionada não suscite um juízo de ilegitimidade constitucional quanto à sua aceitação de princípio e, em identidade de atitude intelectual, percebendo-a tal como normativamente construída e derramada no artigo 117.º da LOE2014, entendo que a mesma não passa incólume à luz de um juízo de conformidade com a Lei Fundamental, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.° da Constituição).
38.º E não cumpre com esse princípio constitucional tanto na dimensão de cálculo das pensões de sobrevivência a atribuir como na de recálculo ou redução das pensões de sobrevivência já atribuídas, pelas razões que passo a densificar.
39.º Assente a ablação legislativamente gizada, de sentido regressivo, em um pressuposto de licitude da aposição de condição de recursos à atribuição ou manutenção do pagamento das pensões de sobrevivência, verifica-se que o círculo de pensionistas de sobrevivência afetados é composto por aqueles que auferem já determinado montante mensal (igual ou superior a € 2000, segundo o limiar fixado na lei) a título de pensão paga por quaisquer entidades públicas.
40.° De outro modo dito, o legislador elegeu como único grupo de cidadãos visados aqueles pensionistas de sobrevivência que percebam rendimentos de pensões a cargo de quaisquer entidades públicas (com as exceções consignadas no n.º 8 do artigo 117.º), isentando do âmbito subjetivo da ablação os pensionistas de sobrevivência que, não sendo titulares de uma das pensões ou prestações relevantes para efeitos da aplicação da medida contestada, aufiram igualmente valor global mensal igual ou superior a € 2000,00 a título de outras fontes de rendimento.
41.º Temos assim, dentro do universo dos pensionistas de sobrevivência, uma diferenciação entre estes pensionistas, com distinção de deveres, uns suportando uma amputação no seu direito à pensão, em virtude de auferirem um valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000,00, que não onera em idêntica medida outros titulares de pensões de sobrevivência a cargo da CGA e do CNP e que preenchem idêntica condição de recursos, pelo simples facto de estes provirem de outra fonte que não as pensões abrangidas para efeitos do cômputo de rendimento mensal relevante para a aplicação da medida vertida no artigo 117.°.
42.º As normas constantes do preceito em causa denotam pois uma desigualdade entre pensionistas de sobrevivência com idêntica condição de recursos, em função do tipo ou natureza dos rendimentos auferidos, sacrificando o legislador exclusivamente os direitos de certos pensionistas de sobrevivência.
43.º Este tratamento diferenciador dentro do próprio universo dos pensionistas de sobrevivência cujas pensões são pagas por dinheiros públicos não se coaduna com o princípio constitucional da igualdade, o qual reclama que, mesmo em uma circunstância de desequilíbrio das contas públicas, as medidas adotadas para lhe fazer face não devem ser assumidas pelo legislador como recaindo, ante um universo de pensionistas de sobrevivência que preenchem idêntica condição de recursos, somente sobre uma parte desses pensionistas, sob pena de um tratamento injustificadamente desigual.
44.º O princípio constitucional da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diferente para as situações de facto desiguais, não proibindo o mesmo princípio, em absoluto, as diferenciações, mas apenas aquelas que se afigurem destituídas de um fundamento razoável, sinonimizando, nesta sua dimensão, a proibição do arbítrio.
45.º Na situação vertente não se vislumbra critério objetivo, constitucionalmente relevante, que possa com racionalidade justificar a diferenciação de tratamento apontada.
46.° Com efeito, a medida questionada pode ser enquadrada, mais genericamente, na necessidade de «garantir a compatibilização do sistema de pensões com a sustentabilidade das finanças públicas» (veja-se o Relatório do 0E2014, pág. 56), contabilizando-se como medida de consolidação orçamental do lado da despesa.
47.º Estando em causa uma medida contabilisticamente entendida como dirigida à redução da despesa pública, afetando as pensões de sobrevivência de determinados pensionistas, não se vislumbra a existência de qualquer diferença justificativa do tratamento desigual de que são objeto, atenta a situação dos demais pensionistas de sobrevivência da CGA e CNP com similares recursos que não a título, desde logo, de pensões ou a título de pensões, outras que não as pagas por entidades públicas, com o sentido que deflui do n.º 7 do artigo 117.º da L0E2014.
48.º Logo, a medida é iníqua, neste confronto da posição de certos pensionistas de sobrevivência com a dos demais pensionistas de sobrevivência em situação materialmente idêntica, com ofensa para o princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio.
49.º Conforme se expressam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (In: Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pág. 339): «A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual. Nesta perspetiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.»
50.º Este entendimento encontra-se, outrossim, bem cimentado no horizonte da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
51.º Com efeito e com amparo na jurisprudência constitucional mais próxima, pode ler- se no Acórdão n.º 187/2013 o seguinte: «De acordo com o sentido reiterado e uniforme da jurisprudência deste Tribunal, só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem (Acórdão n.º 47/2010).»
52.º Mais adiante, no mesmo aresto e com referência à orientação geral do Tribunal Constitucional quanto ao princípio da igualdade, releva ainda a seguinte passagem: «Este princípio, na sua dimensão de proibição do arbítrio, constitui um critério essencia1mente negativo (Acórdão n.º 188/90) que, não eliminando a liberdade de conformação legislativa (...), comete aos tribunais não a faculdade de se substituírem ao legislador, «ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna (do que seria a solução ideal do caso)», mas sim a de «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de se credenciarem racionalmente» (Acórdão n.º 270/09, que remete para os Acórdãos da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983, pág. 120, e do Tribunal Constitucional n.º 750/95).»
53.º A esta luz, o tratamento diferenciado injustificado de que é alvo o círculo de pensionistas de sobrevivência destinatários das medidas legislativas vertidas no artigo 117.º da LOE2O14 configura um caso de flagrante e intolerável desigualdade (na terminologia da abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o alcance do controlo jurisdicional do princípio da igualdade).
54.º Trata-se efetivamente de uma medida legislativa arbitrária que denuncia um estatuto diminuído de determinados pensionistas de sobrevivência ante os demais, acoplando a essa sua condição e unicamente em razão de serem titulares de outras pensões (com o recorte definido no n.º 7 do artigo 117.°) uma obrigação especial perante os encargos públicos, situação que é tanto mais gravosa quanto é certa a imposição constitucional de cobertura pelo sistema de segurança social das situações de maior vulnerabilidade, designadamente, a velhice, a invalidez, a viuvez e a orfandade, bem como a consagração do direito à segurança económica de que são titulares as pessoas idosas (vejam-se o n.º 3 do artigo 63.º e o n.º l do artigo 72.°, da Lei Fundamental).
55.º Com efeito, ante o desenho, no artigo 117.º da LOE2014, do universo de pensionistas de sobrevivência onerados com um encargo suplementar, por conta da medida de ablação, nas condições e termos recortados na lei, das pensões homólogas de que sejam titulares, perfila-se indubitavelmente um tratamento discriminatório dos mesmos, porquanto a condição de recursos introduzida é aferida exclusivamente em atenção a um determinado rendimento mensal a título de pensão, sem que subsista substancial diferença entre a situação daqueles pensionistas de sobrevivência e a dos pensionistas de sobrevivência sem rendimentos de outras pensões pagas por entidades públicas, mas com recursos mensais, a outros títulos, igual ou superior a € 2000.
56.º É deste modo cristalina a ausência de um critério de justiça na moldagem da medida questionada, a qual se centra em um universo dos cidadãos – os pensionistas – reclamando, dentro desse universo, aos pensionistas de sobrevivência com certos rendimentos a título de determinadas pensões, um esforço adicional, a bem de todos.
57.º Ora, o princípio da igualdade vincula o legislador tanto quando este reconhece direitos como quando impõe encargos.
58.º Por outro lado e sendo certo que a diferenciação ocorre em atenção aos efeitos substancialmente desiguais para grupos de pessoas em situação materialmente idêntica, é impertinente, em uma análise de conformidade constitucional sob o horizonte do princípio da igualdade, a circunstância de o legislador ter ou não querido ou sequer prefigurado a possibilidade de tratamento diferenciado, tal como este se revela pela exegese das normas questionadas.
59.º Na situação vertente, mesmo que seja aceite a legitimidade do fim em uma medida de introdução da condição de recursos nas pensões de sobrevivência, a delimitação do âmbito subjetivo da medida revela uma diferenciação de tratamento que não assenta, por seu turno, em uma distinção objetiva de situações.
60.º Sem que se vislumbre fundamento material para a distinção, a medida revela-se outrossim desproporcionada à satisfação do seu objetivo, colocando sobre um universo bem delimitado e circunscrito de pensionistas de sobrevivência, com exclusão de outros pensionistas de sobrevivência, um encargo adicional, especialmente oneroso pelo desvalor manifestado em um patamar de justiça da medida.
61.º É assim indubitável uma carga especialmente coativa sobre aquele universo circunscrito de pensionistas de sobrevivência, a qual decorre da desigualdade substancial dos efeitos da medida legislativa em apreço para grupos de pessoas em situação materialmente idêntica.
62.º Esta quebra da justa medida nas soluções propugnadas ante a introdução de uma condição de recursos nas pensões de sobrevivência é tanto mais grave quanto se denota a ausência de anualidade da medida dirigida à sua redução, pois a mesma, sendo de execução imediata, apresenta-se como tendo sido prefigurada pelo legislador como permanente e definitiva.
63.º O legislador não observou, assim, um dos princípios constitucionais a que está vinculado, a medida legislativa questionada consubstanciando uma solução manifesta- mente injusta, que não salvaguarda o valor fundamental da igualdade.
64.° Socorrendo-me uma vez mais do posicionamento do Tribunal Constitucional, ora tal como patente no Acórdão n.º 862/2013, publicado no Diário da República, I série, de 7 de janeiro de 2014, «apesar de um inequívoco reconhecimento de que o legislador possui liberdade para alterar as condições e requisitos de fruição e cálculo das pensões, mesmo em sentido mais exigente, ele tem de respeitar vários limites constitucionalmente impostos, nomeadamente os que derivam do princípio do Estado de Direito. Deste modo, as alterações que o legislador pretenda levar a cabo têm de se fundar em motivos justificados – designadamente a sustentabilidade financeira do sistema –, não podem afetar o mínimo social, os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, e da proteção da confiança.»
65.° No caso vertente e pelos motivos expostos, as normas em causa são inconstitucionais, justamente, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.
65.º Consequencialmente, as demais normas contidas no mesmo artigo 117.º ficam prejudicadas e devem ser declaradas inconstitucionais na medida em que prossigam reduções estabelecidas pelos n.ºs 1, 5 e 6 do mesmo artigo».
4. Por despacho do Presidente do Tribunal foi ordenada a incorporação de todos os processos e conferida prioridade à sua apreciação e decisão.
Foram apensos por linha uma “Nota”, intitulada “Fundamentos sobre a constitucionalidade da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2014”, acompanhada por sete anexos, enviada pelo Governo.
Elaborado o memorando a que alude o artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional e fixada a orientação do Tribunal, cabe decidir.
II – Fundamentação
Enquadramento preambular e descrição geral das medidas de consolidação orçamental previstas na Lei n.º 83-C/2013
5. A orientação estratégica prevista na Proposta de Orçamento do Estado para 2014 (doravante, Proposta de OE 2014), apresentada pelo Governo à Assembleia da República em 15 de outubro de 2013, prossegue o esforço de consolidação orçamental previsto no programa de ajustamento económico e financeiro (doravante: «Programa») acordado entre o governo português e o FMI, a Comissão Europeia e o BCE, nos termos do qual os limites quantitativos para o défice orçamental em 2012, 2013 e 2014 foram inicialmente fixados em 4,5%, 3,0% e 2,3%, respetivamente.
A Proposta de OE 2014 surge na sequência da sétima avaliação dos progressos feitos pelas autoridades portuguesas na aplicação das medidas acordadas ao abrigo do «Programa», assim como da eficácia e do impacto económico e social dessas medidas, efetuada nos termos do artigo 3.º, n.º 9, da Decisão de Execução 2011/344/UE do Conselho, e na sequência da Decisão de Execução do Conselho, de 9 de outubro de 2012, que altera a Decisão de Execução 2011/344/UE relativa à concessão de assistência financeira da União a Portugal, em que se reviu os limites quantitativos para o défice orçamental, que passaram para 5.5% em 2013 e 4% em 2014 (cfr. Jornal Oficial da União Europeia, série L, nº 118, de 12 de maio de 2010, pág. 1, e n.º 295, de 25 de outubro de 2010, pág. 14)
Segundo o Governo, “esta alteração do limite do défice decorre, essencialmente, da evolução menos favorável do mercado de trabalho e da composição do PIB, persistindo em 2013 a contribuição negativa da procura interna. Ambos os fatores resultam em receitas fiscal e contributiva inferiores ao inicialmente previsto, e no aumento das despesas com prestações sociais, em particular com o subsídio de desemprego” (Relatório do OE 2014, pág. 34).
No pressuposto de que, a “menos de um ano para a conclusão do Programa de Ajustamento Económico”, não só se mantém “a conjuntura de excecionalidade que lhe está subjacente”, como se colocam “desafios sem precedentes nas exigências de consolidação orçamental”, a estratégia seguida na Proposta de OE 2014 visa a construção das “bases da sustentabilidade das finanças públicas” no contexto do “cumprimento das obrigações (…) resultantes dos tratados europeus e os compromissos específicos assumidos perante a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, no quadro do Programa”, enquanto “condições essenciais para o regresso do Estado português ao financiamento nos mercados internacionais” (Relatório OE 2014, págs. 30-31 e 40-41).
De acordo com o Governo, o ajustamento orçamental prosseguido na Proposta de OE 2014 parte da consideração de que “2014 será um ano de transição entre o Programa de Ajustamento Económico e o novo enquadramento orçamental a que estão sujeitos os países da União Europeia e, mais especificamente, os países da área do euro”, em particular o que resulta do “Pacto de Estabilidade e Crescimento, na sua vertente corretiva”, que prevê a abertura de “um procedimento por défice excessivo (…) se o défice orçamental exceder 3% do PIB e/ou o rácio da dívida exceder 60% do PIB (valor de referência) ou não apresentar uma diminuição significativa, a um ritmo satisfatório”, isto é, “um vigésimo por ano, em média de 3 anos, para o valor de referência” (Relatório OE 2014, pág. 38).
Assumindo que a redução do défice orçamental de 5,8%, estimado para 2013, para 4,0% em 2014 exige, em função da conjuntura prevista, a “tomada de medidas com um impacto equivalente a 2,3% do PIB”, o Governo recusou a possibilidade de tal ajustamento ocorrer “através de aumento generalizado da carga fiscal” por considerar que o mesmo teria “custos económicos e sociais excessivos difíceis de comportar”, optando por focar o esforço orçamental “na redução de despesa pública” no âmbito do “processo de revisão estrutural da despesa” (Relatório OE 2014, págs. 39, 42 e 45).
Assim, tendo em vista o abaixamento do “défice orçamental nominal (…) de 5,5% para 4%” e a concomitante necessidade de execução de medidas de consolidação orçamental no valor global de 3.901 milhões de euro, a Proposta de OE 2014 contempla um conjunto de “medidas permanentes” no valor de 3.718 milhões de euro, sendo 3.184 milhões pelo lado da redução da despesa e 534 milhões pelo lado do aumento da receita (Relatório OE 2014, pág. 45).
De acordo com a prioridade orçamental concedida à diminuição da despesa pública, as medidas de redução dos encargos previstas para 2014 representam 86% do esforço de consolidação e equivalem a 1,9% do PIB, sendo complementadas pelas medidas previstas do lado da receita, que representam 14% daquele esforço, equivalendo a 0,3% do PIB (Relatório OE 2014, págs. 45-47).
6. De entre as “medidas permanentes” de redução da despesa previstas na Proposta de OE 2014, destacam-se, pelo seu maior impacto orçamental, o conjunto das medidas relativas às despesas com o pessoal e o conjunto das medidas respeitantes às prestações sociais (Relatório OE 2014, págs. 46-47).
As medidas relativas às despesas com o pessoal substituem as “medidas de caráter transitório que vigoram desde o exercício orçamental de 2011” e inserem-se “no seu natural desenvolvimento”, tendo em vista alcançar os objetivos de consolidação” através da prioridade concedida ao “lado da despesa. Têm por objetivo prosseguir o esforço de “ajustamento das despesas com o pessoal” – as quais representaram, em 2013, 22% da despesa pública total, valor equivalente a quase 11% do PIB” – e destinam-se a promover um “princípio global de equidade entre os trabalhadores do setor público e os do setor privado”. Globalmente, as medidas de redução das despesas com o pessoal representam 1.320 milhões de euro, valor correspondente a 0,8% do PIB (Relatório OE 2014, págs. 43 e 47-48).
Entre as medidas destinadas à redução das despesas com o pessoal, destacam-se, pelo seu maior impacto orçamental, as seguintes:
a) Medidas relativas à alteração da política de rendimentos, contabilizadas em 643 milhões de euro, valor que representa 0,4% do PIB, modeladas de acordo com o objetivo de “dirimir uma inadequada política de rendimentos na Administração Pública”, corrigindo o “padrão de iniquidade entre o público e o privado” resultante do facto de existir “no setor público (…) um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade” e de serem aí tendencialmente inferiores “as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência”. Inscrevem-se no âmbito da “reforma da Administração Pública”, dando resposta à necessidade de “melhorar, dentro da margem financeira possível, a competitividade das remunerações públicas do Estado relativamente a alguns grupos profissionais prioritários e ajustar para os níveis de mercado a remuneração de outros grupos, relativamente aos quais o Estado pagará, porventura, acima do que é a prática no privado” e consistem na aplicação de uma “redução progressiva entre 2,5% e 12%, com caráter transitório, às remunerações mensais superiores a € 600 de todos os trabalhadores das Administrações Públicas e do Setor Empresarial do Estado (SEE), bem como dos titulares de cargos políticos e outros altos cargos públicos”. Substituem a “redução de caráter transitório entre 3,5% e 10% para rendimentos mensais acima de € 1500 introduzida pelo Orçamento do Estado para 2011 (e mantidas desde 1 de janeiro de 2011)”, que “concentrava os cortes em apenas cerca de 50% dos trabalhadores”, e visam assegurar “que o esforço de contenção é melhor distribuído por um maior grupo de trabalhadores”, protegendo “os verdadeiramente com menos recursos (abaixo dos € 600)”, que correspondem a “cerca de 10% dos funcionários públicos”. São acompanhadas da manutenção das medidas introduzidas pelos Orçamentos de Estado de 2011, 2012 e 2013, que, como regra geral, preveem: i) a proibição de quaisquer valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões; ii) a proibição de atribuição de prémios de gestão aos gestores de empresas públicas, entidades reguladoras e institutos públicos (Relatório OE 2014, págs. 32, 47 e 49-50).
b) Redução do número de efetivos, através da manutenção para 2014 do objetivo de uma redução anual mínima de 2% no número de trabalhadores das Administrações Públicas (central, local e regional), designadamente por aposentação, e aplicação do horário semanal de trabalho de 40 horas com o objetivo, entre outros, de reduzir os encargos de funcionamento dos serviços, designadamente com o pagamento de horas extraordinárias. A estas medidas estima-se corresponder um impacto de 153 milhões de euro, correspondente a 0,1% do PIB (Relatório OE 2014, págs. 47 e 51-52).
c) Execução de programas de rescisões por mútuo acordo, a que corresponderá uma poupança orçamental estrutural de 102 milhões de euro, correspondente a 0,1% do PIB (Relatório OE 2014, págs. 47 e 52).
d) Utilização do sistema de requalificação de trabalhadores, através de proposta de Lei sobre a Requalificação que proceda à adequação do Decreto n.º 117/XII ao decidido pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 472/2013, estimando-se com esta medida um impacto de redução da despesa em 59 milhões de euro (Relatório OE 2014, págs. 47 e 53).
7. As medidas relativas às prestações sociais, representam uma poupança estimada em 891 milhões de euro, valor correspondente a 0,5% do PIB. Tais medidas incluem:
a) Aplicação de uma condição de recursos a todos os beneficiários de subvenções vitalícias e subvenções de sobrevivência, apuradas por indexação às remunerações dos cargos políticos. A “condição de recursos é verificada anualmente e considera um rendimento médio mensal, excluindo a subvenção, superior a € 2000 ou um património mobiliário superior a 240 vezes o valor do indexante dos apoios sociais”, sendo a subvenção “suspensa para os beneficiários que cumpram pelo menos uma das condições de recurso”; para os “restantes, o valor da subvenção fica limitado à diferença entre o valor de referência de € 2000 e o rendimento médio mensal” (Relatório OE 2014, pág. 54).
b) Medidas sobre o Sistema de Pensões, previstas para fazer face ao atual “peso desta rubrica no PIB”, que “praticamente duplicou, passando de 10,8% em 1999 para 19,4% em 2013”, por efeito do “alargamento do universo de beneficiários, por exemplo por razões demográficas”, e do “aumento do número de prestações sociais”, conduzindo a que, em 2013, a despesa em pensões haja representado “cerca de 30% da despesa pública”, correspondendo 75% a “despesas com pensões de velhice, doença ou sobrevivência” e 9% a “prestações associadas a situações de desemprego”. Introduzidas no pressuposto de que “o sistema de pensões português não é de capitalização mas sim de repartição” − o “que significa que são os atuais empregados que financiam as pensões dos beneficiários” − e que “a opção por não reduzir o valor das pensões implica[ria] sobrecarregar a geração atual de trabalhadores com mais impostos ou com mais contribuições”, as medidas sobre o sistema de pensões previstas constituem “respostas de curto prazo para forma a garantir a compatibilização do sistema de pensões com a sustentabilidade das finanças públicas”, repartindo “os custos deste ajustamento pela geração de pensionistas e de trabalhadores, segundo princípios de equidade intergeracional” (Relatório OE 2014, págs. 54-56). De entre as medidas sobre o sistema de pensões concretizadas na Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro de 2013, cumpre destacar, pelo seu impacto orçamental, as seguintes:
i)Ajuste da Idade de Acesso à Pensão de Velhice com base no Fator de Sustentabilidade, com um impacto orçamental estimado de 205 milhões euro, valor correspondente a 0,1 % do PIB, prosseguido através da alteração da Lei de Bases da Segurança Social e do regime de pensões no sentido da atualização “do fator de sustentabilidade dos atuais 4,78% para cerca de 12%, bem como da “alteração da idade normal de acesso à pensão de velhice em vigor (65 anos), por indexação ao fator de sustentabilidade” de modo a que, em 2014, sejam necessários “mais 12 meses de trabalho para além dos 65 anos para compensar a redução do montante das pensões em resultado da aplicação do novo fator de sustentabilidade de 12%” (Relatório OE 2014, págs. 47 e 58-59);
ii) Introdução de condição de recursos nas pensões de sobrevivência, com um impacto orçamental estimado de 100 milhões de euro, valor correspondente a 0,1 % do PIB, através da qual se procede à redução, a partir de 1 de janeiro de 2014, das “pensões de sobrevivência pagas pela Caixa Geral de Aposentações e pelo Centro Nacional de Pensões aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do Regime de Proteção Social Convergente (CGA) ou de beneficiários do RGSS”, operando tal redução através de uma fórmula que parte da consideração, para efeitos de atribuição de pensões de sobrevivência, do “valor mensal global das pensões que corresponde ao somatório do valor mensal de todas as pensões de aposentação, reforma e sobrevivência que sejam pagas ao titular da pensão por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza, institucional, associativa ou empresarial, do seu âmbito territorial, nacional, regional ou municipal, e do grau de independência ou autonomia, incluindo entidades reguladoras, de supervisão ou controlo e caixas de previdência de ordens profissionais, diretamente ou por intermédio de terceiros, designadamente companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões”. A fórmula é integrada por duas distintas taxas progressivas de formação da pensão, sendo uma “aplicável genericamente por morte de beneficiários do Regime de Proteção Social Convergente (CGA) em vigor até 31 de dezembro de 2005 ou que tenha sido subscritor inscrito até 31 de agosto de 1993” e outra, mais elevada, “aplicável por morte de beneficiário do RGSS ou de contribuinte da CGA inscrito após 31 de agosto de 1993 e que não tenha sido aposentado até 31 de dezembro de 2005” (Relatório OE 2014, pág. 47).
8. As medidas de redução da despesa, no valor global de 3.184 milhões de euro, são complementadas, no âmbito do universo do “total das medidas permanentes” constantes da Proposta de OE 2014, por um conjunto de medidas destinadas a fazer aumentar em 534 milhões de euro a receita orçamental, o que tem em vista “promover uma maior igualdade na distribuição do impacto das medidas de consolidação orçamental entre os diversos setores da sociedade portuguesa” através do reforço de “um princípio que já havia existido no ano transato” (Relatório OE 2014, págs. 32 e 46-47).
De entre as medidas previstas pelo lado da receita, destacam-se as seguintes:
a) Medidas Fiscais, contemplando estas, no essencial, as relativas a:
i) Reforma do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), no âmbito da qual se prevê, nomeadamente, a redução gradual da taxa aplicável, atualmente fixada em 25%, para 23% em 2014, embora compensada pela continuidade da sujeição das “empresas com lucros mais elevados (…) a uma taxa adicional, a título de derrama estadual, de 3% sobre os lucros superiores a 1,5 milhões de euro” e das empresas com lucros superiores a 7,5 milhões de euro (…) a uma taxa adicional de 5%”, bem como pelo “aumento da tributação autónoma incidente sobre as viaturas automóveis detidas pelas empresas” (Relatório OE 2014, págs. 64-66);
ii) Imposto de Selo, através de nova apresentação de “um pedido de autorização para legislar no sentido de criar uma nova taxa, até 0,3%, para incidir na generalidade das transações financeiras que tenham lugar em mercado secundário”;
iii) Impostos especiais sobre o consumo, através da aproximação dos níveis de tributação de todas as formas de tabaco;
iv) Imposto Único de Circulação, através da “introdução de um adicional de IUC, incidente sobre as viaturas ligeiras de passageiros movidos a gasóleo, tradicionalmente sujeitos a um regime fiscal mais favorável, nomeadamente em sede de Imposto sobre Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), de modo a reequilibrar a sua situação tributária com as viaturas equivalentes a gasolina”;
v) Redução em 50% da isenção concedida aos fundos de investimento imobiliário e aos fundos de pensões, em sede de IMI e IMT (Relatório OE 2014, pág. 64).
b) Outras medidas do lado da receita, em cujo âmbito se integram:
i) Alteração nas Contribuições para ADSE, SAD e ADM, através do reforço das contribuições dos beneficiários titulares tendo em vista a autossustentabilidade dos subsistemas de saúde, com um impacto orçamental estimado de 132 milhões de euro, valor correspondente a 0,1 % do PIB;
ii) Alteração ao Código dos Regimes Contributivos, através da reavaliação do regime de proteção social dos trabalhadores independentes;
iii) Contribuição sobre o setor energético, através da criação de uma contribuição extraordinária com o objetivo de financiar mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do mesmo, com um impacto orçamental estimado de 100 milhões de euro, valor correspondente a 0,1 % do PIB;
iv) Aumento da Contribuição da Entidade Patronal para a Caixa Geral de Aposentações, no sentido de “todas as entidades, independentemente da respetiva natureza jurídica e do seu grau de autonomia, passa[rem] a contribuir para a CGA, mensalmente, com 23,75% da remuneração sujeita a desconto de quota dos trabalhadores abrangidos pelo regime de proteção social convergente ao seu serviço, o que representa um acréscimo de 3,75 p.p. relativamente a 2013 (Relatório OE 2014, págs. 47, 69 e 71).
9. A Proposta de OE 2014 inclui ainda um conjunto de medidas sectoriais, destinadas a contribuir para o esforço de consolidação orçamental prosseguido, entre as quais cumpre destacar as seguintes:
a) Medidas relativas às Receitas da Segurança Social, em cujo âmbito se incluí “obrigatoriedade contributiva aos beneficiários de prestações sociais – doença e desemprego, assim como a contribuição extraordinária de solidariedade (âmbito pensões)” −, representando tais contribuições “cerca de 52,4% dos recursos orçamentados para o ano de 2014”.
b) Medidas previstas para o setor da economia, integrando estas, no eixo relativo às “Infraestruturas, Transportes e Comunicações”, a “suspensão dos pagamentos relativos a complementos de pensões − integralmente suportados pelas próprias empresas e que não resultam de contribuições dos trabalhadores − nas empresas que tenham apresentado um resultado líquido negativo nos 3 últimos anos, medida com a qual se estima, já em 2014, uma diminuição dos encargos das EPR [Entidades Públicas Reclassificadas] em 11,3 milhões de euro” (Relatório OE 2014, págs. 116 e 170).
10. O último dado relevante para o enquadramento das medidas consagradas nas normas impugnadas diz respeito aos pressupostos com base nos quais foi definida a estratégia orçamental do Governo concretizada na Lei n.º 83-C/2013.
De acordo com o Relatório da Lei do Orçamento de Estado, o cenário macroeconómico para 2014 aponta para um “crescimento do PIB em 0,8%, em consequência de uma contribuição menos negativa da procura interna”, bem como para “a manutenção do contributo positivo da procura externa líquida”. Dada “a manutenção de um elevado crescimento das exportações, é de esperar que o ajustamento das contas externas continue”, devendo “a balança corrente (…) atingir um excedente equivalente a 1,9% do PIB, reforçando assim o resultado de 2013”. De acordo ainda com o referido Relatório, “a taxa de desemprego deverá situar-se nos 17,7%, acompanhada pela manutenção de uma produtividade aparente do trabalho positiva (apesar de em desaceleração) e uma queda do emprego inferior à registada em 2013”. O “consumo público, por sua vez, deverá diminuir em 2,8% no próximo ano, como resultado da continuação do processo de ajustamento da despesa pública”, prevendo-se “que o investimento apresente uma evolução positiva de 1,2%, resultante de uma melhoria do investimento empresarial, em conjunto com condições de financiamento mais favoráveis da economia portuguesa”. O “consumo privado deverá apresentar uma recuperação de 0,1% em 2014”, e “a inflação deverá atingir 1%, o que traduz uma “subida (…) de cerca de 0,4 p.p. face a 2013” (Relatório do OE 2014, págs.18-19).
A) Normas do artigo 33.º (redução remuneratória aos trabalhadores do setor público)
11. Os requerentes nos Processos n.ºs 14/14 e 47/14 suscitam a inconstitucionalidade das normas do artigo 33.º da LOE de 2014 com fundamento na violação do direito à retribuição consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), do princípio geral da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 1, e os princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança, ambos ínsitos no princípio do Estado de direito a que se refere o artigo 2.º, todos da Constituição.
As normas constantes do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 têm o seguinte teor:
Artigo 33.º
Redução remuneratória
1 — Durante o ano de 2014 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.º 9, de valor superior a € 675, quer estejam em exercício de funções naquela data quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos:
a) Para valores de remunerações superiores a € 675 e inferiores a € 2000, aplica-se uma taxa progressiva que varia entre os 2,5 % e os 12 %, sobre o valor total das remunerações;
b) 12 % sobre o valor total das remunerações superiores a € 2000.
2 — Exceto se a remuneração total ilíquida agregada mensal percebida pelo trabalhador for inferior ou igual a € 2000, caso em que se aplica o disposto no número anterior, são reduzidas em 12 % as diversas remunerações, gratificações ou outras prestações pecuniárias nos seguintes casos:
a) Pessoas sem relação jurídica de emprego com qualquer das entidades referidas no n.º 9, nestas a exercer funções a qualquer outro título, excluindo-se as aquisições de serviços previstas no artigo 73.º;
b) Pessoas referidas no n.º 9 a exercer funções em mais de uma das entidades mencionadas naquele número.
3 — As pessoas referidas no número anterior prestam, em cada mês e relativamente ao mês anterior, as informações necessárias para que os órgãos e serviços processadores das remunerações, gratificações ou outras prestações pecuniárias possam apurar a taxa de redução aplicável.
4 — Para efeitos do disposto no presente artigo:
a) Consideram-se remunerações totais ilíquidas mensais as que resultam do valor agregado de todas as prestações pecuniárias, designadamente remuneração base, subsídios, suplementos remuneratórios, incluindo emolumentos, gratificações, subvenções, senhas de presença, abonos, despesas de representação e trabalho suplementar, extraordinário ou em dias de descanso e feriados;
b) Não são considerados os montantes abonados a título de subsídio de refeição, ajuda de custo, subsídio de transporte ou o reembolso de despesas efetuado nos termos da lei e os montantes pecuniários que tenham natureza de prestação social, e nomeadamente os montantes abonados ao pessoal das forças de segurança a título de comparticipação anual na aquisição de fardamento;
c) A taxa progressiva de redução para aplicar aos valores de remuneração entre os € 675 e os € 2000 é determinada por interpolação linear entre as taxas definidas para os valores de remuneração de referência imediatamente abaixo e acima do valor de remuneração em análise, determinada da seguinte forma:
d) Na determinação da taxa de redução, os subsídios de férias e de Natal são considerados mensalidades autónomas;
e) Os descontos devidos são calculados sobre o valor pecuniário reduzido por aplicação do disposto nos n.ºs 1 e 2.
5 — Nos casos em que da aplicação do disposto no presente artigo resulte uma remuneração total ilíquida inferior a € 675, aplica-se apenas a redução necessária a assegurar a perceção daquele valor.
6 — Nos casos em que apenas parte das remunerações a que se referem os n.os 1 e 2 é sujeita a desconto para a CGA ou para a segurança social, esse desconto incide sobre o valor que resultaria da aplicação da taxa de redução prevista no n.º 1 às prestações pecuniárias objeto daquele desconto.
7 — Quando os suplementos remuneratórios ou outras prestações pecuniárias forem fixados em percentagem da remuneração base, a redução prevista nos n.os 1 e 2 incide sobre o valor dos mesmos, calculado por referência ao valor da remuneração base antes da aplicação da redução.
8 — A redução remuneratória prevista no presente artigo tem por base a remuneração total ilíquida apurada após a aplicação das reduções previstas nos artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, alterada pelas Leis n.os 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, e na Lei n.º 47/2010, de 7 de setembro, alterada pelas Leis n.os 52/2010, de 14 de dezembro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, para os universos neles referidos.
9 — O disposto no presente artigo é aplicável aos titulares dos cargos e demais pessoal de seguida identificados:
a) O Presidente da República;
b) O Presidente da Assembleia da República;
c) O Primeiro-Ministro;
d) Os Deputados à Assembleia da República;
e) Os membros do Governo;
f) Os juízes do Tribunal Constitucional e os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República, bem como os magistrados judiciais, os magistrados do Ministério Público e os juízes da jurisdição administrativa e fiscal e dos julgados de paz;
g) Os Representantes da República para as regiões autónomas;
h) Os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
i) Os membros dos Governos Regionais;
j) Os eleitos locais;
k) Os titulares dos demais órgãos constitucionais não referidos nas alíneas anteriores, bem como os membros dos órgãos dirigentes de entidades administrativas independentes, nomeadamente as que funcionam junto da Assembleia da República;
l) Os membros e os trabalhadores dos gabinetes, dos órgãos de gestão e de gabinetes de apoio, dos titulares dos cargos e órgãos das alíneas anteriores, do Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, do Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Presidente e juízes do Tribunal Constitucional, do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, do Presidente do Tribunal de Contas, do Provedor de Justiça e do Procurador-Geral da República;
m) Os militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana (GNR), incluindo os juízes militares e os militares que integram a assessoria militar ao Ministério Público, bem como outras forças militarizadas;
n) O pessoal dirigente dos serviços da Presidência da República e da Assembleia da República e de outros serviços de apoio a órgãos constitucionais, dos demais serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado, bem como o pessoal em exercício de funções equiparadas para efeitos remuneratórios;
o) Os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime comum e especial, de pessoas coletivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o setor empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas;
p) Os trabalhadores que exercem funções públicas na Presidência da República, na Assembleia da República, em outros órgãos constitucionais, bem como os que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º e nos n.os 1, 2 e 4 do artigo 3.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, incluindo os trabalhadores em mobilidade especial e em licença extraordinária;
q) Os trabalhadores dos institutos públicos de regime especial e de pessoas coletivas de direito público dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, incluindo as entidades reguladoras independentes;
r) Os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o setor empresarial regional e municipal;
s) Os trabalhadores e dirigentes das fundações públicas de direito público e das fundações públicas de direito privado e dos estabelecimentos públicos não abrangidos pelas alíneas anteriores;
t) O pessoal nas situações de reserva, pré-aposentação e disponibilidade, fora de efetividade de serviço, que beneficie de prestações pecuniárias indexadas aos vencimentos do pessoal no ativo.
10 — As entidades processadoras das remunerações dos trabalhadores em funções públicas referidas na alínea p) do número anterior, abrangidas pelo n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, pela Lei n.º 66/2012, de 31 de dezembro, e pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, bem como os órgãos ou serviços com autonomia financeira processadores das remunerações dos trabalhadores em funções públicas referidos nas alíneas q) e s) do número anterior, procedem à entrega das quantias correspondentes às reduções remuneratórias previstas no presente artigo nos cofres do Estado, ressalvados os casos em que as remunerações dos trabalhadores em causa tenham sido prévia e devidamente orçamentadas com aplicação dessas mesmas reduções.
11 — O disposto no presente artigo é ainda aplicável a todos os contratos a celebrar, por instituições de direito privado, que visem o desenvolvimento de atividades de docência, de investigação ou com ambas conexas, sempre que os mesmos sejam expressamente suportados por financiamento público, no âmbito dos apoios ao Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), continuando a aplicar-se as reduções entretanto determinadas aos diferentes tipos de contratos em vigor, celebrados naqueles termos.
12 — O abono mensal de representação previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 40-A/98, de 27 de fevereiro, alterado pelos Decretos-Leis n. os 153/2005, de 2 de setembro, e 10/2008, de 17 de janeiro, e pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, é reduzido em 4 %, sem prejuízo das reduções previstas nos números anteriores.
13 — O disposto no presente artigo não se aplica aos titulares de cargos e demais pessoal das empresas de capital exclusiva ou maioritariamente público e das entidades públicas empresariais que integrem o setor público empresarial se, em razão de regulamentação internacional específica, daí resultar diretamente decréscimo de receitas.
14 — Não é aplicável a redução prevista no presente artigo nos casos em que pela sua aplicação resulte uma remuneração ilíquida inferior ao montante previsto para o salário mínimo em vigor nos países onde existem serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
15 — Salvo o disposto no n.º 11, o regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excecionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.
12. Os requerentes alegam, em resumo, o seguinte:
a) As normas em causa consubstanciam uma restrição do direito constitucional à retribuição, na medida em que representam uma diminuição sensível da contrapartida remuneratória pelo trabalho prestado;
b) Ao impor-se esta medida adicional de sacrifício (redução remuneratória) pelo quarto ano consecutivo aos trabalhadores do setor público, em termos agora alargados (a partir dos 675 euro mensais) e agravados (atingindo os 12% a partir dos 2000 euro), ultrapassam-se vários dos limites a que uma “ablação diferencial” desta natureza estará sempre sujeita;
c) No quarto ano de aplicação, a medida discriminatória já não pode justificar-se pela sua eficácia em relação a reformas que pudessem requerer mais tempo;
d) Na sua aplicação a todos os que, pela quarta vez, suportam continuadamente a redução remuneratória, esta medida levará a que o sacrifício exigido de cada um deles, só a este título, se eleve para um valor compreendido entre 14% a 40% da sua remuneração anual;
e) Por outro lado, a ponderação do nível de sacrifício imposto (especialmente) a quem aufere salários no limiar inferior da tabela, a partir de 675 euro, e o grau de satisfação dos interesses que se pretende atingir com isso- a consolidação orçamental em poucas décimas- só pode conduzir à conclusão da intolerabilidade daquele sacrifício;
f) Tendo em conta que essas medidas cumulam, para além do enorme aumento de impostos sofrido pela generalidade dos cidadãos, com a diminuição de rendimento e de cortes salariais que já incidiram nos anos anteriores exclusivamente sobre estes trabalhadores, com a supressão efetiva dos 13.º e 14.º meses no ano de 2012 (não obstante a sua declarada inconstitucionalidade) e com a redução indireta de retribuição em que se traduz no aumento do horário de trabalho para as 40 horas semanais e nos sucessivos aumentos de contribuição para a ADSE;.
g) Além de que a eventual violação do princípio da proteção da confiança por parte das reduções remuneratórias deve ser apreciada segundo um crivo mais apertado, tendo em conta que as reduções remuneratórias que incidem exclusivamente sobre os trabalhadores em funções públicas e das empresas públicas sempre haviam sido perspetivadas como transitórias e com um horizonte temporalmente delimitado e pré-estabelecido;
h) Os cortes salariais impostos na LOE 2014 obrigam a um novo juízo quanto à sua idoneidade ou adequação para atingir os fins visados, quanto à sua exigibilidade, necessidade ou indispensabilidade, e quanto à sua proporcionalidade em sentido estrito, isto é, quanto a saber se tais medidas se incluem na justa medida ou se devem considerar-se excessivas.
i) A dimensão do sacrifício imposto pelos cortes salariais, que pode ascender a 12% dos vencimentos, não é menor que a que foi imposta com o corte de um dos subsídios de férias ou de Natal declarado inconstitucional pelo acórdão n.º 353/2012;
j) Quanto à questão da idoneidade ou adequação da medida, é hoje manifesto que os cortes salariais não foram um meio idóneo para a redução imediata do défice das contas públicas;
l) A questão fundamental que se coloca, porém, relativamente aos cortes salariais previstos na LOE 2014 é a de saber se não estão largamente ultrapassados os limites do sacrifício a que aludiu o acórdão n.º 396/2011 e se não se verifica situação idêntica à que justificou a declaração de inconstitucionalidade do corte dos subsídios de férias e de Natal de 2013.
m) Quando se alargam os cortes salariais de modo a abranger trabalhadores que auferem salários mensais ilíquidos no montante de 675 euro, estão ultrapassados todos os limites constitucionalmente admissíveis, visto que estes cortes incidem sobre rendimentos de tal modo exíguos que violam claramente o princípio constitucional da proporcionalidade.
Âmbito temporal de vigência
13. Ao invés do que sucedeu com o artigo 27.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, a norma constante do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, não se limita a fazer transitar para o ano de 2014 a norma instituída pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011), e transposta para o ano de 2012 pelo artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2012), que operou, pela primeira vez, uma redução, entre 3,5% e 10%, das remunerações superiores a € 1.500 que devessem ser pagas através de dinheiros públicos.
De acordo com o regime seguido pela redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e renovada para os anos de 2012 e 2013 pelas Leis n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, respetivamente, a afetação dos rendimentos salariais era de: “a) 3,5 % sobre o valor total das remunerações superiores a € 1500 e inferiores a € 2000; b) 3,5 % sobre o valor de € 2000 acrescido de 16 % sobre o valor da remuneração total que exced[esse] os € 2000, perfazendo uma taxa global que varia[va] entre 3,5 % e 10 %, no caso das remunerações iguais ou superiores a € 2000 até € 4165; e c) 10 % sobre o valor total das remunerações superiores a € 4165”.
Em relação às normas pretéritas suas congéneres, a norma constante do n.º 1 do artigo 33.º, n.º 1, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, procedeu a uma revisão do regime de afetação da retribuição base mensal dos trabalhadores do setor público que vigorou nos anos de 2011 a 2013, concretizando-a através da simultânea reconfiguração de dois dos elementos que, de forma inalterada, vinham integrando aquele regime: i) o valor a partir do qual as retribuições pagas por dinheiros públicos ficam sujeitas a redução; e ii) os limites mínimo e máximo do coeficiente de redução aplicável de forma progressiva a partir daquele valor.
Apesar de o elenco dos sujeitos abrangidos se manter inalterado quanto ao cargo titulado – no sentido de que o n.º 9 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 reproduz, sem modificações, a enumeração que antes constava do n.º 9 do artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012 –, as alterações introduzidas pela Lei n.º 83-C/2013 procedem ao abaixamento do valor a partir do qual as remunerações mensais passam a ficar sujeitas a redução, produzindo por essa via uma ampliação do universo dos trabalhadores do setor público afetados pela medida, que passa a integrar os titulares de retribuições salariais superiores a € 675 e iguais ou inferiores a € 1.500, até agora isentas de qualquer oneração.
O abaixamento do valor mensal a partir do qual a redução salarial passa agora a operar foi acompanhado da revisão dos limites mínimo e máximo da taxa para esse efeito aplicável – que passam dos 3,5% e 10% previstos nas Leis n.º 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, para os 2,5% e 12% fixados no n.º 1 do artigo 33.º da Lei 83-C/2013, respetivamente —, assim como da ampliação do escalão remuneratório sujeito à aplicação do coeficiente máximo, que deixa de se cingir, conforme previsto nas Leis n.º 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, aos titulares de retribuições a partir de € 4.165, para passar a abranger todos titulares de remunerações iguais ou superiores a € 2.000.
Por força do n.º 1 do artigo 33.º da Lei 83-C/2013, a redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público desde 2011 transita, assim, para 2014 com relevantes modificações tanto subjetivas como objetivas, consistindo estas, por um lado, no alargamento do universo dos sujeitos afetados em razão do valor da remuneração auferida, e, por outro, na intensificação da medida da redução imposta aos titulares de retribuições já atingidas pelo regime constante das Leis n.º 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012.
Deste ponto de vista, o alcance inovatório do n.º 1 do artigo 33.º da Lei 83-C/2013 traduzir-se-á na imposição, pela primeira vez, de uma redução remuneratória aos trabalhadores do setor público que auferem rendimentos salariais de valor compreendido entre € 675 e € 1.500 e no concomitante agravamento, para o quarto ano consecutivo da respetiva vigência, da afetação da remuneração base mensal a que os trabalhadores do setor público com rendimentos salariais de valor superior a € 1.500 se encontram sujeitos desde 2011.
14. Em relação às medidas de redução da retribuição base mensal que vigoraram no âmbito do setor público no âmbito das Leis n.º 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, o conteúdo inovatório do regime constante do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 encontra-se desenvolvido do seguinte modo: as remunerações entre € 675 e € 1500, que se encontravam isentas de qualquer redução no âmbito das anteriores leis orçamentais, passaram a sofrer uma redução que resulta da aplicação de uma taxa progressiva incidente sobre o valor da remuneração e que se estende de 2,5%, no escalão mais baixo, até 8,41%, no segmento correspondente a € 1500. As remunerações que se situam no intervalo entre € 1500 e € 2000, a que se aplicava anteriormente a taxa mínima de 3,5%, têm uma redução acima de 8,41% e que vai até 12% nas remunerações correspondentes a este último montante. As remunerações superiores a € 2000 e inferiores a € 4165, que estavam sujeitas a uma taxa variável entre 3,5% e 10%, suportam agora a taxa máxima de 12%. Essa mesma taxa é aplicável a todas as outras remunerações mais elevadas.
15. Ao contrário do que sucedeu com as normas feitas sucessivamente constar dos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, das Leis do Orçamento de Estado para 2011, 2012 e 2013, respetivamente, a norma inscrita no n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 não se limita a indicar o termo inicial do período a que reporta a redução salarial aí determinada.
Apesar de, tal como as precedentes disposições, não conter a especificação do termo final do período em que perdurará a afetação remuneratória aí prevista, a norma constante do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 estabelece que essa afetação vigorará “durante o ano de 2014”, o que, em relação à formulação antes adotada, traduz uma mensuração mais concreta e explícita da temporalidade da medida, no sentido em que a sua duração é feita expressamente coincidir com a do ano civil a que se reporta.
Porém, se, do ponto de vista da aferição da temporalidade da redução remuneratória fixada, esta maior precisão da cláusula constante do n.º 1 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 tende a facilitar, quando em si mesma considerada, uma conclusão favorável à transitoriedade da medida, já a circunstância, expressamente invocada pelos autores do pedido que deu origem ao Processo n.º 47/2014, de se tratar agora “do quarto ano consecutivo de imposição de cortes salariais” e de este se não encontrar integralmente abrangido pelo período de vigência do PAEF, associada ao facto, alegado pelos autores do pedido que deu origem ao Processo n.º 14/2014, de existirem no discurso político associado à elaboração da Proposta que deu origem à referida Lei certos sinais indicadores “de ter sido abandonada toda e qualquer delimitação temporal do respetivo alcance”, poderá conferir à (re)consideração do tema da plurianualidade das disposições orçamentais relativas aos trabalhadores do setor público uma nova dimensão problemática.
16. Tanto a questão relativa à determinação do período de vigência de normas inseridas em leis orçamentais que impõem uma redução da remuneração dos trabalhadores do setor público, como a respeitante à determinação dos termos em que o sentido da resposta se deverá projetar sobre o juízo da respetiva conformidade constitucional vêm sendo continuamente debatidas na jurisprudência deste Tribunal, tendo começado por colocar-se no âmbito da fiscalização da constitucionalidade do artigo 19.ºda Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2011).
Considerando que a resposta à questão de saber se as reduções impostas pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010 operavam a título definitivo ou a título meramente transitório constituía “um muito relevante fator de valoração, atuante transversalmente em todos os campos problemáticos de aplicação dos parâmetros constitucionais” então invocados, o acórdão n.º 396/2011, que se pronunciou sobre essa disposição, começou por recusar a possibilidade de extrair da ausência de uma cláusula de temporalidade uma conclusão favorável à definitividade da medida, tomando por base a natureza orçamental das normas em causa e os preceitos constitucionais relativos à vigência das leis do orçamento.
O Tribunal assumiu o entendimento de que se tratava de disposições que tinham a função de dar “suporte normativo a uma dada previsão de despesas, e sendo a sua aplicação indispensável à sua correta execução, elas repercut[iam-se] diretamente no próprio quadro contabilístico do orçamento, integrando-se substancialmente neste diploma, como sua componente essencial”.
Concluiu-se, assim, que as normas constantes do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, na medida em que “não se projeta[vam], com independência, para fora da aprovação e execução do Orçamento do Estado”, tinham “caráter orçamental”, pelo que, “por força de regra constitucional (artigo 106.º, n.º 1, da Constituição)”, não poderiam gozar senão de vigência “anual”, o que tornava desnecessária até a determinação autónoma do “termo final da sua vigência”, pois este encontrar-se-ia “definido constitucional e legislativamente (artigo 4.º, n.º 1, da Lei de Enquadramento Orçamental – Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, na redação da Lei n.º 48/2004, de 24 de agosto)”.
Apesar de assim concluir, o Tribunal considerou, todavia, não poder “ignorar-se que as reduções remuneratórias estabelecidas na lei do Orçamento do Estado de 2011 t[inham] como objetivo final a diminuição do défice orçamental para um valor precisamente quantificado, respeitador do limite estabelecido pela União Europeia, no quadro das regras da união económica e monetária”, para cujo alcance “fo[ra] estabelecida uma calendarização por etapas anuais”, prevendo-se para 2013 a “satisfação plena de tal objetivo”.
Neste contexto, poder-se-ia dizer que “as medidas de diminuição da despesa pública inscritas no Orçamento de 2011 mais não representa[riam] do que uma parcela, uma fase, de um programa cuja realização integral se estende[ria] por um horizonte temporal mais alargado”.
Porém, na medida em que o legislador não optara “por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013)”, aquele dado “não invalida[ria] a conclusão de que elas vigorar[iam] segundo a sua natureza de medidas de caráter orçamental” –, isto é, “anualmente, caducando no termo do ano em curso” –, apenas levando “a dar como praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das vinculações assumidas, a repetição de medidas de idêntico sentido, para vigorar nos anos correspondentes aos da execução do programa que as justifica e em que se integram, ou seja, até 2013”.
De qualquer forma, segundo o Tribunal, esta prognose, a ser tida em conta, “apenas pode[ria] fundar a conclusão de que estas medidas ter[iam] uma duração plurianual, sem pôr em causa o seu caráter transitório, de acordo com a sua razão de ser e natureza, de resposta normativa a uma conjuntura excecional, que se pretende corrigir, com urgência e em prazo o mais breve possível, para padrões de normalidade”.
17. O problema relativo à determinação do âmbito temporal de vigência das normas que afetam o valor da remuneração dos trabalhadores do setor público inscritas em leis orçamentais voltou a colocar-se no âmbito da fiscalização da constitucionalidade do artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2012), que determinou a suspensão “durante a vigência do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), como medida excecional de estabilidade orçamental” do pagamento de subsídios de férias e de Natal ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e/ou 14.º meses aos trabalhadores do setor público cuja remuneração base mensal fosse superior a € 1.100 (n.º 1), bem como a redução dos referidos subsídios ou prestações aos trabalhadores daquele setor cuja remuneração base mensal fosse “igual ou superior a € 600 e não exced[esse] o valor de € 1.100 (n.º 2)”.
Neste caso, decidido pelo acórdão n.º 353/2012, a questão colocada consistiu em saber se a inscrição daquela medida numa lei orçamental determinaria a sujeição do respetivo âmbito temporal de vigência aos limites para esta legal e constitucionalmente fixados, ou, pelo contrário, tal âmbito deveria ser estabelecido a partir da cláusula de temporalidade inserta na própria norma do n.º 1 do artigo 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, hipótese em que passaria a contemplar, não apenas o ano de 2012, mas também os de 2013 e 2014 por ser esse o período de vigência do PAEF.
Tendo prevalecido este último entendimento, o Tribunal considerou então que “como os artigos 21.º e 25.º, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, remet[iam] para o período de vigência do PAEF, a duração da suspensão de pagamentos neles decretada, tal medida não pod[eria] deixar de ter, pelo menos, a duração de 3 anos, abrangendo os anos de 2012, 2013 e 2014”.
18. No âmbito da apreciação da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 27.º, n.º 1, e 29.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, decidida pelo acórdão n.º 187/2013, o problema da transitoriedade das disposições orçamentais relativas aos trabalhadores do setor público foi novamente colocado, tendo surgido aí em ambas as configurações em que havia sido considerado já nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012.
Atentando na “coincidente estrutura temporal das normas constantes dos artigos 27.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e 19.º, n.º1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, por um lado, e dos artigos 29.º, n.º1, e 45.º, n.º1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, e 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro”, por outro, o Tribunal entendeu não existir razão “para divergir do juízo sobre a temporalidade das medidas impugnadas subjacente aos julgamentos” efetuados através dos referidos acórdãos.
No que particularmente diz respeito à redução das remunerações dos trabalhadores do setor público, considerou-se ainda que, apesar da respetiva plurianualidade se ter tornado, em face do disposto no artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, “senão prospetiva, pelo menos retrospetivamente mais evidente”, persistiam “as razões que, no contexto normativo subjacente ao 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro”, haviam conduzido o Tribunal “a não pôr em causa o seu caráter transitório e temporário”, continuando esta conclusão a poder extrair-se com clareza, no âmbito da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, da “circunstância de se tratar de uma medida inscrita na estratégia de consolidação orçamental, através da redução da despesa, tendo em vista o cumprimento dos limites quantitativos para o défice”.
Concluiu assim o Tribunal que, apesar de a redução do valor da retribuição mensal imposta pelo artigo 27.º da Lei n.º 66-B/2012, ao contrário da suspensão do pagamento do subsídio de férias então prevista no respetivo artigo 29.º, não ter “normativamente expressa uma duração correspondente à do PAEF”, se justificava, perante o respetivo enquadramento orçamental, a “qualificação unitária” de ambas como “medidas com caráter transitório”, sujeitas à exigência de “renovação (…) em cada orçamento” como condição de obtenção, em face da “regra da anualidade orçamental”, de uma “aplicação plurianual”.
Para o Tribunal, em suma, ambas as medidas previstas na Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, apresentavam “em comum uma vigência temporária, não definitiva”, o que permitia reconhecer nelas “a característica tida em conta nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012”.
19. Procurando determinar-se se é possível manter, em face do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, o mesmo juízo sobre a transitoriedade das medidas relativas aos trabalhadores do setor público anteriormente emitido, a primeira nota a salientar é a de que a norma agora sob fiscalização, se por um lado beneficia, em relação às precedentes disposições, de uma maior precisão quanto ao respetivo período de vigência, que lhe é conferida por uma cláusula de temporalidade expressamente coincidente com a duração do ano a que se reporta, por outro reitera pelo quarto ano consecutivo a redução das remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o respetivo n.º 9. Fá-lo, não obstante se encontrar oficialmente previsto para maio de 2014 o termo do Programa de Assistência Económica e Financeira e, a mais disso, com apoio num discurso justificativo que, apesar de manter a ligação aos “objetivos de consolidação orçamental” a que se autovinculou o Estado Português, dá sinais de romper com o horizonte temporal que vinha sendo reiteradamente considerado, apontando, através da invocação de fundamentos relacionados com o “processo de revisão estrutural da despesa” pública e do objetivo de “ajustar para os níveis de mercado as remunerações” de certos grupos da Administração Pública, para o caráter permanente da medida, ainda que sujeita a ulterior reformulação (Relatório OE 2014, págs. 31, 45 e 50).
Conforme inequivocamente resulta da anterior jurisprudência do Tribunal, a transitoriedade cujo estabelecimento vem integrando o juízo de conformidade constitucional das disposições orçamentais relativas à retribuição mensal dos trabalhadores do setor público supõe mais do que a mera revisibilidade da medida.
Tal como vem sendo extraído daquelas disposições, o caráter temporário da afetação do valor das remunerações base mensais pagas por dinheiros públicos resulta diretamente da sua vocação plurianual, por se tratar de uma medida funcionalmente indexada à execução do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), e se destinar, por isso, a vigorar, através da sucessiva renovação orçamental, durante o período, certo e pré-determinado, de vigência daquele.
Assim entendida, a plurianualidade da redução das retribuições auferidas pelos trabalhadores do setor público é aquela que resulta da duração do ciclo orçamental condicionado pelas obrigações de consolidação assumidas no âmbito daquele Programa, o que se monstra compatível ainda com renovação da medida no Orçamento de Estado para 2014.
O ano de 2014 é ainda, tal como sucedeu com os três anos anteriores, um ano orçamentalmente dependente do cumprimento dos compromissos específicos a que o Estado Português se autovinculou no âmbito dos contratos de financiamento celebrados com o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, o que, em termos objetivos, permite reconduzir a afetação do valor das contraprestações remuneratórias, agora renovada, à integral realização do esforço de consolidação orçamental iniciado em 2011 e, consequentemente, ao critério com base no qual vem sendo desde então estabelecida a temporalidade da medida.
Por assim ser, o desfasamento temporal que, em parte, se verifica entre o PAEF – que findará antes de completado o ano de 2014 — e a redução remuneratória prevista no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 – que perdurará até ao termo do ano em causa — não assumem uma relevância decisiva.
Considerando que o PAEF, apesar de formalmente ter findado em maio, sujeita a constrangimentos financeiros, em particular aos que resultam dos limites fixados ao défice, todo o exercício de 2014, mantém-se inalterada a possibilidade de relacionar funcionalmente a afetação remuneratória renovada na Lei n.º 83-C/2013 com as obrigações de sustentabilidade orçamental resultantes dos compromissos assumidos no âmbito daquele Programa, o que, por seu turno, permite concluir pela subsistência do circunstancialismo que conduziu a qualificar como não definitiva a afetação salarial sucessivamente imposta pelas leis orçamentais para 2011, 2012 e 2013.
Tal conclusão, para além de reforçada pela própria regra da anualidade a que se encontra constitucionalmente vinculado o Orçamento de Estado (artigo 106.º, n.º 1, da CRP) − que impõe que o planeamento da gestão financeira que naquele se encontra vertido assuma como período temporal de referência o do ano civil a que diz respeito e ao mesmo globalmente reporte a previsão e a programação das despesas e das receitas −, é, além do mais, sintónica com o facto de, nas suas anteriores pronúncias, o Tribunal ter estendido ao ano de 2014 o juízo de prognose sobre a plurianualidade das medidas orçamentais relativas às contrapartidas remuneratórias dos trabalhadores do setor público impostas no âmbito da estratégia de consolidação determinada pelas obrigações específicas assumidas pelo Estado português, na sequência do pedido de ajuda financeira externa.
20. Se o facto de a vigência do PAEF se não prolongar por todo o período em que vigorará a redução remuneratória determinada pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 não constitui fundamento idóneo para impor a reversão do juízo sobre a transitoriedade da medida, há ainda que verificar se à respetiva subsistência não se oporão já os indicadores que, no discurso do autor da Proposta de Orçamento, apontam para o respetivo caráter permanente ou definitivo.
Apesar da concomitante referência ao “caráter transitório” da redução remuneratória prevista (Relatório, pág. 49), tais indicadores são relativamente inequívocos.
Embora sem deixar de relacioná-la com a necessidade de adoção de medidas suscetíveis de assegurar a redução do défice orçamental para o valor de 4% fixado para 2014 pela versão atualizada do PAEF, nem, mais amplamente, com “as obrigações de consolidação orçamental” e a necessidade de assegurar as condições de acesso aos “meios de financiamento” de que “depende a solvabilidade e o cumprimento das tarefas constitucionais fundamentais do Estado”, o enquadramento feito no Relatório que acompanhou a Proposta do OE 2014 insere a “redução progressiva, entre 2,5% e 12%”, das remunerações mensais superiores a determinado valor limite de “todos os trabalhadores das Administrações Públicas e do Setor Empresarial do Estado (SEE), bem como dos titulares de cargos políticos e outros altos cargos públicos” no âmbito do que designa por “Medidas relativas à alteração da política de rendimentos” dos trabalhadores do setor público. Quanto aos termos em que é modelada, é-lhe apontado o objetivo de “dirimir uma inadequada política de rendimentos na Administração Pública”, através da correção do “padrão de iniquidade” considerado existir entre o público e o privado” em resultado do facto de existir “no setor público (…) um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade” e de serem aí tendencialmente inferiores “as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência”. Para além disso, inscreve aquela redução no âmbito do “processo de revisão estrutural da despesa”, contabilizando como “medida permanente” de redução da despesa pública a diminuição, estimada em 643 milhões de euro, das “despesas com o pessoal” desse modo obtida (Relatório OE 2014, págs. 31, 46-47 e 49).
Este conjunto de referências introduz uma componente inovatória na exposição de motivos que vem acompanhando as sucessivas medidas de natureza orçamental relativas às contrapartidas remuneratórias devidas no âmbito da relação de emprego público.
Já não se trata, como até aqui, de uma argumentação construída exclusivamente em torno da invocação de “condições excecionais e extremamente adversas”, em relação à “indispensável sustentabilidade” e “reequilíbrio das contas públicas” (Relatório OE 2011, pág. 45), da “urgente necessidade de corrigir os desequilíbrios orçamentais e o profundo agravamento das finanças públicas” no âmbito dos “compromissos assumidos no contexto do PAEF” (Relatório OE 2012, págs. 21 e 23), ou até mesmo da “necessidade imperiosa de continuar o processo de acumulação de credibilidade e confiança junto dos credores”, honrando “os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português” e salvaguardando “a realização das suas tarefas fundamentais perante os seus cidadãos” (Relatório OE 2013, pág. 2), mas, para além disso, do simultâneo e inédito relacionamento das medidas, quer com o programa de revisão estrutural da despesa, quer com o processo de reforma da Administração Pública.
Ao contrário dos fatores até aqui considerados, estes rompem o horizonte temporal definido a partir do período de vigência do PAEF, fazendo supor, até pela concomitante convocação do enquadramento resultante do “Pacto de Estabilidade e Crescimento, na sua vertente corretiva”, que a “alteração da política de rendimentos” dos trabalhadores do setor público persistirá para além do termo de 2014, tendendo a assumir, sem prejuízo de ulteriores reformulações, caráter permanente ou definitivo (Relatório OE 2014, pág. 38).
21. Apesar de assim ser, a questão que, do ponto de vista do controlo da constitucionalidade, pode com relevância ser colocada é a de saber se, na configuração em que se encontra normativamente concretizada – isto é, enquanto medida de natureza orçamental destinada a vigorar durante o ano de 2014 —, a afetação remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 deixa de poder relacionar-se, por via do enquadramento delineado no Relatório que acompanhou a Proposta, com os objetivos de “consolidação orçamental” e “sustentabilidade das finanças públicas” que aí lhe são igualmente assinalados (Relatório, pág. 29), para passar a assumir, em sintonia com outros dos indicadores naquele contidos, a prevalecente condição de instrumento de prossecução de uma política de revisão da tabela salarial da Administração Pública e/ou de um programa de redução estrutural e permanente da despesa gerada pelo pagamento das contraprestações remuneratórias devidas no âmbito da relação de emprego público.
Ainda que, do ponto de vista político-governativo, a redução das remunerações mensais devidas no âmbito da relação de emprego público se tenha convertido em parte de uma estratégia, mais ampla, de reconfiguração do “padrão” salarial vigente naquele setor e, mais extensamente ainda, de diminuição permanente dos encargos que a esse título recaem sobre o Estado-empregador, o certo é que essa eventual alteração de perspetiva não encontra, no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, a necessária tradução normativa. Pelo contrário, nele se estabelece expressamente um período de duração correspondente ao ano de 2014.
Por isso, quando considerada a partir dos objetivos que lhe são feitos corresponder no imediato, a redução remuneratória prevista na Lei n.º 83-C/2013 continua a dispor, nos termos em que se encontra orçamentalmente concretizada, de suficiente ligação à “linha de atuação programada, de caráter plurianual”, orientada para “a realização de objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas” (acórdão n.º 187/2013) com base na qual o Tribunal vem concluindo pela transitoriedade da medida.
Embora nos encontremos já no limite desse programa, o certo é que estamos em face de uma medida que, sem prejuízo da sua anunciada integração em objetivos mais amplos – cuja eventual concretização normativa futura poderá, a seu tempo, ser apreciada – se dirige ainda, em termos imediatos, e em linha com as anteriores, à viabilização do cumprimento das metas orçamentais definidas no PAEF para o ano de 2014.
Tal enquadramento, que a Lei n.º 83-C/2013 amplia mas não abandona, permite concluir, assim, pela natureza transitória ou temporária da redução remuneratória prevista, no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, para vigorar “durante o ano de 2014”, e, consequentemente, pela constância do fator de ponderação deste ponto de vista tido em conta no âmbito da formulação dos anteriores juízos de constitucionalidade.
Introdução ao problema da constitucionalidade
22. Entendendo terem decaído as “razões excludentes da inconstitucionalidade” que conduziram o Tribunal a abster-se de censurar a redução da remuneração mensal base dos trabalhadores do setor público prevista nas anteriores Leis Orçamentais, os requerentes do Processo n.º 14/2014 consideram impor-se, perante as normas constantes do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, a reversão daquele juízo quanto à violação dos princípios da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição), da proporcionalidade e da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição). Para além do argumento retirado da ideia, que se considerou já sem base normativa, de que aquela redução adquiriu caráter necessariamente permanente e definitivo, essa conclusão justificar-se-á: i) do ponto de vista da igualdade, pelo facto de se tratar em qualquer caso de uma “medida adicional de sacrifício”, imposta no âmbito da relação de emprego público “pelo quarto ano consecutivo” e “em termos agora alargados (a partir dos € 675 mensais) e agravados (atingindo os 12% a partir dos € 2.000)”, sem que subsista a “eficácia” que lhe foi anteriormente reconhecida no confronto com reformas mais demoradas; e ii) do ponto de vista da proporcionalidade, pelo facto de, através da simultânea “redução do esforço fiscal doutros contribuintes”, o legislador dar sinais de que existem “alternativas igualmente eficientes para promover os fins prosseguidos”, ao mesmo tempo que eleva para um nível intolerável o grau do sacrifício imposto, fazendo-o coincidir com o efeito da acumulação da afetação remuneratória com um conjunto de outras medidas penalizadoras, designadamente a “redução indireta de retribuição em que se traduzem tanto o aumento do horário de trabalho para as 40 horas semanais como os sucessivos aumentos de contribuição para a ADSE”, para com isso alcançar, no que diz respeito à diminuição do valor dos salários situados no limiar da tabela, uma compensação orçamental não superior a “poucas décimas”.
A perspetiva seguida pelos requerentes do Processo n.º 47/2014 é, no essencial, semelhante.
Apontando, de igual modo, para o definhamento dos pressupostos em que assentaram as anteriores decisões do Tribunal Constitucional que “concluíram pela não inconstitucionalidade dos cortes salariais impostos pelos Orçamentos de Estado anteriores”, os requerentes deste processo consideram que a medida prevista no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 se tornou, à luz da ponderação ali realizada, incompatível com o “princípio da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional”, não apenas por ter adquirido caráter necessariamente permanente e definitivo, mas ainda por não ser já possível classificá-la, perante a sucessiva revisão dos limites previstos para o défice, como “um meio idóneo” e “adequado” para a consolidação das contas públicas, nem invocar mais a sua “indispensabilidade” para aquele efeito já que, através da previsão do aumento dos encargos com as parcerias público-privadas e do desagravamento fiscal a produzir pela reforma do IRC, a própria LOE 2014 contempla simultaneamente “medidas de sentido contrário a esse objetivo”. Este circunstancialismo, agravado pela acumulação dos “cortes salariais” agora impostos com os cortes anteriormente determinados e com o conjunto das outras “medidas de austeridade” previstas para os trabalhadores do setor público, bem como pelo alargamento da redução remuneratória aos “trabalhadores que auferem salários mensais ilíquidos no montante de € 675”, deverá conduzir o Tribunal a um julgamento de sentido idêntico ao que recaiu sobre o “corte dos subsídios de férias e de Natal para o ano de 2013” por se encontrar também agora ultrapassado o “limite do sacrifício” que vem sendo imposto aos “cidadãos que auferem remunerações públicas”.
23. Na análise da conformidade constitucional das medidas de natureza orçamental que, no contexto definido por referência ao PAEF, vêm afetando as contrapartidas remuneratórias devidas no âmbito da relação de emprego público, o Tribunal tem partido da ideia de que não existe na Constituição “qualquer regra que estabeleça a se, de forma direta e autónoma, uma garantia de irredutibilidade dos salários”.
Todavia, o Tribunal vem recusando a possibilidade de situar em terreno constitucionalmente neutro a problemática relativa à afetação das contrapartidas pecuniárias devidas no âmbito da relação de emprego público. Conforme se afirmou no acórdão n.º 187/13, “uma vez fixado, por critérios de direito ordinário, o conteúdo do direito ao salário (sem precisa determinação constitucional), uma mudança legislativa que afete negativamente esse conteúdo tem que encontrar justificação bastante, à luz dos princípios constitucionais pertinentes, sob pena de inconstitucionalidade”.
E isto porque a Lei Fundamental permanece “sensível às variações, para menos, do nível da concretização legislativa que possa conhecer o direito à retribuição, proporcionando um controlo, não quanto à redutibilidade, em si mesma considerada, mas quanto aos termos da sua efetivação – isto é, quanto às suas razões e medida”.
Esse controlo – escreveu-se ainda – “atua por intervenção mediadora dos princípios da proteção da confiança, da igualdade e da proporcionalidade, que densificam a ideia de sujeição do poder público a princípios e regras jurídicas”, pressupondo “o esclarecimento das razões, necessariamente de interesse público, que conduziram o Estado a intervir unilateralmente naquele sentido no âmbito da relação de emprego público”.
Será, portanto, através de parâmetros valorativos extraídos dos referidos princípios constitucionais, que condicionam a liberdade conformadora do legislador ordinário e limitam, em geral, as possibilidades de autorrevisibilidade legislativa que, à semelhança do que sucedeu no âmbito da fiscalização das reduções remuneratórias resultantes das Leis n.º 55-A/2010, 64-B/2011 e 66-B/2012, cumprirá apreciar a validade constitucional das soluções normativas agora expressas no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013.
É essa análise a que se procederá de seguida, começando por centrá-la no princípio da igualdade.
Violação do princípio da igualdade
24. Conforme estavelmente resulta da jurisprudência do Tribunal e uma vez mais se afirmou no acórdão n.º 187/2013, «só podem ser censuradas, com fundamento em lesão do princípio da igualdade, as escolhas de regime feitas pelo legislador ordinário naqueles casos em que se prove que delas resultam diferenças de tratamento entre as pessoas que não encontrem justificação em fundamentos razoáveis, percetíveis ou inteligíveis, tendo em conta os fins constitucionais que, com a medida da diferença, se prosseguem (acórdão n.º 47/2010)».
Em consonância com a fórmula em que pode assim sintetizar-se o princípio da igualdade, o Tribunal vem estruturando o problema de constitucionalidade suscitado pela confrontação com esse princípio das normas orçamentais que determinam a ablação parcial das contrapartidas remuneratórias devidas no âmbito da relação de emprego público, através da identificação de dois planos de análise, distintos mas interligados, respeitando o primeiro à averiguação da razão de ser da diferenciação produzida por tais medidas – isto é, à “existência de um fundamento para a própria opção de diferenciar” (acórdão n.º 187/2013) − e o segundo à avaliação da medida em que, considerada aquela razão, a diferenciação surge em concreto determinada.
25. No acórdão n.º 396/2011, o Tribunal configurou o problema de constitucionalidade, do ponto de vista da igualdade, a partir do “facto de os destinatários das medidas (…) serem apenas as pessoas que trabalham para o Estado e demais pessoas coletivas públicas, ou para quaisquer das restantes entidades referidas no n.º 9 do artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2011, de 31 de dezembro”, ficando de fora “os trabalhadores com remunerações por prestação de atividade laboral subordinada nos setores privado e cooperativo, os trabalhadores por conta própria, bem como todos quantos auferem rendimentos de outra proveniência”.
Tendo por indiscutível que “com as medidas [então] em apreciação, a repartição dos sacrifícios impostos pela situação excecional de crise financeira não se faz de igual forma entre todos os cidadãos com igual capacidade contributiva”, mas por igualmente certo que a questão do “combate ao défice, pelo lado da receita (privilegiadamente fiscal), ou, antes, pelo lado da despesa (bem como a combinação adequada dos dois tipos de medidas e a seleção das que, de entre eles, merecem primazia) foi (e continua a ser) objeto de intenso debate político e económico”, o Tribunal considerou que não lhe cabia apreciar a maior ou menor bondade, deste ponto de vista, das medidas implementadas”, mas apenas verificar se as soluções nelas consagradas seriam “arbitrárias, por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente” a categoria dos cidadãos por elas abrangidos.
Depois de assim enquadrar o problema de constitucionalidade, o Tribunal reconheceu a existência de um fundamento legítimo para a diferenciação implicada na redução, em 3,5% a 10%, das remunerações base superiores a € 1.500 aos trabalhadores do setor público, fazendo-o coincidir, por um lado, com a inexistência de “razões de evidência” suscetíveis de neutralizar a ideia segundo a qual, “pelo lado da despesa, só a diminuição de vencimentos garantia eficácia certa e imediata” para a redução do “peso da despesa do Estado, com a finalidade de reequilíbrio orçamental”, e, por outro, com a circunstância de, em vista deste fim, quem recebe por verbas públicas não se encontrar “em posição de igualdade com os restantes cidadãos”. Essas razões conduziram ao entendimento de que o “sacrifício adicional” transitoriamente exigido a essa categoria de pessoas não consubstanciava, naquele contexto de excecionalidade, “um tratamento injustificadamente desigual”.
26. Quer a questão relativa à caracterização do fundamento para a imposição aos trabalhadores do setor público de um tratamento diferenciado, quer a respeitante à validação da medida da desigualdade originada pela afetação das contrapartidas remuneratórias devidas no âmbito daquela relação foram ulteriormente debatidas no acórdão n.º 353/2012, que confrontou com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos as normas que, no contexto da Lei do Orçamento de Estado para 2012, intensificavam o nível de afetação da irredutibilidade salarial resultante da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, ao associar à redução ali prevista, e já transposta para o ano de 2012 pelo artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, a suspensão total ou parcial do pagamento do pagamento dos subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes aos 13.º e, ou, 14.º meses, para remunerações mensais base a partir de € 600.
Recusando a possibilidade de reconhecer nos argumentos extraídos da superioridade média das retribuições auferidas pelos trabalhadores do Estado e outras entidades públicas e/ou da maior garantia de subsistência do respetivo vínculo laboral − então invocados no Relatório do Orçamento de Estado para 2012 − um fundamento material e racional suficientemente fundado para excluir a arbitrariedade daquela diferenciação, o Tribunal considerou subsistir, como razão justificativa para o tratamento diferenciado dos que auferem remunerações e pensões do Orçamento do Estado, apenas “a eficácia das medidas adotadas na obtenção de um resultado de inegável e relevante interesse público”.
Situando no âmbito relativo à pertinência orçamental daquelas retribuições e das medidas que as afetavam o fundamento material para a diferenciação introduzida na repartição dos encargos públicos, o Tribunal entendeu ainda defensável a asserção segundo a qual, “pela sua certeza e rapidez na produção de efeitos”, a opção tomada se revelava “particularmente eficaz”, “numa perspetiva de redução do défice a curto prazo”, mostrando-se desse modo “coerente com uma estratégia de atuação, cuja definição cabe[ria] dentro da margem de livre conformação política do legislador”.
Ao perspetivar o fundamento para a diferenciação a partir da natureza e especificidade da conjuntura subjacente e dos efeitos tidos em vista pelo legislador ordinário, o Tribunal concluiu, assim, pela admissibilidade de “alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia”, excluindo a possibilidade de, no “contexto económico e financeiro” então presente, ser considerada “injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida ape¬nas aos primeiros”.
O juízo positivo quanto à existência de um fundamento material para a opção de diferenciar não foi, todavia, estendido à dimensão em que aquela diferenciação surgia então concretizada.
Na medida em que nenhum destes sacrifícios teria então “equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que aufer[iam] rendimentos provenientes de outras fontes, independentemente dos seus montantes”, o Tribunal considerou que a “diferença de tratamento [era] de tal modo acentuada e significativa que as razões de eficácia da medida adotada na prossecução do objetivo da redução do défice público para os valores apontados nos memorandos de entendimento não te[riam] uma valia suficiente para justificar a dimensão de tal diferença, tanto mais que poderia configurar-se o recurso a soluções alternativas para a diminuição do défice, quer pelo lado da despesa (v.g., as medidas que constam dos referidos memorandos de entendimento), quer pelo lado da receita (v.g. através de medidas de caráter mais abrangente e efeito equivalente à redução de rendimentos)”.
Concluiu o Tribunal “que o diferente tratamento imposto a quem aufere remunerações e pensões por verbas públicas ultrapassa[va] os limites da proibição do excesso em termos de igualdade proporcional”.
27. O problema da legitimidade constitucional das normas orçamentais relativas aos trabalhadores do setor público voltou a colocar-se, no acórdão n.º 187/2013, do ponto de vista do princípio da igualdade, no contexto da Lei n.º 66-B/2012, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013. Estava em causa, por um lado, a redução, entre 3,5% e 10%, das remunerações mensais base superiores a € 1.500 que essa Lei, através do respetivo artigo 27.º, fizera transitar para o ano de 2013, reproduzindo sem alterações a fórmula introduzida pelo artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010 e transposta para o ano de 2012 pelo artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011; e, por outro, a suspensão do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês determinada pelo artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, que era aplicável aos trabalhadores do setor público cuja remuneração base mensal fosse superior a € 1.100 e apenas parcialmente aos trabalhadores daquele setor cuja remuneração base se situasse entre os € 600 e os € 1.100 mensais.
Se, quanto à caracterização do fundamento subjacente à diferenciação implicada nas medidas orçamentais então impugnadas, o Tribunal considerou não haver razões para divergir do juízo seguido nos acórdãos n.ºs 396/2011 e 353/2012 − reconhecendo aí um “critério ponderativo, racionalmente credenciado”, que aponta, “quanto à repartição dos encargos públicos em contextos de emergência financeira”, para “a consideração diferenciada da posição daqueles que auferem rendimentos pagos por verbas públicas” −, já no plano da validação da medida da diferenciação num e noutro caso implicada, o juízo que incidiu sobre a cumulação da medida de redução remuneratória com a suspensão, total ou parcial, do pagamento do subsídio de férias ou quaisquer prestações correspondentes ao 14.º mês foi o oposto.
Depois de centrar o problema de constitucionalidade no efeito cumulativo produzido – e, como tal, na questão de saber se a medida da diferença constitucionalmente tolerada se esgotara na redução remuneratória temporária determinada pela Lei n.º 55-A/2010 e subsequentemente reiterada, ou seria ainda respeitada, no âmbito da “Lei do Orçamento do Estado para 2013, pela cumulação daquela redução com a suspensão do pagamento de um dos subsídios −, o Tribunal lembrou que a igualdade proporcional implica a “consideração do grau de diferenciação imposto, quer na sua relação com a finalidade desse modo prosseguida (…), quer no âmbito da comparação a estabelecer entre os sujeitos afetados pela medida e os sujeitos que o não são e, do ponto de vista daquela finalidade, entre uns e outros e o Estado”.
Em resultado destas ponderações, o Tribunal respondeu negativamente à questão de saber se o grau de desigualdade produzido pela decisão de associar às reduções remuneratórias salariais provindas do exercício orçamental de 2011 a suspensão do subsídio de férias se continha dentro da “justa medida” da diferenciação admissível. Na base da decisão, esteve essencialmente a consideração de que o argumento da eficácia imediata das medidas de suspensão de subsídio (quando entravamos no terceiro exercício orçamental para cumprimento do programa de assistência financeira) não tinham agora consistência valorativa suficiente para justificar o agravamento (em relação ao Orçamento de Estado para 2012) dos níveis remuneratórios dos sujeitos que auferem por verbas públicas”. Daí a conclusão de que as razões que permitiriam reconhecer a impossibilidade de o legislador encontrar medidas sucedâneas, num contexto de urgência de obtenção de resultados – e que o acórdão n.º 396/2011 aceitara, por referência à redução salarial prevista na Lei do Orçamento de 2011 –, não apresentavam já “o mesmo grau de convencimento em relação aos períodos orçamentais ulteriores”.
Quanto ao segmento dos trabalhadores do setor público cuja remuneração base mensal, por se situar entre os € 600 e €1.500, não sofria qualquer redução, e que se encontravam por isso excluídos do efeito cumulativo da medida, o Tribunal considerou que, tal como se afirmara já “no acórdão n.º 353/2012, perante a solução legislativa que resultava do artigo 21º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro”, nos encontrávamos na presença de “retribuições de tal modo exíguas que um sacrifício adicional por via da supressão, ainda que parcial, de complementos salariais que integram a retribuição, [era] já de si excessivamente gravoso”, o que justificava, do “ponto de vista do princípio da igualdade, dificuldades acrescidas de validação constitucional, tendo em conta que rendimentos muitíssimo superiores, inclusive rendimentos do trabalho”, se mantinham imunes às medidas.
28. No presente processo e face aos termos em que os pedidos surgem formulados, a questão da legitimação constitucional, perante o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, das normas do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 continua a exigir uma averiguação prévia quanto à racionalidade do fundamento subjacente à diferenciação que essas normas estabelecem e também quanto à razoabilidade da medida dessa diferenciação.
Este duplo escrutínio suporá, por seu turno, a consideração dos critérios que convergem na norma impugnada, isto é, tanto daquele que se refere, num primeiro momento, à opção de reiterar a medida, como daquele outro que, dizendo respeito à respetiva modelação, se relaciona já com os termos em que a afetação foi concretizada, por comparação com os adotados nas Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011 e 66-B/2012.
O conjunto das ponderações com que o Tribunal é deste modo confrontado obriga à consideração da medida impugnada a partir das múltiplas conexões contextuais, tanto factuais como normativas − certas delas ambivalentes ou até de sentido inverso − que a mesma agora apresenta.
29. Conforme decorre do já exposto a propósito da definição do âmbito de vigência temporal da medida, a redução remuneratória imposta pelo artigo 33.º da Lei n.º 33-C/2013 assume, no Relatório do Orçamento de Estado para 2014, uma finalidade mais ampla do que aquela que lhe foi apontada no âmbito das leis orçamentais anteriores, aparecendo agora como um instrumento de “revisão estrutural da despesa” suportada com o funcionamento da Administração Pública e de correção do “padrão de iniquidade [salarial] entre o público e o privado” (págs. 45 e 49).
Essas razões encontram-se desenvolvidamente expostas naquele Relatório (págs. 31-32, 41, 47-50), onde a adoção da medida relativa à remuneração dos trabalhadores do setor público é justificada nos seguintes termos:
«[...]
O cumprimento das obrigações de sustentabilidade orçamental resultantes dos tratados europeus e os compromissos específicos assumidos perante a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, no quadro do Programa e recentemente reafirmados no oitavo e nono exames regulares, são condições essenciais para o regresso do Estado português ao financiamento nos mercados internacionais. Sublinhe-se que as condições de financiamento têm sofrido evoluções de incerteza que introduzem fatores de risco adicionais e impõem uma disciplina financeira mais acentuada e capaz de garantir um ambiente de maior estabilidade. Torna-se por isso evidente, em especial neste derradeiro ano de execução do Programa de Ajustamento, que cumprir com as obrigações de consolidação orçamental não constitui apenas uma imposição decorrente de normas que vinculam o Estado, mas também uma condição essencial da possibilidade de aceder a meios de financiamento dos quais depende a solvabilidade e o cumprimento das tarefas constitucionais fundamentais do Estado.
Tendo presente este contexto é, pois, imprescindível proceder à substituição das medidas de contenção da despesa constantes dos Orçamentos do Estado para 2012 e 2013 por outras suscetíveis de assegurar o necessário efeito orçamental. Recorde-se que o conjunto de medidas de consolidação inicialmente fixado para 2012 permitiria uma redução na despesa na ordem dos 2400 milhões de euro. A inviabilização de parte dessas medidas nos anos seguintes impôs o recurso à via do agravamento fiscal, como referido no Relatório do Orçamento do Estado para 2013, deixando por resolver o problema estrutural que consiste em realizar o ajustamento preferencialmente pela via da despesa. No entanto, um novo aumento generalizado de impostos, num período de recuperação económica do país, teria custos económicos e sociais difíceis de comportar. Assim, é agora necessário prosseguir o ajustamento concedendo a prioridade ao lado da despesa, como aliás sempre esteve previsto no Memorando de Entendimento.
É precisamente neste contexto que se situa o ajustamento da medida de redução das remunerações de todos os trabalhadores das Administrações Públicas e do Setor Empresarial do Estado que, substituindo as medidas de caráter transitório que vigoram desde o exercício orçamental de 2011 (antes mesmo da assinatura do Memorando), se inserem todavia no seu natural desenvolvimento, tendo em vista alcançar os objetivos de consolidação atrás enunciados.
Assim, será aplicada uma redução remuneratória progressiva entre 2,5% e 12%, com caráter transitório, às remunerações mensais superiores a 600 euro de todos os trabalhadores das Administrações Públicas e do Setor Empresarial do Estado, sem qualquer exceção, bem como dos titulares de cargos políticos e outros altos cargos públicos. Serão todavia protegidos os rendimentos mensais até 600 euro, uma vez que se estabelece que os trabalhadores com remunerações iguais ou inferiores a este valor não são sujeitos à redução e que se assegura que os trabalhadores sujeitos à medida nunca receberão uma remuneração mensal ilíquida inferior a 600 euro. Acima dos 2.000 euro, a taxa de redução aplicável é de 12%.
Importa sublinhar que a aplicação da redução às remunerações se efetiva por reformulação da norma que estabelecia as reduções remuneratórias introduzidas pelo Orçamento do Estado para 2011 (e mantidas desde a sua entrada em vigor), que pressupunham uma redução entre 3,5% e 10% para rendimentos mensais superiores a 1500 euro, passando essa redução a ser entre 2,5% e 12% para rendimentos mensais superiores a 600 euro.
Refira-se que a redução do limite inferior, a partir do qual as medidas são aplicáveis, teve o único propósito de, mantendo embora a isenção absoluta dos rendimentos ilíquidos inferiores a 600 euro, dirimir uma inadequada política de rendimentos na Administração Pública. Com efeito, o estudo solicitado pelo Governo a uma consultora internacional demonstra que as práticas salariais da Administração Pública diferem substancialmente do padrão que é observado no setor privado, sugerindo um padrão de iniquidade entre o público e o privado. Depreende-se que no setor público existe um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do setor privado. Também recentemente a OCDE reconheceu a existência de um elevado diferencial entre salários no setor privado e salários no setor público
Acresce ainda que, segundo relatório mais recente do Banco de Portugal se verifica que, desde o início do Programa de Ajustamento, uma grande parte dos trabalhadores do setor privado sofreram uma redução na sua remuneração. Nesse sentido, entende-se que, na atual conjuntura, a redução remuneratória a aplicar deverá manter a progressividade mas deverá tender também a ser mais equitativa, quer dentro das Administrações Públicas quer face ao setor privado, tal como sugerido pela análise acima referida.
[...]
Um aumento generalizado da carga fiscal teria custos excessivos
[…]
Assim, a margem de manobra para prosseguir a redução do défice por esta via está hoje mais reduzida. Um aumento significativo de impostos teria assim custos económicos e sociais excessivos difíceis de comportar, dado que a carga fiscal é já elevada em Portugal. O aumento da carga fiscal desde o início do Programa de Ajustamento foi dos mais elevados na Europa. Novos aumentos expressivos de carga fiscal num período de início de recuperação económica como o da atual conjuntura seriam contraproducentes. O foco do ajustamento orçamental em 2014 deve, portanto, ser concentrado na redução da despesa pública.
[…]
Em 2013, as despesas com pessoal totalizarão cerca de 17 mil milhões de euro, ou seja, 22% da despesa pública total. Este valor equivale a quase 11% do PIB, o que numa perspetiva histórica representa o segundo valor mais baixo desde o início da área do euro (...). No entanto, este é ainda um valor superior às médias da área do euro e da União Europeia (...). O ajustamento das despesas com pessoal deve, portanto, continuar até que Portugal consiga dimensionar a sua Administração Pública para níveis compatíveis com a sua capacidade financeira.
[...]
As iniciativas propostas pelo Governo têm como princípio global a equidade entre os trabalhadores do setor público e os do setor privado, que têm sido os principais visados dos desenvolvimentos negativos no mercado de trabalho. Em reação às reduções na procura, várias empresas têm procurado reduzir os custos salariais essencialmente por três vias:
- Redução das remunerações: segundo estimativas do Banco de Portugal no último Boletim Económico relativas aos trabalhadores que mantêm o mesmo empregador em 2011 e 2012, observou-se “um aumento da fração de trabalhadores com reduções de remuneração, que ascendeu a 22,2 e 23,0%, respetivamente.” Os dados indicam ainda que 39,4% dos trabalhadores tiveram pelo menos uma redução remuneratória neste período;
- Rotação de trabalhadores: a contratação de trabalhadores com menores salários do que os trabalhadores que saem da empresa é também um mecanismo de redução dos custos salariais. No mesmo documento, o Banco de Portugal calcula que a “remuneração média dos trabalhadores que entraram em 2012 foi mais baixa, em cerca de 110 euro ou 11%, do que a remuneração média dos trabalhadores que cessaram contrato em 2011”. Este processo envolveu 776 mil trabalhadores, ou seja, aproximadamente 16% da população empregada;
- Aumento do desemprego: excetuando a não-renovação de contratos a termo da Administração Pública, este é um fenómeno que decorre do ajustamento do setor privado, seja através do despedimento de trabalhadores ou de falências de empresas. A taxa de desemprego tem aumentado desde 2010, ano em que se registou 10,8%, prevendo-se um valor de 17,7% em 2014. Esta variação equivale a aproximadamente 350.000 trabalhadores. No entanto, no setor público o risco de desemprego é quase nulo para a maioria dos trabalhadores em funções públicas.
Por este motivo, as medidas no âmbito dos recursos humanos da Administração Pública foram definidas de forma a [a]lterar a política de rendimentos do setor público, tanto ao nível das remunerações como dos suplementos, alargando o esforço de consolidação orçamental à generalidade dos trabalhadores.
[...]
Alteração da Política de Rendimentos
Uma reforma da Administração Pública deve melhorar, dentro da margem financeira possível, a competitividade das remunerações públicas do Estado relativamente a alguns grupos profissionais prioritários e ajustar para os níveis de mercado a remuneração de outros grupos, relativamente aos quais o Estado pagará, porventura, acima do que é a prática no privado. O estudo solicitado pelo Governo a uma consultora internacional veio demonstrar genericamente que as práticas salariais da Administração Pública diferem substancialmente do padrão que é observado no setor privado, sugerindo um padrão de iniquidade entre o público e o privado. Depreende-se que no setor público existe um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do setor privado.
Recorda-se que, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2011, em período de crise e dada a urgência do ajustamento, foi decidido aplicar um corte de caráter temporário e progressivo entre 3,5% e 10%, afetando os rendimentos mais elevados. Essa redução remuneratória foi mantida até 2013. Para 2014, dado que a recuperação económica e, em particular, no mercado de trabalho está a ser mais lenta do que a prevista aquando do início do programa de ajustamento, entende-se que, na atual conjuntura, a redução remuneratória a aplicar deve manter a progressividade mas tendendo a ser mais equitativa, quer dentro das Administrações Públicas quer face ao setor privado, tal como sugerido pela análise acima referida.
[…]
Assim, será aplicada uma redução progressiva entre 2,5% e 12%, com caráter transitório, às remunerações mensais superiores a 600 euro de todos os trabalhadores das Administrações Públicas e do Setor Empresarial do Estado (SEE), bem como dos titulares de cargos políticos e outros altos cargos públicos.
Serão todavia protegidos os rendimentos mensais até 600 euro, aplicando-se apenas a redução necessária para a perceção desse valor.
Esta medida substitui a redução de caráter transitório entre 3,5% e 10% para rendimentos mensais acima de 1500 euro introduzida pelo Orçamento do Estado para 2011 (e mantidas desde 1 de janeiro de 2011).
[...]
Com esta alteração, assegura-se que o esforço de contenção é melhor distribuído por um maior grupo de trabalhadores. A medida em vigor desde 2011 concentrava os cortes em apenas cerca de 50% dos trabalhadores.
Em contraste, a regra agora proposta é mais equitativa no sentido em que protege os verdadeiramente com menos recursos (abaixo dos 600 euro), cerca de 10% dos funcionários públicos, e distribui a necessidade de redução pelos restantes de forma progressiva até valores de remuneração de 2000 euro.
[...]
A aplicação de uma taxa fixa a partir dos 2.000 euro tem como objetivo não agravar ainda mais a fraca competitividade das remunerações públicas do Estado relativamente ao setor privado para os grupos com maiores qualificações e responsabilidade. Com efeito, tal como enunciado acima, trata-se de grupos para os quais as condições oferecidas são menos competitivas que as do setor privado. Para além disso, estes trabalhadores são os que sofreram o maior agravamento fiscal nos últimos anos. Por isso, taxas de redução ainda mais elevadas constituiriam uma dupla penalização excessiva».
30. Apesar do mais amplo enquadramento fundamentador que agora é dado à redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público, é patente que a opção persiste relacionada, em termos diretos e imediatos, com a prossecução do mesmo interesse público que conduziu à adoção das medidas congéneres previstas nas Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011 e 66-B/2012, isto é, com a “consecução de fins de redução da despesa pública e de correção de um excessivo desequilíbrio orçamental” (acórdão n.º 396/2011), de acordo com um plano, plurianual mas temporalmente delimitado, definido a partir o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, o qual se estende ainda ao exercício orçamental de 2014, fixando, de acordo com a concretização calendarizada aí prevista para aqueles objetivos, o limite quantitativo de 4% ao défice previsto para este ano.
Ora, conforme se afirmou no acórdão n.º 353/2012 e se repetiu no acórdão n.º 187/2013, o PAEF “implicou a satisfação de determinadas condições prévias por parte das autoridades portuguesas”, sendo constituído por um «conjunto de instrumentos jurídicos, os quais foram aprovados, por um lado, pelo Governo Português e, por outro lado, pelo Conselho Executivo do Fundo Monetário Internacional, bem como pelo Governo Português e pela Comissão Europeia (em nome da União Europeia) e pelo Banco Central Europeu». Tais instrumentos jurídicos são “vinculativos para o Estado Português”, impondo “a adoção pelo mesmo das medidas neles contempladas como condição do cumprimento faseado dos contratos de financiamento celebrados entre as mesmas entidades”. Deles resulta que «Portugal deve adotar um conjunto de medidas e de iniciativas legislativas, inclusivamente de natureza estrutural, relacionadas com as finanças públicas, a estabilidade financeira e a competitividade, as quais deverão ocorrer durante um período de 3 anos».
No plano da identificação do interesse público prosseguido pelo legislador orçamental, a afetação das remunerações pagas por verbas públicas mantém-se, assim, objetivamente atribuível ao esforço de consolidação para que o Estado foi convocado por força do PAEF, não sendo tal conclusão afetável pelas mais amplas linhas de atuação programática com que a medida surge concomitantemente relacionada.
E isto porque, apesar de associada agora ao mais vasto programa de diminuição estrutural da despesa e, de forma mais concreta, ao processo de revisão da política salarial na Administração Pública, a redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público, tal como se encontra concretizada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, não se inscreve no âmbito de qualquer reforma sistemática, nem é efetivamente enquadrada por medidas estruturais que permitam convertê-la em instrumento de prossecução de qualquer daqueles objetivos. Pelo contrário: ao manter como referência, quanto ao seu âmbito subjetivo de aplicação, um universo que remete para o mais lato dos sentidos admitidos pela delimitação conceitual da tradicional noção de “função pública” – isto é, aquele que abrange, «não só todos os funcionários e agentes do Estado e demais pessoas coletivas de direito público mas também os titulares de cargos públicos, incluindo os próprios titulares dos órgãos de soberania» (acórdão n.º 187/2013) —, a redução remuneratória imposta pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 conserva integralmente as características de medida instrumental para a redução do défice público.
Por isso, à luz, quer do enquadramento objetivo que continua a resultar do PAEF, quer dos termos em que se encontra uma vez mais normativamente concretizada, a redução remuneratória imposta para 2014 aos trabalhadores do setor público (apenas) permite que nela continue a reconhecer-se uma medida transitória, instrumentalmente pré-ordenada “à realização de objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, num contexto de particular excecionalidade”, tendo em vista a prossecução do “interesse público real, percetível, claro e juridicamente enquadrável, coincidente com a preservação da capacidade de financiamento do Estado no âmbito das obrigações assumidas e, por essa via, com as possibilidades de realização das tarefas fundamentais a seu cargo” (acórdão n.º 187/2013).
Apesar de politicamente subjacente, a perspetiva mais ampla seguida pelo legislador de 2013 não encontra nos preceitos orçamentais sob sindicância expressão normativa que justifique – ou até mesmo autorize − a reconfiguração do campo de ponderação em que o Tribunal consecutivamente situou a apreciação das medidas de afetação salarial introduzidas em exercícios orçamentais condicionados pelo cumprimento das obrigações estabelecidos no PAEF, mantendo, por isso, plena atualidade o reconhecimento de que, naquele contexto, “não é patentemente desrazoável que o legislador” atribua “às despesas com as remunerações dos trabalhadores com funções públicas um “particularismo suficientemente distintivo e relevante para justificar um tratamento legal diverso do concedido a situações equiparáveis (sob outros pontos de vista)”.
A opção concretizada na afetação dessas remunerações e o tratamento diferenciado que ela configura encontram, assim, agora como antes, “suficiente suporte na sua peculiar relação com os fins das normas questionadas” (acórdão n.º 187/2013). Na medida em que são remunerados através de verbas públicas (e apenas nessa medida), os trabalhadores do setor público posicionam-se de forma diferenciada perante o objetivo da consolidação orçamental definido a partir do cumprimento dos limites quantitativos anuais fixados para o défice, constituindo este um interesse público suficientemente percetível e constitucionalmente fundado para que nele possa continuar a fixar-se o ponto de referência implícito na ratio do tratamento distintivo a que aqueles trabalhadores se mantêm sujeitos.
31. Embora sem contestar a subsistência do interesse público que justificou a diferenciação gerada em matéria salarial, os requerentes põem em causa a possibilidade de se continuar a estabelecer entre esse interesse público e a desigualdade produzida pela redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público a relação de “equitativa adequação” (acórdão n.º 330/93) necessária à justificação constitucional da própria decisão de renovar a medida.
Ao quarto ano consecutivo de aplicação, a afetação das contrapartidas remuneratórias devidas no âmbito da relação de emprego público não poderá já, na perspetiva dos requerentes, beneficiar da justificação com que, no confronto com medidas sucedâneas ou alternativas, começou por ser acolhida.
Esse argumento já foi ponderado, como se referiu, no acórdão n.º 187/2013, a propósito de saber se “a medida da diferença constitucionalmente tolerada se esgot[ara] na redução remuneratória temporária determinada pela Lei n.º 55-A/2010”, (…) ou, apesar de ultrapassada já, no contexto da Lei do Orçamento de Estado para 2012, pela associação àquela da suspensão do pagamento dos dois subsídios (acórdão n.º 353/2012), [seria] ainda respeitada, na Lei do Orçamento do Estado para 2013, pela cumulação daquela redução com a suspensão do pagamento de um dos subsídios”.
Perante a invocação pelo legislador, quando impôs a redução de vencimentos aos servidores do Estado na Lei do Orçamento para 2011 e, no ano seguinte, adicionou a essa a medida a ablação dos subsídios de férias e de Natal, da necessidade urgente de corrigir os desequilíbrios orçamentais e o profundo agravamento das finanças públicas, e da absoluta relevância de tais medidas para assegurar as metas exigentes a que Portugal se vinculou e para preservar a manutenção e sustentabilidade do Estado Social e garantir o financiamento da economia portuguesa” (Relatório OE 2012, págs. 21-22), o Tribunal considerou que, no terceiro exercício orçamental consecutivo, “o argumento da eficácia imediata das medidas de suspensão de subsídio” não tinha já “consistência valorativa suficiente para justificar o agravamento (em relação ao Orçamento de Estado para 2012) dos níveis remuneratórios dos sujeitos que auferem por verbas públicas”. E concluiu que não servia então de “justificação para a supressão de um dos subsídios que integram a retribuição dos trabalhadores da Administração Pública, a par da diminuição da remuneração mensal”, que essa fosse ainda a medida com “efeitos seguros e imediatos na redução do défice e a única opção (...) para garantir a prossecução do objetivo traçado”.
No entanto, apesar de o tempo decorrido desde a entrada em vigor da Lei n.º 55-A/2010 implicar um acréscimo de exigência colocada ao legislador “no sentido de encontrar alternativas que evitem que, com o prolongamento, o tratamento diferenciado se torne claramente excessivo para quem o suporta”, o Tribunal tem expressamente assumido nos acórdãos anteriores que, neste contexto financeiro, continua a ser “certamente admissível alguma diferenciação entre quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia, não se podendo considerar (…) injustificadamente discriminatória qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida apenas aos primeiros” (acórdão n.º 353/2012).
Constituindo o ano de 2014 um exercício orçamental condicionado ainda pelo esforço de consolidação orçamental imposto no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira, não existem razões para alterar este entendimento.
32. Poderá ainda contrapor-se o argumento, invocado por ambos os grupos de requerentes, segundo o qual o legislador orçamental, ao promover, em simultâneo com a manutenção da afetação salarial dos trabalhadores do setor público, o desagravamento fiscal de uma certa categoria de contribuintes, dá ele próprio sinais de que aquela afetação se tornou dispensável para o esforço de prossecução da sustentabilidade das finanças públicas.
O desagravamento fiscal a que os requerentes se referem é aquele que resultará da reforma do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), no âmbito da qual se prevê, nomeadamente, a redução gradual da taxa aplicável, atualmente fixada em 25%, para 23%, em 2014, embora compensada pela continuidade da sujeição das “empresas com lucros mais elevados (…) a uma taxa adicional, a título de derrama estadual, de 3% sobre os lucros superiores a 1,5 milhões de euro” e das empresas com lucros superiores a 7,5 milhões de euro (…) a uma taxa adicional de 5%”, bem como pelo “aumento da tributação autónoma incidente sobre as viaturas automóveis detidas pelas empresas” (Relatório OE 2014, págs. 64 e 66);
Não parece, todavia, que esta medida forneça uma contraindicação decisiva para sustentar justificadamente a conclusão de que não permanece a situação financeira que levou às reduções salariais. A diminuição da taxa de IRC é apresentada como visando o incremento da disponibilidade financeira das empresas — sobretudo das pequenas e médias empresas –, tendo em vista a criação de novos postos de trabalho e/ou a preservação dos postos de trabalho atualmente existentes. A lograr-se esse objetivo – e o Tribunal não tem razões para, à partida, negar a adequação da diminuição da taxa de IRC para contribuir para os alcançar – isso terá um impacto duplamente positivo, em ambos os lados da contabilização orçamental, tanto pela diminuição das prestações de desemprego, como pelo aumento de receitas fiscais, adveniente de alguma dinamização da atividade económica.
Aliás, de vários quadrantes políticos se advoga um mix de políticas públicas, nesta matéria, conjugando medidas de austeridade com medidas potenciadoras do investimento e da retoma de um nível de consumo interno propiciador de crescimento económico.
Ainda que o impacto orçamental das duas medidas em confronto fosse porventura equivalente – e não é o caso − , as implicações económicas que a cada uma delas se encontra associada manter-se-iam ainda suficientemente diversificadas de tal modo que não será possível considerar o desagravamento fiscal em sede de IRC como alternativa aos cortes salariais ou como motivo justificativo da desnecessidade da sua implementação.
33. Não sendo possível, em suma, considerar dispensável, do ponto de vista do interesse público na consolidação orçamental, qualquer afetação das remunerações pagas por verbas públicas, nem sendo comprovável jurisdicionalmente o argumento, invocado pelos requerentes do Processo n.º 47/2013, de que aquela afetação não constituiu um meio idóneo e adequado para a redução do défice das contas públicas – isto é, que sem aquela afetação esse défice não teria sido superior ao efetivamente registado nos anos de 2012 de 2013 −, a legitimação constitucional da decisão de renovar aquela afetação deverá permanecer, assim, no contexto da Lei do Orçamento de Estado para 2014, como um problema relativo à compatibilidade com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos do tratamento diferencial imposto aos trabalhadores do setor público, na dimensão em que surge agora concretizado.
Ou seja, não é no fundamento, mas na medida de diferenciação, que reside o ponto fulcral da admissibilidade constitucional da redução remuneratória que está agora em juízo.
Este segundo nível de escrutínio, tendo por objeto a valoração, com acolhimento de exigências de proporcionalidade, da extensão da diferenciação, desenvolve-se em torno da ideia segundo a qual a “desigualdade do tratamento deverá, quanto à medida em que surge imposta, ser proporcio¬nal, quer às razões que justificam o tratamento desigual – não poderá ser exces¬siva, do ponto de vista do desígnio prosseguido ¬—, quer à medida da diferença verificada existir entre o grupo dos destinatários da norma diferenciadora e o grupo daqueles que são excluídos dos seus efeitos ou âmbito de aplicação” (acórdão n.º 187/2013).
Daqui resulta que, no âmbito da averiguação da licitude constitucional da extensão em que é imposta a desigualdade de regime gerada pela afetação salarial dos trabalhadores do setor público, o juízo a formular será diretamente influenciado pela ideia de que, “para além de certa medida, esse acréscimo de sacrifício traduz um tratamento inequitativo e desproporcionado, não podendo ser justificado pelas vantagens comparativas que esse modo de consolidação orçamental possa apresentar quando comparado com alternativas disponíveis”. E isto porque, conforme se escreveu ainda no acórdão n.º 187/2013, “apesar do reconhecimento de uma diferença justificativa de (alguma) desigualdade de tratamento, não pode ignorar-se que subsiste entre os sujeitos afetados e os sujeitos não afetados (...), de outro ponto de vista também digno de consideração (o da justa repartição dos encargos públicos), uma dimensão de igualdade a que a solução de diferenciação não poderá ser insensível”.
34. É logo no primeiro plano, o da relação meio-fim, que começam por situar-se os argumentos de inconstitucionalidade invocados em ambos os pedidos. Tendo por objeto a medida da diferenciação imposta, este ponto de vista exige, desde logo, que a variação de tratamento introduzida ocorra na proporção em que se manifesta, em cada fase do processo de consolidação, a premência do interesse público que a justifica.
Na perspetiva seguida pelos requerentes, o tempo já decorrido desde a entrada em vigor da Lei n.º 55-C/2010 e a exigência que logo aí se formou no sentido da adoção de medidas alternativas, se não constitui um fundamento suficiente para subtrair à liberdade constitutiva do legislador orçamental a possibilidade de renovar para 2014 a afetação das contrapartidas remuneratórias dos trabalhadores do setor público, deverá, pelo menos, impedi-lo de ampliar a medida da diferença implicada no regime de redução da retribuição mensal sucessivamente constante dos artigos 19.º, 20.º e 27.º das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011 e 66-B/2012, respetivamente. Ora, é esse o efeito, quer do abaixamento de € 1.500 para € 675 do valor a partir do qual as remunerações base mensais ficam sujeitas a redução, quer da elevação de 10% para 12% do coeficiente máximo de redução aplicável.
Para além da impossibilidade de reconhecer na atual conformação do interesse público na consolidação orçamental uma variação proporcional à medida daquela desigualdade, os requerentes invocam ainda um argumento extraído do plano relativo à medida do sacrifício imposto aos trabalhadores do setor público no confronto com a situação dos demais titulares de rendimentos provenientes do trabalho, de acordo com o qual o tratamento agora imposto, ao cumular-se, quer com a perda de rendimento determinada nos anos anteriores, quer com a “redução remuneratória indireta”, em que entendem traduzir-se tanto o aumento da carga horária para as 40 horas como a elevação da contribuição para a ADSE, agrava a diferença entre os sujeitos afetados e aqueles que o não são, colocando-a para lá dos limites admissíveis de diferença do grau de sacrifício que a uns e outros é imposto.
Assim configurado, o problema da compatibilidade do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos passa a ser o de saber se a medida da diferença constitucionalmente tolerada, tida por respeitada na redução salarial entre 3,5% e 10% imposta aos trabalhadores do setor público com remunerações totais ilíquidas mensais superiores a € 1.500 pela Lei n.º 55-A/2010, mas ultrapassada já, no contexto da Leis do Orçamento de Estado para 2012 e para 2013, pela cumulação com aquela redução da suspensão, total ou parcial, do pagamento, respetivamente, dos dois ou de um subsídio aos trabalhadores com remunerações base mensais de valor igual ou superior a € 600, pode ser observada, no contexto da Lei do Orçamento de Estado para 2014, pelo agravamento que se manifesta, quer na elevação para 12% da taxa máxima aplicável, quer na sujeição a redução das remunerações base mensais de valor compreendido entre os € 675 e os € 1.500.
35. No plano normativo, o contexto no âmbito do qual se determina para 2014 a redução progressiva, entre 2,5% e 12%, das remunerações base mensais superiores a € 675 de todos os trabalhadores do setor público, não é substancialmente diverso daquele em que se situou a apreciação da validade constitucional da dimensão da desigualdade resultante do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, isto é, daquela que então correspondia à manutenção da redução, entre 3,5% e 10%, das remunerações base mensais de valor superior a € 1.500, associada à suspensão do pagamento do subsídio de férias ou equivalente, prevista de forma integral para aos trabalhadores do setor público cuja remuneração base mensal fosse superior a € 1.100 e apenas em parte para os trabalhadores daquele setor cuja remuneração base se situasse entre os € 600 e os € 1.100 mensais.
As medidas de alcance geral introduzidas pela Lei n.º 66-B/2012 transitam, no essencial, para o ano de 2014. Trata-se de um conjunto de medidas tomadas, quer pelo lado da receita, quer pelo lado da despesa, e que continuarão a aplicar-se cumulativamente com a redução de vencimentos.
Algumas destas últimas continuarão a repercutir-se especialmente na situação profissional e nível remuneratório dos trabalhadores em funções públicas, ou, mais em geral, nos rendimentos do trabalho. É o caso da redução adicional na compensação sobre o valor do pagamento do trabalho extraordinário em dia normal de trabalho, aplicável aos trabalhadores cujo período normal de trabalho não exceda as sete horas por dia ou as trinta e cinco horas por semana, equivalente a 12,5 % da remuneração na primeira hora e a 18,75% da remuneração nas horas ou frações subsequentes (artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 83-C/2013) e da redução para 25% do valor do acréscimo remuneratório devido por cada hora de trabalho extraordinário prestado em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, e em dia feriado (artigo 45.º, n.º 2, da Lei n.º 66-B/2012). É o caso, também, da proibição, como regra geral, de quaisquer valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões (artigo 39.º da Lei n.º 83-C/2013) e da atribuição de prémios de gestão aos gestores de empresas públicas, entidades reguladoras e institutos públicos (artigo 41.º da Lei n.º 83-C/2013). Estas medidas surgem agora associadas ao aumento da duração do período normal de trabalho de referência dos trabalhadores em funções públicas para oito horas diárias e quarenta horas semanais, entretanto estabelecido pela Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, “com o objetivo, entre outros, de reduzir os encargos de funcionamento dos serviços, designadamente com o pagamento de horas extraordinárias” (Relatório OE 2014, págs. 51-52). No âmbito ainda das medidas de racionalização dos custos com pessoal, mantém-se prevista a redução do número de contratos de trabalho a termo resolutivo (artigo 55.º da Lei n.º 83-C/2013), bem como a redução em 50% do valor das subvenções pagas aos trabalhadores que, no âmbito da mobilidade especial, se encontram de licença extraordinária (artigo 38.º da Lei n.º 83-C/2013). Para além disso, mantém-se a redução no seu conjunto, no mínimo, em 3% do número de trabalhadores do setor público empresarial face aos existentes em 31 de dezembro de 2013, com exceção dos hospitais que sejam entidades públicas empresariais (artigo 60.º da Lei n.º 83-C/2013). Mantêm-se, por último, inalteradas as regras de atribuição do abono de ajudas de custo nas deslocações em serviço, bem como a redução de subsídio de residência/habitação atribuído a titulares de cargos públicos que resultaram das modificações introduzidas ao Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de abril, pelo artigo 41.º da Lei n.º 66-B/2012. Para 2014, as medidas previstas pelo lado da despesa com pessoal incluem a aplicação do regime de requalificação de trabalhadores em funções públicas instituído pela Lei n.º 80/2013, de 28 de novembro, publicada na sequência do decidido pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 472/2013, estimando-se com esta medida um impacto de redução da despesa em 59 milhões de euro (Relatório OE 2014, págs. 47 e 53).
Pelo lado da receita, transita para 2014 o forte agravamento fiscal resultante do conjunto de medidas introduzidas pelo artigo 186.º da Lei n.º 66-B/2012, designadamente as medidas relativas à redução dos escalões de IRS e à redução das deduções à coleta. Para além disso, e sob invocação da finalidade de “promover uma maior igualdade na distribuição do impacto das medidas de consolidação orçamental entre os diversos setores da sociedade portuguesa” através do reforço de um princípio que se considerou haver já “existido no ano transato”, prevê-se para 2014 um outro conjunto de medidas pelo lado da receita que, para além da reforma do Imposto sobre Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), já referida, incluem a: i) alteração do Imposto de Selo, a concretizar através de nova apresentação de “um pedido de autorização para legislar no sentido de criar uma nova taxa, até 0,3%, para incidir na generalidade das transações financeiras que tenham lugar em mercado secundário”; ii) alteração dos artigos 101.º, 104.º e 106.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo, com o objetivo de aproximar os níveis de tributação de todas as formas de tabaco (artigo 195.º da Lei n.º 83-C/2013); alteração ao Código do Imposto Único de Circulação, através da “introdução de um adicional de IUC, incidente sobre as viaturas ligeiras de passageiros movidos a gasóleo, tradicionalmente sujeitos a um regime fiscal mais favorável (cf. artigo 201.º da Lei n.º 83-C/2013); alteração ao artigo 49.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, através da redução em 50% da isenção concedida aos fundos de investimento imobiliário e aos fundos de pensões, em sede de IMI e IMT (artigo 206.º da Lei n.º 83-C/2013). Para além destas, preveem-se ainda outras medidas do lado da receita, em cujo âmbito se integra a alteração nas contribuições para ADSE, SAD e ADM, através do reforço das contribuições dos beneficiários titulares (cfr. artigo 46.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 118/83, de 25 de fevereiro, na versão resultante das alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 105/2013, de 30 de julho), tendo em vista a autossustentabilidade dos subsistemas de saúde, com um impacto orçamental estimado de 132 milhões de euro, valor correspondente a 0,1 % do PIB, bem como a contribuição sobre o setor energético, através da criação de uma contribuição extraordinária com o objetivo de financiar mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do mesmo- artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013 (Relatório OE 2014, págs. 32, 47, 64 e 67).
36. Se, no plano normativo, o contexto em que se inscreve a apreciação da medida da diferenciação imposta pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 não diverge substancialmente daquele que serviu de base à ponderação implicada no juízo formulado no acórdão n.º 187/2013, já no plano da execução avultam algumas diferenças.
Quanto à premência da prossecução da finalidade que justificou a desigualdade de tratamento introduzida no âmbito da irredutibilidade salarial, não só não se poderá dizer que ela se encontra atenuada pela evolução posterior, como o esforço de consolidação orçamental daquele ponto de vista imposto é agora mais exigente.
Na linha da estratégia implementada e em conformidade com a calendarização de objetivos acordada com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, está prevista a fixação do défice orçamental em valores sucessivamente mais baixos. Na sequência da sétima avaliação dos progressos feitos pelas autoridades portuguesas na aplicação das medidas acordadas ao abrigo do Programa de Assistência Económica e Financeira, o limite quantitativo para o défice orçamental foi revisto para 4% em 2014. Sob o pressuposto de que o défice nominal se fixará no valor final de 5,5% em 2013, considerou-se ser necessária, para atingir nessa conjuntura o valor de 4% estabelecido para 2014, a execução de medidas de consolidação orçamental no valor global de 3.901 milhões de euro, com um impacto equivalente a 2,3% do PIB” (Relatório OE 2014, pág. 39).
É no contexto desse esforço adicional, prosseguido através da prioridade assumidamente concedida à redução da despesa, que se enquadram as medidas relativas às despesas com o pessoal. Estas, que globalmente representam 1.320 milhões de euro, valor correspondente a 0,8% do PIB, contemplam em especial a redução remuneratória determinada pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, contabilizada em 643 milhões de euro, valor que representa 0,4% do PIB (Relatório OE 2014, pág. 47).
37. É, pois, neste contexto, caracterizado pela persistência – ou acentuação até – do conjunto de medidas de racionalização dos custos com o pessoal introduzido pela Lei n.º 66-B/2012 e, simultaneamente, por acrescidas exigências quanto ao défice, ainda que acompanhadas pela previsão do crescimento de 0,8% do PIB, que, agora para o ano de 2014, continuará a sujeitar-se quem recebe remunerações salariais de entidades públicas um esforço adicional que não é exigido aos titulares de outras espécies de rendimentos.
Esta opção de diferenciação, que decorre da prioridade concedida à redução da despesa pública, em particular da relativa aos encargos com o pessoal, no âmbito do processo de consolidação das finanças públicas e se baseia na assunção de que entre os trabalhadores do setor público e trabalhadores do setor privado existe uma desigualdade à partida, a estes desfavorável, encontra-se explicitada no Relatório do Orçamento do Estado para 2014.
É elucidativa a seguinte passagem (págs. 48-49):
“As iniciativas propostas pelo Governo têm como princípio global a equidade entre os trabalhadores do setor público e os do setor privado, que têm sido os principais visados dos desenvolvimentos negativos no mercado de trabalho. Em reação às reduções na procura, várias empresas têm procurado reduzir os custos salariais essencialmente por três vias:
- Redução das remunerações: segundo estimativas do Banco de Portugal no último Boletim Económico relativas aos trabalhadores que mantêm o mesmo empregador em 2011 e 2012, observou-se “um aumento da fração de trabalhadores com reduções de remuneração, que ascendeu a 22,2 e 23,0%, respetivamente.” Os dados indicam ainda que 39,4% dos trabalhadores tiveram pelo menos uma redução remuneratória neste período;
- Rotação de trabalhadores: a contratação de trabalhadores com menores salários do que os trabalhadores que saem da empresa é também um mecanismo de redução dos custos salariais. No mesmo documento, o Banco de Portugal calcula que a “remuneração média dos trabalhadores que entraram em 2012 foi mais baixa, em cerca de 110 euro ou 11%, do que a remuneração média dos trabalhadores que cessaram contrato em 2011”. Este processo envolveu 776 mil trabalhadores, ou seja, aproximadamente 16% da população empregada;
- Aumento do desemprego: excetuando a não-renovação de contratos a termo da Administração Pública, este é um fenómeno que decorre do ajustamento do setor privado, seja através do despedimento de trabalhadores ou de falências de empresas. A taxa de desemprego tem aumentado desde 2010, ano em que se registou 10,8%, prevendo-se um valor de 17,7% em 2014. Esta variação equivale a aproximadamente 350.000 trabalhadores. No entanto, no setor público o risco de desemprego é quase nulo para a maioria dos trabalhadores em funções públicas».
Por outro lado, o legislador afastou, em termos que foram já explanados, a opção política de fazer face à situação de restrição financeira através de um aumento generalizado da carga fiscal, que considerou terem custos económicos e sociais excessivos (cfr. supra n.º 34).
38. Conforme resulta da jurisprudência acima referida, se, por um lado, é inequívoco que o Tribunal entendeu ser admissível alguma desigualdade de regime entre os trabalhadores do setor público e do setor privado no âmbito da contribuição para o esforço de consolidação orçamental determinado por circunstâncias que se viu já estenderem-se ao ano de 2014 –, tendo julgado, por isso, não inconstitucionais as medidas que determinaram a redução, entre 3,5% e 10%, das remunerações base mensais de valor superior € 1.500 (acórdão n.º 396/2011) –, por outro, é igualmente certo que se concluiu pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, não só das medidas que, na Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, determinavam, para além da referida redução, a suspensão parcial ou total do pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores com remunerações base mensais de valor igual ou superior a € 600 (acórdão n.º 353/2012), como ainda daquelas que, na Lei n.º 66-B/2012, se propuseram associar àquela redução a suspensão parcial ou total do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês àqueles mesmos trabalhadores.
Em relação às correspondentes disposições anteriores, as normas constantes do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 impõem um grau de diferenciação entre trabalhadores do setor público e do setor privado e entre os rendimentos provenientes de remunerações pagas por entidades públicas e outro tipo de rendimentos que é:
i) superior ao que resultava do artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, na medida em que a redução se estende agora às remunerações base mensais de valor superior a € 675 e o limite máximo da taxa de redução progressivamente aplicável foi elevado de 10% para 12%;
ii) não tão acentuadamente diferenciador como aquele que foi imposto pelos artigos 20.º e 21.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, na medida em que a parcela do rendimento afetado é menor do que a que resultava da cumulação da redução prevista no artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, com a suspensão parcial ou total do pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores com remunerações base mensais de valor igual ou superior a € 600
iii) de sentido ambivalente em relação ao que decorria dos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012 na medida em que a proporção em que o rendimento é agora afetado é, em determinados segmentos, superior e noutros segmentos inferior àquela que resultava da cumulação da redução prevista no artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, com a suspensão parcial ou total do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês aos trabalhadores com remunerações base mensais de valor igual ou superior a € 600.
39. Quando confrontado com o esforço adicionalmente exigido dos trabalhadores do setor público através da redução da remuneração base mensal determinada pelos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011 e 66-B/2012, respetivamente, aquele que, por força do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, é imposto para 2014 revela-se claramente mais acentuado, verificando-se essa acentuação em relação à totalidade dos segmentos em que pode desdobrar-se o universo de sujeitos afetados pela medida. Nesta análise, é possível distinguir, para o efeito de quantificação do esforço da contribuição exigida aos trabalhadores do setor público, cinco distintos escalões de rendimento.
Assim, num primeiro escalão podemos enquadrar as remunerações mensais de valor igual ou inferior a € 675,00, que se mantêm excluídas do âmbito de incidência de qualquer coeficiente de redução.
Num segundo escalão, enquadram-se as remunerações base mensais de valor superior a € 675 até € 1.500, que, apesar de isentadas da redução determinada pelos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, respetivamente, são agora sujeitas, por força do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, a uma redução até 8,41%. No interior deste escalão, a redução determinada pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, sendo progressiva, ocorre nas seguintes proporções: i) 2,67%, relativamente a remunerações de valor igual a € 700; ii) 3,39% em relação a remunerações de valor igual a € 800; iii) 4,11% quanto a remunerações de valor igual a € 900; iv) 4,83% em relação a remunerações de valor igual a € 1.000; v) 6,26% relativamente remunerações de valor igual a € 1.200; vi) 7,69% em relação a remunerações de valor igual a € 1.400; e vii) 8,41% em relação a remunerações de valor igual a € 1.500.
Temos, depois, um terceiro escalão, onde se enquadram as remunerações base mensais superiores a € 1.500 e inferiores a € 2.000, às quais os artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, respetivamente, impuseram um corte de 3,5%, que o artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 eleva agora para um valor situado entre 8,42% a 11,99%. No caso de remunerações base mensais no valor de € 1.750, o coeficiente de redução sobe de 3,5% para 10,20%.
Num quarto escalão, enquadram-se as remunerações mensais iguais ou superiores a € 2.000 até € 4.165, as quais, sob a vigência dos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, respetivamente, ficaram sujeitas a um corte remuneratório entre 3,5% e 10%, corte esse que o artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 eleva agora para a taxa fixa de 12%. No caso de remunerações base mensais no valor de € 2.000, o coeficiente de redução agrava-se de 3,5% para 12%.
Finalmente, num quinto escalão, enquadram-se as remunerações mensais superiores € 4.165, as quais foram sujeitas pelos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, respetivamente, a uma redução de 10%, que se eleva para os 12% por força do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013.
40. No âmbito da análise comparativa do esforço adicional exigido aos trabalhadores do setor público, de acordo com as sucessivas modelações a que o mesmo vem sendo sujeito por parte do legislador orçamental, é ainda útil confrontar a extensão da desigualdade de tratamento implicada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 com aquela que, por constituir o resultado da acumulação da redução remuneratória determinada no 27.º da Lei n.º 66-B/2012 com a suspensão, total ou parcial, do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês, determinada pelo respetivo artigo 29.º, foi considerada excessiva, e por isso incompatível com o “princípio da igualdade proporcional e da justa repartição dos encargos públicos”, pelo acórdão n.º 187/2013.
Tal confrontação, conforme se perceberá, conduzir-nos-á, contudo, a resultados de sentido oposto consoante o escalão que se considere ou, nalguns casos – que constituem, de resto, a maioria-, consoante o segmento a que se atenda no interior de cada escalão.
Assim, num primeiro escalão, enquadram-se as remunerações mensais de valor igual ou superior a € 600 até € 675, que eram atingidas pela perda remuneratória determinada pela Lei n.º 66-B/2012, deixando de o ser no âmbito da Lei n.º 83-C/2013.
No segundo escalão, onde se enquadram as remunerações mensais de superior a € 675 até € 1.100, a fórmula adotada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 conduz à simultânea verificação de agravamento e atenuação do nível de sacrifício globalmente imposto pela Lei n.º 66-B/2012, tudo dependendo do segmento em concreto considerado. Assim: i) em relação a remunerações no valor de € 700, o coeficiente de afetação eleva-se de 2,24% para 2,67%; ii) em relação a remunerações no valor de € 800, a taxa de redução baixa dos 3,93% para os 3,39%; iii) em relação a remunerações no valor de € 900, a taxa de redução baixa de 5,54% para 4,11%; iv) relativamente a remunerações no valor de € 1.000, o coeficiente de redução baixa de 6,29% para 4,83%; v) em relação a remunerações no valor de € 1.100, a taxa de redução baixa de 7,14% para 5,54%. Continuando a ter por referência a medida da diferenciação originada pela cumulação entre si das medidas previstas nos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012, assiste-se, assim, neste escalão, a um desagravamento, entre 0,54% a 1,6%, do sacrífico daquelas resultante, acompanhado por um agravamento, de 0,54%, no segmento mais baixo.
No terceiro escalão, que compreende as remunerações de valor superior a € 1.100 até € 1.500, verifica-se a mesma ambivalência: i) em relação a remunerações no valor de € 1.200, a taxa de redução baixa de 7,14% para 6,26%; ii) em relação a remunerações no valor de € 1.400, a mesma taxa eleva-se dos 7,14% para os 7,69%; e iii) relativamente a remunerações no valor de € 1.500, o coeficiente de afetação sobe de 7,14% para 8,41%. Reportando-nos, uma vez mais, à intensidade da afetação da irredutibilidade remuneratória decorrente do efeito cumulado das medidas previstas nos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012, observa-se, assim, neste terceiro escalão, um agravamento, entre 0,46% e 1,27%, do sacrifício por aquelas imposto, acompanhado de um desagravamento de cerca de 0,88% no segmento mais baixo.
Temos, depois, um quarto escalão, que enquadra as remunerações mensais superiores a € 1.500 e inferiores a € 2.000, onde a ambivalência persiste: i) em relação a remunerações no valor de € 1.600, a taxa de redução baixa de 10,39% para 9,13%; ii) em relação a remunerações no valor de € 1.700, o coeficiente de redução baixa de 10,39% para 9,84%; iii) relativamente a remunerações no valor de € 1.800, a taxa de redução sobe de 10,39% para 10,56%; e iv) em relação a remunerações no valor de € 1.900, a mesma taxa de redução eleva-se de 10,39% para 11,28%. Neste escalão, verifica-se, assim, em simultâneo, um desagravamento, entre 0,55% e 1,6%, no segmento mais baixo, e um agravamento, entre 0,17 e 0,39%, no segmento mais alto.
Num quinto escalão, enquadram-se as remunerações mensais iguais ou superiores a € 2.000, até € 4.165, onde a ambivalência se verifica uma vez mais: i) em relação a remunerações no valor de € 2.000, a taxa de redução sobe de 10,39% para 12%; ii) em relação a remunerações no valor de € 2.500, o coeficiente de redução baixa de 12,71% para 12%; iii) relativamente a remunerações no valor de € 3.000, a taxa de redução baixa de 14,26% para 12%; iv) em relação a remunerações no valor de € 3.500, a mesma taxa de redução baixa de 15,37% para 12%; e v) relativamente a remunerações no valor de € 4.165, a taxa de redução baixa de 16,43% para 12%. Neste escalão, verifica-se, assim, um agravamento de 1,61% no segmento mais baixo, acompanhado de um desagravamento, entre 0,71% e 4,43%, nos demais segmentos.
Finalmente, num sexto escalão, enquadram-se as remunerações mensais superiores € 4.165, relativamente às quais se verifica um desagravamento generalizado do grau de sacrifício globalmente imposto pela Lei n.º 66-B/2012, correspondente à descida da taxa de redução de 16,43%, desta decorrente, para a taxa máxima de 12% fixada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013.
41. Quando analisada no contexto definido pelas sucessivas modelações da medida do tratamento diferencial imposto aos trabalhadores do setor público, a solução constante do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/83 introduz, por um lado, um relevante acréscimo na dimensão do sacrifício em confronto com o resultante dos termos dos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, e nem sempre mitiga a extensão da desigualdade que passou a verificar-se, no âmbito da Lei n.º 66-B/2012, por efeito da cumulação daquela redução remuneratória com a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês.
Aquele agravamento na passagem de um regime para o outro manifesta-se nos aspetos seguintes: i) os trabalhadores do setor público com remunerações base mensais de valor compreendido entre € 675 e € 1500 deixam de beneficiar da isenção que lhes advinha da fórmula seguida nos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, respetivamente, passando a ficar sujeitos a uma redução entre os 2,5% e os 8,41%; ii) os trabalhadores do setor público com remunerações base mensais de valor superior a € 1.500 veem agravado o coeficiente de redução previsto nos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, atingindo essa variação, em determinados segmentos, os 8,5 pontos percentuais.
Já o confronto da dimensão da desigualdade de regime implicada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 com a medida do tratamento diferencial que, no contexto da Lei n.º 66-B/2012, passou a corresponder à cumulação daquela redução com a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês revela que o desagravamento introduzido na passagem do segundo para o primeiro, para além de meramente residual abaixo dos € 3.000, é acompanhado pelo acréscimo do sacrifício imposto num relevante conjunto de segmentos salariais, o que faz com que um amplo conjunto de trabalhadores do setor público – como, por exemplo, aqueles cujas remunerações base mensais ascendam a € 700, € 1400, € 1500 e € 2000 – vejam intensificada, mesmo em relação à Lei n.º 66-B/2012, a medida do esforço adicional que desse modo lhes é imposto.
42. Quer por produzir a elevação de parte dos coeficientes de afetação que globalmente resultavam da Lei n.º 66-B/2012, quer por ser quase inexpressiva a diminuição que advém à parte restante ao longo de todo o universo situado abaixo dos € 3000, a medida da diferenciação implicada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 não se distancia com relevo, quanto à quantificação do sacrifício adicional imposto aos trabalhadores do setor público, daquela que, por ter sido considerada excessiva e injustificada, foi censurada pelo acórdão n.º 187/2013.
Se, por outro lado, a cotejarmos com a redução tida por constitucionalmente admissível no acórdão n.º 396/2011, é manifesta a acentuação do grau de sacrifício causado às posições que já eram afetadas pela Lei n.º 55-A/2010. Verifica-se, na verdade, que, em todos os níveis remuneratórios superiores a € 1500, sobe significativamente a taxa de redução, com destaque para os segmentos inferiores aos que agora ficam sujeitos à taxa máxima.
Mas a diferença que ressalta com mais evidência é a incidência de reduções, pela Lei n.º 83-C/2013, sobre montantes remuneratórios que delas estavam isentos, pela Lei n.º 55-A/2010. Referimo-nos às retribuições dentro do espectro delimitado por € 675 e € 1500. É certo que continuam a ficar de fora as remunerações de menor valor e que a taxa aplicável, no limiar mais baixo (2,5%), em si mesma e em montante absoluto, não atinge expressão muito significativa. Simplesmente, são afetados rendimentos salariais de tal modo exíguos que qualquer redução tem um forte impacto patrimonial subjetivo negativo e causa um grau de sacrifício qualitativamente muito superior à sua quantificação objetiva.
E relembre-se que, no acórdão n.º 396/2011, a isenção de que gozavam as remunerações inferiores a € 1500 foi ponderada no juízo de proporcionalidade e de contenção dentro dos “limites do sacrifício” então emitido e que o acórdão n.º 187/2013, quanto à remunerações situadas entre € 675 e € 1500, sujeitas agora a redução entre 2,5% e 8,41 %, considerou serem “de tal modo exíguas que um sacrifício adicional por via da supressão, ainda que parcial, de complementos salariais que integram a retribuição, [era] já de si excessivamente gravoso”, o que justificava, do “ponto de vista do princípio da igualdade, dificuldades acrescidas de validação constitucional, tendo em conta que rendimentos muitíssimo superiores, inclusive rendimentos do trabalho”, se mantinham imunes às medidas.
43. Por isso, a manutenção do juízo formulado no acórdão n.º 396/2011, ou a alteração do emitido no acórdão n.º 187/2013, quanto à compatibilidade das medidas orçamentais previstas nos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012 com o princípio da igualdade proporcional e da justa repartição dos encargos públicos, só poderá resultar da convocação de outros pontos de vista, que igualmente concorrem para a avaliação da constitucionalidade das medidas orçamentais relativas aos trabalhadores do setor público.
Continuando a sujeitar-se essa avaliação ao postulado, que resulta da anterior jurisprudência do Tribunal (pelo qual ao legislador não se encontra vedada a opção de, na prossecução do interesse público na consolidação orçamental, diferenciar, a título excecional e temporário, aqueles que auferem remunerações do Orçamento do Estado, mas a medida da diferenciação que em tal contexto seja imposta terá que ser proporcional ao fim visado e sensível à dimensão de igualdade) são duas as possibilidades que se abrem a partir daqui.
44. A primeira consiste em atribuir às exigências que se colocam no plano da execução orçamental relativa ao ano de 2014 um peso valorativo acrescido.
O esforço de consolidação orçamental decorrente das obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito do PAEF impõe, de acordo com os limites progressivamente mais exigentes fixados para o défice, que o legislador atinja em 2014 o mais baixo dos valores ali previstos, o que, de acordo com os dados invocados, pressupõe, por seu turno, a adoção de medidas no valor global de 3.901 milhões de euro, com um impacto equivalente a 2,3% do PIB.
Por outro lado, apesar da simultânea previsão do crescimento em 0,8% do PIB, não cabe a este Tribunal contestar a afirmada orientação de que o interesse público na construção das bases da sustentabilidade das finanças públicas deve preferencialmente ocorrer através de medidas de contenção da despesa, sem prejuízo de se reiterar que medidas de incidência universal – como são as de caráter tributário – oferecem melhores garantias de fugir, à partida, a uma censura decorrente da aplicação do princípio da igualdade.
A este circunstancialismo − que caracteriza, no plano da execução, o contexto em que se inscreve a apreciação da redução remuneratória determinada pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 − poderia reconhecer-se suficiente peso valorativo para atenuar a relevância que o argumento extraído do tempo já decorrido desde o início do ciclo orçamental orientado para o cumprimento do programa de assistência financeira assumiu no julgamento realizado no acórdão n.º 187/2013. Poder-se-ia entender que a circunstância de ser agora mais baixo o limite fixado para o défice constitui fundamento suficientemente idóneo para restabelecer a relação de equitativa adequação entre o grau de diferenciação e o fim visado, legitimando o legislador a consagrar uma medida de natureza não diversa e de alcance não menos inigualitário daquela que foi censurada no referido aresto, não obstante estarmos agora no quarto exercício orçamental consecutivo de consolidação orçamental e haver uma maior grau de exigência em relação ao legislador para encontrar outras alternativas possíveis de contenção de custos.
A este ponto de vista – que deixa de pé a avaliação do grau do sacrifício adicionalmente imposto aos trabalhadores do setor público no confronto com aquele que é exigido dos demais titulares de rendimentos – outro poderá, no entanto, ser contraposto.
Em sentido mais próximo do seguido no julgamento realizado no acórdão n.º 187/2013, poderá entender-se que, tal como o previsto para 2013, também o limite que o Programa de Assistência Económica e Financeira fixa ao défice para 2014, apesar de mais baixo, era já antes imposto, “num primeiro momento, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e, depois pelo “Memorando de entendimento sobre as condicionalidades de política económica”, acordado com a Comissão Europeia, e do “Memorando de Políticas Económicas e Financeiras”, assinado com o FMI”. E que por isso, “no quarto ano de exercício orçamental consecutivo”, visando “dar cumprimento ao programa de assistência financeira, o argumento da eficácia imediata” que serviu de fundamento ao recurso às medidas de afetação salarial dos trabalhadores do setor público permanece sem “consistência valorativa suficiente para justificar o agravamento”, agora na extensão implicada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, “dos níveis remuneratórios dos sujeitos que auferem por verbas públicas”.
Tal entendimento, ao opor-se à possibilidade de considerar a extensão da desigualdade imposta pelo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 justificada do ponto de vista do interesse prosseguido, inviabilizaria, assim, um juízo favorável ao cabimento constitucional da medida, no âmbito da dimensão interna do princípio da igualdade.
É esta a ponderação a que o Tribunal entende dar prevalência.
45. Na verdade, a medida de diferenciação então considerada – a resultante do efeito cumulado das previsões dos artigos 27.º e 29.º da Lei n.º 66-B/2012 − não é substancialmente mais acentuada do que aquela que se encontra agora implicada na solução constante do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013. O grau de sacrifício desta resultante é, conforme já notado, apenas residualmente menor abaixo dos € 3000, sendo em determinados segmentos superior até ao que resultava da referida acumulação.
Não excluindo que o legislador, “em excecionais circunstâncias económico-financeiras, e como meio de rapidamente diminuir o défice público, possa recorrer a uma medida de redução dos rendimentos de trabalhadores da Administração Pública, ainda que essa medida se traduza num tratamento desigual, relativamente a quem aufere rendimentos provenientes do setor privado da economia”, o Tribunal considerou que, tal como fora já decidido no acórdão n.º 353/2012, os “efeitos cumulativos e continuados dos sacrifícios impostos às pessoas com remunerações do setor público, sem equivalente para a generalidade dos outros cidadãos que auferem rendimentos provenientes de outras fontes, corresponde a uma diferença de tratamento que não encontra já fundamento bastante no objetivo da redução do défice público. E implica por isso uma violação do princípio da igualdade proporcional, assente na ideia de que a desigualdade justificada pela diferença de situações não está imune a um juízo de proporcionalidade e não pode revelar-se excessiva”.
46. Acresce que a aplicação de uma taxa progressiva nas remunerações até € 2000, em termos de este último escalão sofrer a incidência do limite percentual máximo do corte, em contraponto com a sujeição das remunerações mais elevadas a uma redução proporcional, decorrente da aplicação da taxa fixa de 12%, tem como consequência um desequilíbrio na proporção do sacrifício que é imposto aos titulares de remunerações situadas entre € 1500 e € 2000 por referência aos que auferem vencimentos mais elevados, implicando que aqueles sofram, em relação aos anos anteriores, um agravamento mais acentuado e até superior, em termos pecuniários, ao que é aplicável a remunerações mais elevadas e, especialmente, em relação a remunerações de montantes superiores a € 4000.
A alteração de incidência da taxa de redução remuneratória tem o declarado objetivo de introduzir uma alteração da política salarial na Administração Pública, partindo de dados que apontam genericamente para práticas salariais no setor público que diferem substancialmente do padrão que é observado no setor privado, de que resulta que sejam pagas no setor público, comparativamente com o setor privado, remunerações mais elevadas para funções de menor exigência e remunerações mais baixas para funções de maior complexidade e exigência (Relatório do OE 2014, pág. 49).
Deste modo, a substituição da taxa de caráter progressivo entre 3,5% e 10%, afetando mais intensamente os rendimentos mais elevados, em vigor desde 1 de janeiro de 2011, por uma taxa progressiva entre 2,5% e 12% para remunerações até € 2000 e que se fixa em 12% acima desse valor, visa, segundo o legislador, manter a progressividade na redução remuneratória mas em termos mais equitativos, quer dentro da Administração Pública, quer face ao setor privado. A aplicação de uma taxa fixa a partir dos € 2000- como se afirma – tem também como “objetivo não agravar ainda mais a fraca competividade das remunerações públicas do Estado relativamente ao setor privado para os grupos com maiores qualificações e responsabilidade”, por se tratar de grupos aos quais as condições oferecidas são menos competitivas que as do setor privado (Relatório do OE 2014, pág. 49).
Tratando-se, no entanto, de uma medida que o proponente da norma continua a entender como sendo de natureza transitória e prevalecentemente destinada, a promover o reequilíbrio orçamental numa conjuntura de emergência financeira, ela acaba por acentuar relativamente a níveis remuneratórios intermédios o caráter desproporcional da redução salarial no confronto com titulares de outros rendimentos.
E essa ilação adquire especial validade no que se refere à extensão da redução a remunerações que se situam entre os € 675 e € 1000, por se tratar aí de rendimentos muito exíguos, que anteriormente haviam sido excluídos do corte salarial – relativamente aos quais o Tribunal considerou já que qualquer sacrifício adicional seria excessivamente gravoso (acórdão n.º 187/13)-, e que seria de todo desrazoável que pudessem ser agora afetados a pretexto da necessidade de corrigir potencias desajustamentos do atual sistema retributivo da Administração Pública.
47. Em conclusão:
Do ponto de vista da quantificação do esforço adicional exigido aos trabalhadores do setor público no âmbito da consolidação orçamental, a extensão da desigualdade de tratamento implicada na solução consagrada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 corresponde a uma acentuação significativa do grau de diferenciação originado pelos termos em que a redução das respetivas remunerações base mensais se encontrava prevista nos artigos 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, das Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011, e 66-B/2012, respetivamente.
Ainda que se admita que esses termos não definem um limite inultrapassável, a verdade é que a redução agora estabelecida não constitui, quando globalmente considerada, uma versão relevantemente atenuada da desigualdade gerada pela Lei n.º 66-B/2012, quando a tal redução foi associada a suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias ou 14.º mês. Apenas no escalão das remunerações mais elevadas – as superiores a € 4.165 − se produz um desagravamento generalizado e de valor significativo (4,43%).
Por assim ser, a solução legislativa consagrada no artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013 só poderia ser objeto de um julgamento distinto daquele que foi realizado no acórdão n.º 187/2013, se a caracterização dos planos normativos e/ou orçamental em que se inscreve a medida impugnada se tivesse alterado ao ponto de tornar constitucionalmente admissível a fixação da medida da desigualdade prevista para 2014 num ponto equivalente àquele que foi censurado no referido aresto.
Não se verificando, no plano normativo, a concorrência de quaisquer fatores de desagravamento da situação remuneratória dos trabalhadores do setor público relativamente aos verificados no contexto da Lei n.º 66-B/2012, aquela alteração apenas poderia relacionar-se com as acrescidas exigências da consolidação orçamental resultantes do mais baixo limite fixado para o défice.
Ainda que a tais exigências fosse reconhecida consistência valorativa suficiente para, no quarto ano de execução orçamental, restabelecer a relação de equitativa adequação da medida da diferenciação ao interesse público visado, não se regista a superveniência de quaisquer dados suscetíveis de justificar a solução no sentido oposto ao que ali foi encontrado para a questão da igualdade externa, isto é, daquela que apesar de tudo subsiste entre os sujeitos afetados e os sujeitos não afetados pela opção legislativa e à qual o módulo da diferenciação não poderá ser por isso insensível.
Sendo de manter os critérios definidos pelo acórdão n.º 187/2013, a medida da diferenciação que diretamente resulta dos novos valores das taxas de redução e da alteração da sua base de incidência, ainda que desacompanhada de qualquer afetação dos subsídios, não poderá deixar de se considerar excessiva, e por isso constitucionalmente ilícita, perante o princípio da justa repartição dos encargos públicos.
Tal conclusão será particularmente evidente em relação aos trabalhadores do setor público com remunerações mensais base de valor compreendido entre € 675 e € 1.500, pelas razões já anteriormente expostas.
B) Normas do artigo 75.º (complementos de pensão)
48. Os autores dos pedidos correspondentes aos Processos n.ºs 14/14 e 47/14 suscitam a questão da constitucionalidade da norma do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, referente a complementos de pensão, por considerarem que a mesma contende com o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, com o princípio da igualdade e com o princípio da proporcionalidade, também decorrente do princípio do Estado de direito democrático. Vem ainda invocada a violação do direito de contratação coletiva, uma vez que o n.º 7 daquele preceito determina que o regime aí fixado tem natureza imperativa, prevalecendo, por isso, sobre instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.
O artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014) estabelece o seguinte:
Artigo 75.º
Complementos de pensão
1 — Nas empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data de entrada em vigor da presente lei, apenas é permitido o pagamento de complementos às pensões atribuídas pelo Sistema Previdencial da Segurança Social, pela CGA ou por outro sistema de proteção social, nos casos em que aqueles complementos sejam integralmente financiados pelas contribuições ou quotizações dos trabalhadores, através de fundos especiais ou outros regimes complementares, nos termos da legislação aplicável.
2 — O disposto no número anterior aplica-se ao pagamento de complementos de pensão aos trabalhadores no ativo e aos antigos trabalhadores aposentados, reformados e demais pensionistas.
3 — O pagamento de complementos de pensão pelas empresas a que se refere o n.º 1, fora das condições estabelecidas nos números anteriores, encontra-se suspenso.
4 — Excetua-se do disposto nos números anteriores o pagamento de complementos de pensão pelas empresas que já os realizavam em 31 de dezembro de 2013, nos casos em que a soma das pensões auferidas pelo respetivo beneficiário do Sistema Previdencial da Segurança Social, da CGA e de outros sistemas de proteção social seja igual ou inferior a € 600 mensais.
5 — Nos casos a que se refere o número anterior, o valor mensal do complemento de pensão encontra-se limitado ao valor mensal de complemento de pensão pago a 31 de dezembro de 2013 e à diferença entre os € 600 mensais e a soma das pensões mensais auferidas pelo respetivo beneficiário do Sistema Previdencial da Segurança Social, da CGA e de outros sistemas de proteção social.
6 — O pagamento de complementos de pensão é retomado num contexto de reposição do equilíbrio financeiro das empresas do setor público empresarial, após a verificação de três anos consecutivos de resultados líquidos positivos.
7 — O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, enquanto se verificarem as condições nele estabelecidas, prevalecendo sobre contratos de trabalho ou instrumentos de regulação coletiva de trabalho e quaisquer outras normas legais, especiais ou excecionais, em contrário, não podendo ser afastado ou modificado pelas mesmas.
49. Os pedidos vêm sustentados, em síntese, nas seguintes razões:
a) O artigo 75.° da LOE 2014 impõe que nas empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados apenas seja permitido o pagamento de complementos às pensões atribuídas pelo Sistema Previdencial da Segurança Social, pela CGA ou por outro sistema de proteção social, nos casos em que aqueles complementos sejam integralmente financiados pelas contribuições ou quotizações dos trabalhadores, através de fundos especiais ou outros regimes complementares;
b) Trata-se de uma conditio impossibilis, dada a fáctica inexistência de tais fundos em diversos casos, notória e documentável, acoplada, no tocante à delimitação do âmbito de aplicação temporal, por outra condição (a reposição do equilíbrio financeiro das empresas do setor público empresarial, após a verificação de três anos consecutivos de resultados líquidos positivos) cuja verificação é impossível face à esperança de vida dos trabalhadores afetados;
c) Pelo que o alcance das normas é, pura e simplesmente, a ablação unilateral pelo Estado de montantes negociados e devidos;
d) Os complementos de reforma surgem na sequência de negociação de reformas antecipadas em empresas, com a respetiva penalização, sendo que os trabalhadores abrangidos não teriam feito essa opção e teriam preferido aguardar pelo fim das respetivas carreiras contributivas, se tivessem a mínima suspeita de que no seu horizonte de vida alguma medida legislativa pudesse vir a alterar negativamente o quadro legal em que fez assentar as suas expetativas;
e) As expetativas de continuidade eram absolutas, legítimas, justificadas e fundadas em boas razões e todos os trabalhadores nessa situação traçaram os seus planos de vida baseados na convicção da continuidade do comportamento estadual;
f) As normas do artigo 75.° da LOE 2014 contêm soluções legislativas manifestamente assistemáticas e desenquadradas de qualquer esforço global de sustentabilidade do sistema público de proteção social e de repartição intergeracional e intrageracional, merecendo por isso o mesmo destino que as normas que estiveram em apreciação no acórdão n.º 862/2013 desse Tribunal, isto é, a declaração de inconstitucionalidade por violação do princípio da proteção da confiança;
g) Mas, para além disso, aquelas normas do artigo 75.º da LOE 2014 violam também o princípio da igualdade. Visivelmente, o legislador isolou categorias ou classes específicas de pensionistas, com apenas algumas dezenas ou poucas centenas de pessoas e introduziu diferenciações que nem sequer parecem ter um fundamento racional, desse modo violando a versão mais elementar do princípio geral da igualdade como proibição do arbítrio;
h) Designadamente, a norma prevista no n.º 3 do artigo 75.º da LOE 2014 tem consequências demolidoras para os trabalhadores já reformados e pensionistas do Metropolitano de Lisboa e Carris, conduzindo, pelo menos ao nível do Metropolitano de Lisboa, a cortes no valor total bruto da pensão recebida que pode ultrapassar os 60%;
i) Ora, é inequívoco que é o Estado que define os objetivos das empresas do setor público empresarial e que condiciona/aprova a política tarifária, no entendimento, partilhado por todos os governos, de que as tarifas praticadas em redes urbanas de grandes cidades têm sempre uma componente social que não permite cobrir os custos de produção do transporte;
j) Por conseguinte, a existência de resultados líquidos negativos não é imputável aos trabalhadores ou aos ex-trabalhadores, que nada poderiam fazer para que eles fossem ou deixassem de ser negativos. Nesse contexto, escolher como “razão” ou critério da diferenciação entre grupos de pensionistas a circunstância da existência ou não de resultados líquidos negativos da respetiva empresa torna a medida completamente arbitrária e remete-a para o domínio da irracionalidade;
l) As normas do artigo 75.° da LOE 2014 violam também o princípio da proporcionalidade. Desde logo porque, conforme se alegou a propósito do artigo 33.º, o próprio legislador, pelos seus comportamentos noutras zonas da política orçamental, mostra que existe margem para medidas alternativas menos drásticas para estas categorias específicas de beneficiários da proteção social. Consequentemente, há violação do segmento da necessidade;
m) O número de trabalhadores afetados pelas medidas em apreço não permite que se considere que está aqui em causa o cumprimento dos acordos internacionais que têm servido de justificação às medidas penalizadoras dos rendimentos do trabalho e das pensões, nem assumem qualquer dimensão digna de nota quanto à sustentabilidade da segurança social. Não se trata manifestamente de uma medida idónea, indispensável, ou proporcional;
n) E há também violação do segmento da proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que o sacrifício imposto, particularmente quando analisado pelo ângulo individual de cada uma das pessoas atingidas, é de tal forma intenso que não é justificado pela obtenção de ganhos de consolidação orçamental manifestamente escassos;
o) Segundo o n.° 7 do artigo 75.°, o regime fixado tem natureza imperativa, enquanto se verificarem as condições nele estabelecidas, prevalecendo sobre contratos de trabalho ou instrumentos de regulação coletiva de trabalho e quaisquer outras normas legais, especiais ou excecionais, em contrário, não podendo ser afastado ou modificado pelas mesmas. É assim posto em causa o direito de contratação coletiva (artigo 56.°, n.° 3, da Constituição), na medida em que são revogadas normas livremente acordadas entre as partes e é afastada a possibilidade de negociações futuras sobre a matéria.
Âmbito e alcance do artigo 75.º
50. A previsão do artigo 75.º reporta-se diretamente às empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos «nos três últimos exercícios apurados, à data de entrada em vigor da» Lei n.º 83-C/2013, e determina, observados determinados pressupostos, a suspensão do pagamento de complementos às pensões atribuídas por sistemas de proteção social, nomeadamente pelo sistema previdencial da segurança social e pela CGA, que não sejam «integralmente financiados pelas contribuições ou quotizações dos trabalhadores, através de fundos especiais ou outros regimes complementares, nos termos da legislação aplicável» até que se mostre reposto o equilíbrio financeiro das empresas em causa. O significado e alcance desta norma encontram-se a partir daquele âmbito de aplicação subjetivo e objetivo, indiciando a sua estrutura e a sua ratio tratar-se de disposição não especificamente orçamental, mas antes de norma de natureza conjuntural dirigida a disciplinar aspetos particulares do sistema normativo próprio do setor público empresarial. No mesmo sentido concorre, de resto, a ausência de qualquer limite temporal quanto à cessação da produção de efeitos.
Recorde-se que o regime jurídico do citado setor foi poucos meses antes da aprovação da Lei n.º 83-C/2013 objeto de uma significativa reforma – constante do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro – tendo em vista prosseguir, entre outros, o objetivo de reforçar as condições de eficiência e eficácia, operacional e financeira, de todas as empresas nele integradas e de, por essa via, contribuir para o controlo do endividamento do setor público, e de submeter a um mesmo regime as matérias nucleares referentes a todas as organizações empresariais direta ou indiretamente detidas por entidades públicas, de natureza administrativa ou empresarial, independentemente da forma jurídica que assumam (cfr. o preâmbulo do citado decreto-lei). Nesse contexto, uma primeira alteração a assinalar respeitou a um efetivo alargamento do âmbito subjetivo de aplicação do regime das empresas públicas, passando a abranger todas as organizações empresariais em que o Estado ou outras entidades públicas, possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante (artigo 3.º). Uma segunda alteração relevante consistiu no alargamento do âmbito sectorial de aplicação deste regime jurídico, introduzindo o conceito de setor público empresarial, o qual integra o setor empresarial do Estado, assim como o setor empresarial local (artigo 2.º, n.º 1).
Por outro lado, estabelecem-se regras claras referentes à limitação do endividamento das empresas públicas não financeiras, de forma a impedir o avolumar de situações que contribuam para o aumento da dívida e do desequilíbrio das contas do setor público. E pretende-se estabelecer um regime jurídico mais exigente, mas também mais claro, transparente e eficaz, no que respeita ao controlo da legalidade e da boa gestão pública na alocação de recursos públicos para a prossecução de atividades em modo empresarial (cfr. artigos 43.º a 45.º).
Cumpre notar igualmente que o setor empresarial do Estado integra as empresas públicas e as empresas participadas por entidades públicas estaduais (artigos 2.º, n.º 2, 7.º e 8.º, n.º 1), determinando as participações públicas de caráter local em empresas comerciais que estas últimas também integrem o setor empresarial local (artigos 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2013 e 1.º, n.º 3, 3.º, 4.º 7.º e 51.º da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto – regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais).
51. A relação entre o interesse na sustentabilidade das contas do setor público e a situação financeira das empresas públicas encontra-se ainda subjacente ao próprio regime definido na Lei de Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, republicada com as alterações subsequentes pela Lei n.º 37/2013, de 14 de junho.
De acordo com o respetivo artigo 10.º, o «Orçamento do Estado subordina-se ao princípio da equidade na distribuição de benefícios e custos entre gerações», sendo que a equidade intergeracional incluirá necessariamente a incidência orçamental, entre outras, «das necessidades de financiamento do setor empresarial do Estado» (n.º 2, alínea e). Para além disso, o relatório da proposta de Lei do Orçamento do Estado, que «contém a apresentação e a justificação da política orçamental proposta», incluirá obrigatoriamente, entre outras informações, a análise dos principais elementos relativos à situação do endividamento global do conjunto das empresas públicas (incluindo as regionais e locais), bem como às «transferências orçamentais para as empresas públicas e outras instituições não integradas no setor público administrativo» (artigo 37.º, n.º 1,alíneas h) e q).
Em consonância com tal previsão, o Relatório que acompanhou a Proposta do Orçamento para 2014 contém informação detalhada sobre a situação das empresas públicas, aí se afirmando, a propósito do setor empresarial do Estado, os seguintes objetivos (págs. 72-73):
(i) Em matéria de redução dos gastos operacionais, dar «continuidade à reestruturação das empresas públicas e à criação de condições para assegurar a sustentabilidade económica e financeira destas empresas, bem como contribuir para a diminuição da despesa do Estado, sem colocar em causa a prestação do serviço público»;
(ii) No que se refere ao endividamento, conter «o acréscimo do endividamento financeiro para a generalidade das empresas […], limitando o crescimento do endividamento das empresas públicas […]. Mais ainda, pretendendo-se dar início a um processo de reforço do capital próprio de algumas empresas públicas reclassificadas, consubstanciado na atribuição de dotações de capitais e/ou conversão de créditos do Estado em capital, os limites de acréscimo do endividamento deverão contemplar as referidas operações financeiras de recapitalização.»
No mesmo Relatório reconhece-se igualmente que a «execução das medidas de reestruturação do SEE [setor empresarial do Estado] em curso, tais como redução dos gastos correntes, reestruturação do financiamento, extinção, fusão, privatização e concessão de empresas tem reflexos no esforço de consolidação orçamental e redução dos níveis de dívida pública» (pág. 77).
De todo o modo, conforme também se clarifica no citado Relatório, o «impacto da materialização dos riscos operacionais do SEE no Orçamento do Estado» será, no entanto, «diferente consoante se trate de empresas integradas, ou não, no perímetro de consolidação das Administrações Públicas». No primeiro caso – que corresponderá à situação das empresas públicas reclassificadas –, «o impacto será por via da consolidação dos resultados das empresas do perímetro», enquanto no segundo caso – que dirá respeito à situação das empresas não reclassificadas-, «o retorno para o acionista público será mediante um eventual aumento de prejuízos ou redução dos resultados traduzidos em dividendos» (pág. 78).
52. Segundo o artigo 2.º, n.º 5, da Lei de Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, são entidades públicas reclassificadas aquelas que, independentemente da sua natureza e forma, sejam incluídas no setor público administrativo no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais SEC 95 a que se refere o Regulamento (CE) n.º 2223/96 do Conselho, de 25 de junho de 1996, (Jornal Oficial, série L, n.º 310, de 30 de novembro de 1996). Conforme referido no Relatório OE 2014, pág. 79:
«A reclassificação de empresas do setor empresarial do Estado dentro do perímetro de consolidação das Administrações Públicas (na ótica de contabilidade nacional) poderá ocorrer caso se verifique um de três critérios relacionados com o nível de inserção em mercados concorrenciais e com o grau de dependência do acionista público:
(i) Nível de receitas mercantis inferior a 50% dos encargos com o desenvolvimento da sua atividade, critério que determina a necessidade de contratualização da prestação de serviço público relativamente às empresas públicas que beneficiam de indemnizações compensatórias, o que abrange essencialmente as empresas dos setores da cultura, transportes e infraestruturas;
(ii) Classificação como empresa instrumental de investimento público em função da sua área de atuação principal;
(iii) Empresas dependentes do acionista público em função do elevado endividamento bancário e das dificuldades de acesso aos mercados financeiros.»
As entidades públicas reclassificadas são, assim, equiparadas a Serviços e Fundos Autónomos, sendo integradas no universo do Orçamento do Estado e sendo-lhes por essa via distribuídas dotações orçamentais em termos idênticos aos que se verificam relativamente aos serviços e organismos que integram a Administração. Por assim ser, o Relatório assume a necessidade de, «adicionalmente aos riscos de financiamento do Estado», serem considerados «os riscos do serviço da dívida destas empresas que continuam a apresentar elevadas necessidades de financiamento para 2014», prevendo que o Orçamento do Estado para 2014 integre «uma dotação correspondente às necessidades evidenciadas no orçamento das empresas em resultado do processo de racionalização de custos e encargos e potenciação das receitas em curso». Assim, no caso das empresas de capitais maioritariamente públicos reclassificadas dentro do perímetro das Administrações Públicas, os riscos relevantes para o Orçamento do Estado decorrem da sua própria atividade na medida em que, quer os resultados operacionais, quer a dívida, se encontram refletidos na conta das Administrações Públicas e, consequentemente, na respetiva dívida pública.
A reclassificação de entidades públicas assume, no quadro do Programa de Assistência Económica e Financeira, considerável importância, já que tem como consequência a inclusão dos défices e excedentes das entidades reclassificadas para o cálculo do défice e da dívida pública global, consolidada, nos termos da legislação e práticas da União Europeia. Neste cenário, justifica-se uma especial atenção por parte do legislador orçamental à situação económica das entidades em causa. As empresas públicas reclassificadas mantêm todas as obrigações legais decorrentes do regime jurídico do setor público empresarial e das empresas públicas, bem como do Código das Sociedades Comerciais, às quais acrescem as obrigações decorrentes da equiparação a serviços e fundos autónomos, por força da Lei de Enquadramento Orçamental.
O mesmo Relatório identifica ainda, e autonomamente, numa outra passagem, o risco de reclassificação de novas entidades, nos termos seguintes (pág. 79):
«[É] de referir que se prevê a entrada em vigor da atualização do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (o designado SEC 2010) já em 2014, e que os seus efeitos irão retroagir, em termos de séries estatísticas, a 2010. Uma alteração fundamental incide sobre a forma de apuramento do “Critério da Mercantilidade”, o que poderá implicar a inclusão de um número adicional de empresas públicas no perímetro de consolidação das Administrações Públicas, no âmbito de aplicação do supramencionado sistema.»
Recorde-se que presentemente – no quadro da SEC 95 – são consideradas não mercantis as entidades que não vendam a sua produção a preços economicamente significativos, de tal modo que a principal fonte de financiamento não pode ser a receita associada a um preço, tarifa ou taxa pelos bens e serviços que presta. Englobam-se ainda neste domínio, as instituições que têm receitas próprias de valor inferior a 50% dos seus custos de produção.
53. Em relação às empresas públicas não reclassificadas, importa referir que, além do aludido risco de reclassificação, a apresentação de resultados líquidos negativos não é indiferente para o esforço financeiro do Estado (assim como de qualquer outro investidor público) nas suas empresas. Com efeito, ocorrendo tal circunstância, não é só a impossibilidade de distribuir dividendos que está em causa. À mesma acresce, por via dos resultados transitados, a diminuição do capital próprio da empresa e a consequente necessidade de compensação, seja por via do endividamento, seja pela via do reforço de capital. Qualquer uma destas vias importa, a prazo, despesa pública, efetiva (dotações de capital, conversão de créditos ou assunção de passivos) ou potencial (concessão de garantias a terceiros pelo financiamento concedido à empresa).
De resto, é essa também a razão justificativa do instituto da «perda de metade do capital» previsto no artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais:
«1 - Resultando das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido […], devem os gerentes convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.
2 - Considera-se estar perdida metade do capital social quando o capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital social.
3 - […].»
54. Na Lei n.º 83-C/2013 os objetivos de racionalização do funcionamento das empresas públicas e de contenção do seu endividamento são prosseguidos por diversas vias. A solução consignada no artigo 75.º é uma delas.
Nesse preceito, o legislador pretende adotar uma solução em linha com as preocupações em matéria de endividamento e de equilíbrio financeiro das empresas públicas expressas no Decreto-Lei nº 133/2013 (e também na Lei n.º 50/2012, em especial, no seu artigo 40.º): a um tempo, prevenir e corrigir situações de descapitalização, restabelecendo a viabilidade e sustentabilidade económica e financeira de empresas que tenham iniciado um ciclo de exploração deficitária. Daí a utilização do índice previsto no seu n.º 1: a apresentação de resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data da entrada em vigor da LOE 2014.
Com efeito, dada a já aludida correlação entre resultados líquidos negativos e diminuição do capital próprio da empresa, a concretização da situação prevista no n.º 1 do artigo em apreço constitui um «alarme» que sinaliza a necessidade de racionalizar os gastos e perdas incorridos pela empresa. Nessa perspetiva, a suspensão do pagamento aos trabalhadores no ativo e aos antigos trabalhadores já aposentados de complementos correspondentes a benefícios que não constituem nem retribuição nem pensão devida nos termos da legislação sobre segurança social representa uma medida de contenção de gastos com pessoal.
Saliente-se que esta mesma lógica vale, na proporção das participações sociais detidas por entidades públicas, igualmente em relação às empresas participadas. De resto, o Relatório OE 2014 identifica, a propósito, um risco específico que confirma justamente esta proposição (pág. 81):
«A carteira de participações do Estado inclui várias empresas cuja composição dos capitais próprios indicia uma situação de dificuldade económica que, nos termos do artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais, poderá eventualmente originar a necessidade de reforço dos respetivos capitais por parte dos acionistas, o que pode constituir um risco potencial de encargo para o Orçamento do Estado.»
55. O questionado artigo 75.º impõe a suspensão do pagamento de complementos de pensão aos trabalhadores no ativo e aos antigos trabalhadores aposentados, reformados e demais pensionistas das empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data de entrada em vigor da Lei nº 83-C/2013. Tal pagamento só será retomado após três anos consecutivos de resultados líquidos positivos.
Contudo, e para salvaguarda de situações mais gritantes, o legislador excecionou os pagamentos a trabalhadores que já recebiam complementos de pensão a 31 de dezembro de 2013, nos casos em que a soma das pensões auferidas pelo respetivo beneficiário do Sistema Previdencial da Segurança Social, da CGA e de outros sistemas de proteção social seja igual ou inferior a € 600 mensais. Nestas situações, o valor mensal do complemento de pensão encontra-se limitado ao valor mensal de complemento de pensão pago a 31 de dezembro de 2013 e à diferença entre os € 600 mensais e a soma das pensões mensais auferidas pelo respetivo beneficiário do Sistema Previdencial da Segurança Social, da CGA e de outros sistemas de proteção social.
56. Nos pedidos de fiscalização são referidas em especial duas empresas – a Metropolitano de Lisboa, E.P.E. (Metropolitano de Lisboa), e a Companhia Carris de Ferro, S.A. (Carris) –, chegando a afirmar-se que, embora haja várias empresas do setor público empresarial com complementos de pensão atribuídos aos seus reformados e pensionistas, a condição prevista naquele artigo 75.º, n.º 1, da Lei n.º 83-C/2013 da apresentação de resultados líquidos negativos restringe a sua aplicação ao Metropolitano de Lisboa e à Carris, conduzindo a avultados cortes no valor bruto das pensões.
Por outro lado, existe uma referência expressa no Relatório OE 2014 à «viabilização financeira do SEE na área dos transportes», nomeadamente a medidas destinadas a «consolidar o equilíbrio operacional e a estancar o aumento do endividamento (pág. 170). Nesse contexto, é referida, entre as medidas a adotar, «a suspensão dos pagamentos relativos a complementos de pensões – integralmente suportados pelas próprias empresas e que não resultam de contribuições dos trabalhadores – nas empresas que tenham apresentado um resultado líquido negativo nos 3 últimos anos, medida com a qual se estima, já em 2014, uma diminuição dos encargos das EPR (empresa pública reclassificada) em 11,3 milhões de euros» (ibidem).
Contudo, estes dados, só por si, não determinam um âmbito de aplicação subjetivo do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013 mais restrito do que aquele que decorre da sua letra. Acresce, que, como mencionado, a razão de ser do mesmo preceito postula a sua aplicação a todas as empresas do setor público empresarial, desde que o pressuposto específico da apresentação consecutiva de resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data da entrada em vigor da Lei nº 83-C/2013, se verifique. E, em qualquer caso, o Tribunal não dispõe de informação suficiente para determinar quais as empresas e, no âmbito destas, quais os trabalhadores e ex-trabalhadores que serão afetados e em que termos.
Questões de constitucionalidade - Violação do princípio da confiança
57. No que respeita ao princípio da proteção da confiança, corolário do princípio do Estado de direito democrático, e que constitui o lado subjetivo da garantia de estabilidade e segurança jurídica, este Tribunal tem uma jurisprudência constante e reiterada (cfr., em especial, a formulação do Acórdão n.º 128/2009, reiterada em numerosas decisões posteriores).
A aplicação do princípio da confiança deve partir de uma definição rigorosa dos requisitos cumulativos a que deve obedecer a situação de confiança, para ser digna de tutela: em primeiro lugar, as expectativas de estabilidade do regime jurídico em causa devem ter sido induzidas ou alimentadas por comportamentos dos poderes públicos; elas devem, igualmente, ser legítimas, ou seja, fundadas em boas razões, a avaliar no quadro axiológico jurídico-constitucional; por fim, o cidadão deve ter orientado a sua vida e feito opções, precisamente, com base em expectativas de manutenção do quadro jurídico.
Dados por verificados esses requisitos, há que proceder a um balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração. Com efeito, para que a situação de confiança seja constitucionalmente protegida, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
58. No caso em apreço, para aferir do respeito daquele princípio por parte do legislador, cumpre considerar eventuais situações de confiança correspondentes à expetativa de continuidade do pagamento dos complementos de pensão fundadas em contrato individual de trabalho ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
Contudo, em ambas as hipóteses podem suscitar-se dúvidas quanto à imputação da situação de confiança ao Estado, mormente ao Estado-legislador. Com efeito, e desde logo, o compromisso ou a assunção da responsabilidade é da empresa, não do Estado diretamente.
Acresce que, relativamente às empresas participadas e às empresas do setor empresarial local – qualquer uma destas duas categorias de empresas integra o setor público empresarial a que se refere o n.º 1 do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013 – o Estado, mesmo que considerado enquanto mero acionista, não exerce uma influência dominante. Consequentemente, nem sequer se pode falar, ainda que indiretamente, em comportamento estadual. É o primeiro teste de aplicação do princípio de proteção da confiança que dá um resultado negativo. Com efeito, relativamente a essas situações, verifica-se que o autor da norma – o Estado nas suas vestes de legislador – não encetou qualquer comportamento capaz de gerar nos trabalhadores expetativas de continuidade. Quem o fez foram empresas dominadas e controladas por entidades públicas na órbita da administração autárquica – que detém autonomia em relação ao Estado central- como é o caso das empresas locais (artigo 19.º, n.º 4, da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto); ou empresas dominadas e controladas por particulares – e, como tal, fruto da liberdade de iniciativa económica, como é o caso das empresas participadas (artigo 14.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 133/2013).
Mas mesmo no respeitante às empresas públicas do setor empresarial do Estado – sociedades de capitais maioritária ou exclusivamente públicos e entidades públicas empresariais –, não é possível pura e simplesmente desconsiderar a respetiva personalidade e autonomia.
No setor empresarial do Estado, a função acionista é exercida pelo titular da participação social, que, no caso das empresas públicas, cabe ao membro do Governo responsável pela área das finanças, em articulação com o membro do Governo responsável pelo respetivo setor de atividade, e integra, designadamente, poderes de definição das orientações a aplicar no desenvolvimento da atividade empresarial reportada a cada triénio e de definição dos objetivos e resultados, em especial, económicos e financeiros, a alcançar em cada ano e triénio, no respeito pelas orientações estratégicas e sectoriais que tenham sido emitidas pelo Governo no exercício da sua função política (artigos 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 133/13).
O conteúdo e o exercício da função acionista não interfere, no entanto, com a autonomia de gestão da empresa pública e os titulares dos órgãos de administração gozam de liberdade de conformação quanto aos métodos, modelos e práticas de gestão concretamente aplicáveis ao desenvolvimento da respetiva atividade (artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 133/13).
Por outro lado, as empresas públicas regem-se prevalecentemente pelo direito privado e desenvolvem a sua atividade nas mesmas condições e termos aplicáveis a qualquer empresa privada, impondo-se nas relações estabelecidas entre as entidades públicas titulares do capital social ou estatutário e as empresas públicas detidas a total observância das regras da concorrência (artigos 14.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 133/13). As especificidades que se poderão observar decorrem unicamente de certas condicionantes de direito público que implicam um regime especial de orientação e controlo externo, que é essencialmente realizado por via do exercício da função acionista.
O que não impede que as empresas públicas, enquanto pessoas jurídicas distintas do Estado ou das entidades públicas que detêm a influência dominante, realizem os seus interesses próprios (sociais e estatutários) e atuem segundo opções autónomas dos respetivos dirigentes.
Por outro lado, estes mesmos princípios eram aplicáveis no quadro do precedente regime empresarial do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de dezembro – agora revogado pelo Decreto-Lei n.º 133/13 –, e no domínio do qual terão sido contratualizados os complementos de pensão a que se referem as normas do artigo 75.º da LOE de 2014.
Nesse sentido, há que reconhecer um distanciamento das empresas públicas face à «entidade pública mãe» que não tem paralelo com o que resulta da criação de entidades públicas de administração indireta, as quais são instituídas num contorno de direito administrativo e que se encontram submetidas a um regime jurídico público de orientação e controlo (a superintendência e a tutela).
Ora, pela sua própria natureza, o artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, sem prejuízo da sua função e consequente relevância orçamental, respeita à regulação da matéria conexionada com o endividamento e a autossustentabilidade das empresas públicas e enquadra-se no relacionamento jurídico de âmbito societário entre as sociedades de mão pública e os seus sócios públicos. Nessa mesma medida, tal preceito também postula uma separação e uma distância entre o Estado-legislador e o Estado-empresário, retirando desse modo base para a imputação ao primeiro de uma eventual situação de confiança criada pelo segundo. Os critérios de gestão que permitiram a atribuição dos complementos de pensão são totalmente estranhos às razões que ditam a suspensão do seu pagamento nos termos do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013.
Por outro lado, não existe qualquer evidência de que tenha sido o Estado-administrador, enquanto titular da função acionista, a induzir as empresas visadas a formalizar, através de contratação coletiva, o pagamento de complementos de pensão.
59. No tocante ao segundo teste de aplicação do princípio da tutela da confiança legítima – a legitimidade, justificação e as boas razões das expetativas de quem confia – a resposta também não é positiva.
Em primeiro lugar, há que ter presente a natureza não retributiva dos complementos em questão, conjugada com a circunstância de também não serem devidos nos termos da legislação sobre segurança social. Trata-se, com efeito, de prestações que acrescem às pensões já atribuídas pelo sistema previdencial da segurança social, pela CGA ou por outro sistema de proteção social – sistemas esses de natureza contributiva, porque têm na sua base uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir do trabalhador e o direito deste às prestações (artigo 54.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro) – e que são financiadas diretamente pelas próprias empresas. Daí a sua qualificação como meros benefícios que não constituem nem retribuição nem pensão legalmente devida nos termos da legislação sobre segurança social. A sua justificação, numa estrita racionalidade empresarial, é a de partilhar com o fator trabalho os resultados positivos da empresa. Tal benefício pode fazer sentido na ótica da gestão global da empresa, mas implica sempre uma partilha de rendimentos que à partida, e numa estrita racionalidade empresarial, não têm de ser alocados ao fator trabalho.
Apurando-se resultados líquidos negativos, o pagamento do benefício em causa agrava o prejuízo e compromete a viabilidade económica e financeira da empresa. A prazo, o seu pagamento torna-se não apenas insustentável, como põe em causa a própria subsistência da empresa, já que os resultados negativos transitados abatem ao capital próprio da empresa, descapitalizando-a e diminuindo o seu valor patrimonial líquido.
Na medida em que os complementos de pensão se processam no âmbito interno da empresa e a garantia do seu pagamento depende das receitas correntes, existe um efetivo risco – que os beneficiários e as organizações representativas dos trabalhadores não podem desconhecer – de a empresa poder ficar sem condições financeiras para assegurar, de forma permanente e definitiva, o cumprimento dessas responsabilidades. Cessando o pressuposto de solvabilidade de que depende o pagamento dos complementos, deixa igualmente de ser legítima a expectativa referente à continuidade da sua atribuição.
60. No caso de empresas cujo capital seja participado, maioritariamente ou não, por entidades públicas – como as que são abrangidas pela previsão do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013 –, há ainda que atender às especiais exigências postas pelo princípio da neutralidade competitiva dos poderes públicos. Isto vale, pelas razões anteriormente indicadas, sobretudo para as empresas públicas reclassificadas, mas atento o aludido risco de reclassificação, também não é irrelevante quanto às que (ainda) não sejam reclassificadas.
A Constituição garante a coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção (artigo 80.º, alínea b)) e a liberdade de iniciativa e organização no quadro de uma economia mista (artigo 80.º, alínea c)). Por outro lado, incumbe prioritariamente ao Estado, no âmbito económico e social, assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral (artigo 81.º, alínea f)).
Como dizem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, as três formas de iniciativa são concorrenciais nas áreas em que “coabitam”, não podendo o poder público tirar proveito da sua condição e dos seus poderes públicos para criar vantagens para as suas empresas (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pág. 958). O princípio da concorrência não exclui as empresas públicas e a ordenação constitucional da economia garante a existência de um setor público mais ou menos extenso. Todavia, a ordem constitucional económica impede que as empresas que fazem parte do setor público empresarial sejam favorecidas pelo Estado relativamente às suas concorrentes de outros setores (idem, pág. 970). Portanto, o Estado-legislador não pode deixar de cumprir os imperativos da constituição económica mesmo em relação às empresas do setor público empresarial. De resto, no estrito plano das regras de concorrência, torna-se tão relevante o desvalor das medidas legislativas que atribuam exclusivos ou privilégios às empresas públicas que atuem em economia de mercado, como, inversamente, o daquelas que imponham encargos ou sujeições às empresas públicas que se tornem suscetíveis de distorcer o funcionamento do mercado.
Isso mesmo encontra-se consagrado no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 133/2013 (que, neste particular, não inovou substancialmente relativamente ao que dispunha o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 558/99, desde a sua redação originária):
«1 – As empresas públicas desenvolvem a sua atividade nas mesmas condições e termos aplicáveis a qualquer empresa privada, e estão sujeitas às regras gerais da concorrência, nacionais e de direito da União Europeia.
2 – As relações estabelecidas entre as entidades públicas titulares do capital social ou estatutário e as empresas públicas detidas ou participadas processa-se em termos que assegurem a total observância das regras da concorrência, abstendo-se aquelas entidades de praticar, direta ou indiretamente, todo e qualquer ato que restrinja, falseie ou impeça a aplicação destas regras.»
Por ser assim, as empresas públicas também estão submetidas à Lei da Concorrência, tal como as empresas participadas ou as demais empresas privadas, não lhes podendo ser atribuídos auxílios públicos indevidos (artigos 2.º, 4.º, n.º 1, e 65.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio; e também, quanto às empresas locais, o artigo 34.º da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, e, quanto às empresas participadas, o artigo 14.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro). Isto, naturalmente, sem prejuízo de eventuais missões particulares que lhes tenham sido confiadas (artigo 4.º, n.º 2, da Lei da Concorrência). O conceito de «auxílio público» corresponde grosso modo ao de apoios, incluindo as transferências correntes e de capital, e a cedência de património público, concedidos a título de subvenção pública (cfr. o artigo 2.º da Lei n.º 64/2013, de 27 de agosto, que regula a obrigatoriedade de publicitação dos benefícios concedidos pela Administração Pública a particulares).
Entre tais apoios importa autonomizar as chamadas «indemnizações compensatórias», que, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 167/2008, de 26 de agosto, correspondem a pagamentos efetuados com verbas do orçamento do Estado a entidades públicas e privadas, de acordo com o regime legalmente previsto, destinados a compensar custos de exploração resultantes de serviços de interesse geral. Tais indemnizações obedecem a uma lógica de prossecução de interesse público. Quaisquer outros tipos de subsídios públicos à exploração, designadamente os que visem pura e simplesmente salvaguardar o equilíbrio financeiro das empresas, só podem eventualmente ser justificados em termos do princípio da concorrência desde que obedeçam a idêntica lógica de interesse público; de outro modo, configurarão um favorecimento particular de certas empresas em detrimento de outras.
O que tem como consequência que, cessando a autossustentabilidade económica e financeira da empresa que atribui complementos de pensão previstos no artigo 75.º, deve igualmente cessar a sua atribuição até que a empresa recupere a capacidade de autofinanciamento da sua atividade produtiva corrente. Daí não poderem considerar-se legítimas as expetativas quanto à continuidade do pagamento dos complementos de pensão antes de verificado esse facto.
61. Por fim, e não obstante ser já segura a inexistência de uma situação de confiança legítima a tutelar frente ao disposto no artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, é também certo que este preceito supera o teste do interesse público: no balanceamento ou ponderação a realizar entre os interesses desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração, este último deve prevalecer.
O interesse público que se visa garantir com a adoção do regime jurídico em análise é, imediatamente, o de acautelar a sustentabilidade das empresas do setor público empresarial e, mediatamente, o equilíbrio orçamental e a diminuição do défice público, ainda no quadro da vigência do PAEF, escopos estes que não podem deixar de ser encarados como de grande relevância para o financiamento do Estado português. Trata-se de interesses públicos concretos, individualizados e constitucionalmente credenciados.
Sendo inquestionável que a medida legal em análise é ditada pela necessidade de salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos, há ainda que avaliar se essa salvaguarda, nos termos em que é concretamente operacionalizada, não acarreta sacrifícios desproporcionados aos trabalhadores afetados. Impõe-se, pois, uma ponderação entre aqueles interesses públicos e as legítimas expectativas dos particulares, numa perspetiva de proporcionalidade, em particular da dimensão de proibição do excesso.
Ao permitir diminuir a despesa das empresas visadas, a medida em causa contribui para a consolidação das contas públicas, através da redução das transferências do Orçamento do Estado para tais empresas, a fim de compensar a situação deficitária. A observância das exigências de neutralidade competitiva anteriormente analisadas mostram, por outro lado, que a necessidade ou não dispensabilidade da medida é em concreto defensável.
Os pressupostos de início e termo da suspensão – respetivamente, apresentação de resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data de entrada em vigor da Lei n.º 83-C/2013 e verificação de três anos consecutivos de resultados líquidos positivos – mostram-se ajustados à finalidade da medida, em especial à salvaguarda do equilíbrio financeiro das empresas do setor público empresarial (artigo 75.º, n.ºs 1 e 6).
Acresce que o legislador optou por não sacrificar em definitivo o complemento de pensão concedido em cada empresa; limita-se a suspender o respetivo pagamento apenas na medida em que a empresa devedora não seja financeiramente autossustentável. Deste modo, a lei salvaguarda não apenas os interesses dos beneficiários como a própria autonomia de gestão da empresa devedora.
Por todo o exposto, deve entender-se que as razões de interesse público que ditaram o artigo 75.º, n.º 4, da Lei n.º 83-C/2013 sempre seriam aptas a justificar, em ponderação, a suspensão do pagamento de complementos de pensão que até à aprovação da citada Lei vinham sendo pagos por empresas do setor público empresarial financeiramente não autossustentáveis.
Violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade
62. A exposição anterior permite evidenciar também que as soluções do artigo 75.º da Lei nº 83-C/2013 não são nem arbitrárias nem excessivas.
Contrariamente ao que defendem os requerentes, não é exato que o legislador tenha isolado «categorias específicas de pensionistas» e introduzido diferenciações sem um qualquer fundamento racional. O citado artigo 75.º visa acautelar a sustentabilidade das empresas do setor público empresarial, prevenindo e minorando os impactos orçamentais negativos associados ao seu desequilíbrio financeiro. Por ser assim, justifica-se que apenas sejam visadas as empresas de tal setor que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios apurados, à data de entrada em vigor da Lei nº 83-C/2013, uma vez que em relação a elas já se verifica terem iniciado um ciclo de exploração deficitária justificativo da adoção de medidas racionalizadora dos gastos e perdas incorridos. E é precisamente esse o contexto que explica a suspensão do pagamento aos trabalhadores no ativo e aos antigos trabalhadores já aposentados de complementos correspondentes a benefícios que não constituem nem retribuição nem pensão devida nos termos da legislação sobre segurança social: tal medida consubstancia um esforço de contenção de gastos com pessoal que, em rigor, não revestem natureza operacional, uma vez que são alheios à atividade produtiva que constitui o objeto da empresa.
Por outro lado, na perspetiva do princípio da proibição do excesso, já se assinalou que, ao permitir diminuir a despesa corrente das empresas visadas, a medida em causa contribui não só para o respetivo saneamento financeiro como para a consolidação das contas públicas, através da redução das transferências, atuais ou potenciais, do Orçamento do Estado para tais empresas, a fim de compensar a situação deficitária. Ela é por isso adequada e necessária aos fins legítimos que visa atingir. Além disso, ponderando aqueles interesses públicos com os interesses dos particulares que são afetados pela medida, e tendo em conta igualmente quer o seu caráter não definitivo, quer a circunstância de a mesma medida respeitar a dimensão negativa da garantia do mínimo de existência, não se mostra que a opção do legislador em apreciação seja desproporcionada, desequilibrada ou desrazoável.
Violação do direito de contratação coletiva
63. Por último, importa considerar o argumento relativo à violação do direito de contratação coletiva (artigo 56.º, n.º 3, da Constituição). Segundo os requerentes, tal direito é posto em causa em virtude da natureza imperativa conferida ao regime do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013 pelo seu n.º 7, enquanto se verificarem as condições nele estabelecidas, prevalecendo sobre instrumentos de regulação coletiva de trabalho. Com efeito, defendem que, na medida em que são revogadas normas livremente acordadas em sede de contratação coletiva e é afastada a possibilidade de negociações futuras sobre a matéria, o citado direito fundamental é violado.
O Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de contratação coletiva é um direito que os trabalhadores apenas podem exercer através das associações sindicais, sendo, além disso, um direito que se acha colocado sob reserva da lei: a Constituição garante-o, de facto, «nos termos da lei» (artigo 56.º, n.º 3). Isto significa que a lei pode regular o direito de negociação e contratação coletiva - delimitando-o ou restringindo-o -, mas deixando sempre um conjunto minimamente significativo de matérias aberto a essa negociação. Ou seja, pelo menos, a lei há de garantir uma reserva da convenção coletiva.
Nesse sentido se pronunciou, mais recentemente, na linha de anterior jurisprudência, o acórdão n.º 602/2013, onde se refere:
«A delimitação desse núcleo intangível do direito de contratação coletiva não pode ser feita a partir da lei, sob pena de “inversão da hierarquia normativa e de esvaziamento da força jurídica do preceito constitucional” (cfr. VIEIRA DE ANDRADE e FERNANDA MAÇÃS, Contratação Coletiva e Benefícios Complementares de Segurança Social, in Scientia Iuridica, Maio-Agosto 2001, n.º 290, pág. 29 e segs.). A determinação desse núcleo essencial, por via interpretativa, há de resultar dos “contributos firmes” dados pela Constituição, concretamente, do n.º 1 do artigo 56.º da Constituição, que comete às associações sindicais a defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, e dos artigos 58.º e, sobretudo, 59.º, “na medida em que estabelece um vasto elenco de direitos dos trabalhadores e de imposições dirigidas ao Estado sobre as condições da prestação de trabalho”, do qual se pode extrair um “núcleo duro, típico, das matérias que se reportam às relações laborais e que constituirão o objeto próprio das convenções coletivas” (idem, págs. 34 e 35).
Na concretização deste domínio de «reserva de convenção coletiva», o Tribunal Constitucional já afirmou a não inconstitucionalidade da subtração por lei ao domínio da contratação coletiva da matéria do procedimento disciplinar (Acórdão n.º 94/92); da matéria das prestações complementares de segurança social (Acórdão n.º 517/98, citado); do regime da cessação do contrato de trabalho (Acórdão n.º 581/95 e Acórdão n.º 391/2004, citado); do método de cálculo da pensão de aposentação (Acórdão n.º 54/2009); ou da eficácia temporal das convenções coletivas (Acórdão n.º 338/2010).»
No acórdão n.º 517/98 - debruçando-se sobre o artigo 6.º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de dezembro, que proibia que os instrumentos de regulamentação coletiva estabelecessem e regulassem «benefícios complementares dos assegurados pelas instituições da previdência» – o Tribunal concluiu ser admissível o entendimento de que a Constituição remete para a lei a definição das matérias que podem constituir objeto de negociação e contratação coletiva. Aquela norma não conteria, por isso, qualquer restrição do direito de contratação coletiva, limitando-se antes a proceder à «delimitação negativa do âmbito material» de um tal direito, sem ultrapassar os seus poderes de conformação.
E isso era assim porque se tratava de matéria que não integrava o núcleo material reservado da contratação coletiva, conforme a seguir se explicitou:
«É que, e desde logo, a matéria das prestações complementares de segurança social não faz parte do núcleo duro do direito de contratação coletiva, pois que, como bem resulta do confronto do artigo 59º (que trata dos direitos dos trabalhadores) com o artigo 63º da Constituição (atinente à segurança social), o direito a prestações da segurança social (maxime, o direito à pensão de reforma) não é, de facto, um direito exclusivo dos trabalhadores, mas, antes, um direito dos cidadãos. A isto acresce que existe fundamento material para excluir da contratação coletiva a matéria respeitante às prestações de reforma, complementares das asseguradas pelas instituições estaduais de segurança social.
De facto, atento o elevado esforço financeiro que implica a montagem de esquemas complementares de segurança social, os trabalhadores só verdadeiramente terão a garantia de que essas prestações complementares (maxime, a prestação complementar de reforma) lhes serão pagas, se o seu pagamento for posto a cargo de entidades com aptidão e capacidade (designadamente financeira) para gerir um esquema de seguro. É que, quando por esse pagamento fica responsável a própria empresa empregadora (como no caso acontece), pode acontecer que, em dado momento, esta deixe de ter disponibilidades financeiras para satisfazer os respetivos encargos. E, para além disso, a empresa empregadora, ao assumir essa obrigação, pode ir afetar grandemente os seus ativos financeiros, desse modo pondo em risco a sua subsistência e os direitos dos credores.»
Mas, no mesmo aresto, o Tribunal não deixou de considerar uma perspetiva alternativa, considerando que a idêntica conclusão deverá chegar também quem entenda que a matéria de prestações complementares de segurança social, por estar intimamente conexionada com a das relações laborais, se encontra ainda naturalmente no âmbito da contratação coletiva. E que, para além disso, o direito de contratação coletiva, por se enquadrar no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, está sujeito ao regime do artigo 18.º, pelo que apenas pode ser restringido «nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» e não «diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial» do direito. É que, de acordo com um tal entendimento, o artigo 56.º, n.º 3, da Constituição, ao remeter para a lei, constituiria credencial bastante para que a lei pudesse restringir o referido direito de contratação coletiva. Questão é que, como então se considerou relativamente ao artigo 6.º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, se não atinja o seu conteúdo essencial e que as restrições se apresentem necessárias para a salvaguarda de outros direitos e interesses.
Neste outro contexto, o Tribunal exprimiu este ponto de vista:
«Com efeito, muito embora se considere [na perspetiva ora adotada] que o âmbito da contratação coletiva abrange naturalmente as prestações complementares de segurança social, forçoso se afigura reconhecer que tal matéria não constitui o cerne do objeto da negociação das condições da prestação de trabalho, sempre se apresentando como questão lateral, já que é ao Estado que incumbe, em primeira linha, garantir o direito à segurança social. Não pode, pois, como acima se referiu, ser tida como pertencendo ao núcleo duro do direito, ou seja, como fazendo parte do seu conteúdo essencial.
Por outro lado, existem fortes interesses em presença que permitem considerar como necessária, adequada e proporcionada a restrição em causa:
(a) o interesse das empresas e do aparelho produtivo, já que, perante uma negociação complexa, facilmente aquelas podem ser levadas, por imediatismo, a ceder em aspetos que, não implicando custos imediatos, se virão a traduzir em custos elevados e incomportáveis no futuro, pondo em causa a própria sobrevivência a médio prazo;
(b) o interesse dos próprios trabalhadores, uma vez que, renunciando a vantagens imediatas, podem ver, no futuro, inviabilizadas as esperadas compensações financeiras de tipo previdencial, por impossibilidade de cumprimento por parte das respetivas empresas;
(c) o interesse público, pois que o incumprimento dos compromissos em matéria de prestações complementares pode criar graves problemas de ordem social, que o Estado, em última análise, acaba por ser chamado a resolver.
Concluindo este ponto: a norma sub iudicio não viola, pois, os artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º e 18º, n.º 2, da Constituição da República.»
64. A referida alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de dezembro – sobre que se pronunciou o acórdão n.º 517/98 -, foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 209/92, de 2 de outubro, passando a consignar que «[o]s instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho não podem […] estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelo sistema de segurança social, salvo se ao abrigo e nos termos da legislação relativa aos regimes profissionais complementares de segurança social ou equivalentes, bem como aqueles em que a responsabilidade pela sua atribuição tenha sido transferida para instituições seguradoras».
O diploma foi entretanto revogado pelo artigo 21.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto – o diploma que aprovou o Código do Trabalho de 2003. Este último, assim como o Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro – e que se encontra presentemente em vigor – afastou a proibição expressa de os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho estabelecerem e regularem «benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência».
Em sede de «limites do conteúdo de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho» dispõe hoje o artigo 478.º, n.º 2, do Código do Trabalho de 2009 (neste particular não se afastando do que anteriormente estatuía o artigo 533.º, n.º 2, do Código do Trabalho de 2003):
«O instrumento de regulamentação coletiva de trabalho pode instituir regime complementar contratual que atribua prestações complementares do subsistema previdencial na parte não coberta por este, nos termos da lei.»
A remissão para os «termos da lei» tem por objeto os regimes complementares de iniciativa coletiva e os regimes profissionais complementares previstos na Lei de Bases da Segurança Social (Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro), que, por força do respetivo artigo 85.º, devem ser administrados «por entidades públicas, cooperativas ou privadas, nomeadamente de natureza mutualista, criadas para esse efeito nos termos legalmente previstos» (cfr., em especial, o Decreto-Lei n.º 12/2006, de 20 de janeiro, que regula a constituição e o funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões e transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2003/41/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de junho, relativa às atividades e à supervisão das instituições de realização de planos de pensões profissionais).
Trata-se, em todo o caso, de regimes complementares que se encontram especialmente regulados e integram também o sistema de segurança social, dando concretização prática a um princípio de complementaridade que, como um dos princípios gerais do sistema, se traduz na «articulação de várias formas de proteção social públicas, sociais, cooperativas, mutualistas e privadas com o objetivo de melhorar a cobertura das situações abrangidas e promover a partilha de responsabilidades” - artigo 15º da Lei n.º 4/2007.
A permissão de atribuição de prestações complementares do subsistema previdencial através de contratação coletiva, que consta do atual artigo 478.º, n.º 2, do Código do Trabalho – em termos, aliás, similares aos previstos, ainda que com uma diferente formulação verbal, no antigo artigo 6.º, n.º1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 209/92 –, não abrange claramente os complementos de pensões, que, como se observou já, são meros benefícios que não constituem retribuição, nem pensão legalmente devida nos termos da legislação da segurança social (cfr. supra n.º 55). Enquanto que os regimes complementares têm um suporte jurídico-institucional e financeiro externo à empresa e estão estreitamente associados aos fins da segurança social, os complementos de pensões têm um suporte interno, na medida em que a responsabilidade e garantia pelo pagamento das prestações se situa no âmbito da empresa e apenas pode ser realizada através das receitas correntes, e está fora de qualquer modalidade de segurança social (assinalando os riscos que a contratação destas prestações têm para as empresas e a continuidade dos direitos dos trabalhadores, ILÍDIO DAS NEVES, Os regimes complementares de segurança social, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXXVI, n.º 4, Outubro-Dezembro de 1994, págs. 279-280).
65. Como não pode deixar de reconhecer-se, o artigo 75.º da Lei do OE de 2104 não põe em causa o pagamento de prestações no âmbito dos regimes complementares instituídos nos termos da Lei de Bases da Segurança Social, mas apenas os complementos de pensões que se encontrem fora desse enquadramento legal.
Independentemente de todas as dúvidas que a admissibilidade legal destes complementos possa suscitar, atentos os termos do artigo 478.º, n.º 2, do Código do Trabalho (e da legislação precedente desde a publicação do Decreto-Lei n.º 209/92), certo é que no plano constitucional, seguindo a jurisprudência do acórdão n.º 517/98, se entende que a matéria das prestações complementares de segurança social não faz parte do núcleo duro do direito de contratação coletiva, ou seja, não integra o seu conteúdo essencial. Conforme afirmado nesse mesmo aresto, «a lei pode regular o direito de negociação e contratação coletiva — delimitando-o ou restringindo-o —, mas deixando sempre um conjunto minimamente significativo de matérias aberto a essa negociação. Ou seja: pelo menos, a lei há de garantir uma reserva de convenção coletiva», sendo este núcleo determinado em função dos direitos dos trabalhadores e das imposições dirigidas ao Estado sobre as condições da prestação de trabalho previstos nos artigos 56.º, n.º 1, 58.º e 59.º da Constituição.
Encontrando-se a reserva da contratação coletiva materialmente delimitada pelo elenco de direitos dos trabalhadores constitucionalmente consagrados, dela se encontra necessariamente excluída a matéria atinente à segurança social a que se refere o artigo 63.º, que constitui um direito de natureza diferente do da contratação coletiva e com distintos destinatários (também, neste sentido, VIEIRA DE ANDRADE e FERNANDA MAÇÃS, ob. cit., págs. 34-35). E esta asserção é válida para os regimes profissionais complementares, sê-lo-á, com maior evidência, em relação a benefícios que se não enquadram no sistema da segurança social e relativamente aos quais até pode existir fundamento material para os excluir da contratação coletiva pelo risco quanto à solvabilidade das empresas e à garantia do pagamento das prestações.
E, de qualquer modo, as considerações feitas no citado Acórdão n.º 517/98 relativamente à proibição legal da instituição por via de convenção coletiva de «benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência» mostram-se aplicáveis – até por maioria de razão – à suspensão imperativa do pagamento de tais benefícios determinada por razões de sustentabilidade financeira das empresas por eles responsáveis. Com efeito, valem aqui também as razões justificativas de uma eventual restrição do direito fundamental de contratação coletiva indicadas nesse acórdão com referência ao interesse das empresas e do aparelho produtivo e ao interesse público (na conjuntura atual, em que o país se encontra ainda ao abrigo do PAEF, e considerando que está em causa o equilíbrio financeiro de empresas do setor público empresarial, este interesse mostra-se especialmente reforçado). Por outro lado, também não podem ser negligenciados nem o interesse dos trabalhadores atuais das empresas em dificuldades – que, antes de mais, pretendem ver garantido o seu posto de trabalho – nem o interesse das empresas concorrentes e dos seus trabalhadores – que aspiram a uma real igualdade de oportunidades – nem, tão pouco, o interesse dos contribuintes em geral – que não devem ser chamados a financiar os benefícios particulares objeto de contratação coletiva em determinadas empresas. Acrescem as ponderações anteriormente realizadas, a propósito da proporcionalidade da solução normativa consignada no artigo 75.º da Lei nº 83-C/2013 (cfr. supra n.º 62).
Em conclusão: a norma aqui em apreciação não viola nem o artigo 56.º, n.º 3, nem o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição.
C) Normas do artigo 115.º (contribuição sobre prestações de doença e desemprego)
66. Os autores dos pedidos nos Processos n.ºs 14/14 e 47/14 suscitam a questão de constitucionalidade das normas do artigo 115.º, referente a prestações de doença e de desemprego, com base na violação do princípio da proporcionalidade decorrente do Estado de direito democrático (artigo 2.º) e também, no primeiro caso, com base no princípio da igualdade (artigo 13.º a Constituição).
O artigo 115.º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE de 2014) estabelece o seguinte:
Artigo 115.º
Contribuição sobre prestações de doença e de desemprego
1 — Sem prejuízo da cláusula de salvaguarda prevista no número seguinte, as prestações do sistema previdencial concedidas no âmbito das eventualidades de doença e desemprego são sujeitas a uma contribuição nos seguintes termos:
a) 5 % sobre o montante dos subsídios concedidos no âmbito da eventualidade de doença;
b) 6 % sobre o montante dos subsídios de natureza previdencial concedidos no âmbito da eventualidade de desemprego.
2 — A aplicação do disposto no número anterior não prejudica, em qualquer caso, a garantia do valor mínimo das prestações, nos termos previstos nos respetivos regimes jurídicos.
3 — O disposto na alínea a) do n.º 1 não se aplica a subsídios referentes a período de incapacidade temporária de duração inferior ou igual a 30 dias.
4 — O disposto na alínea b) do n.º 1 não se aplica às situações de majoração do subsídio de desemprego, previstas no artigo seguinte.
5 — A contribuição prevista no presente artigo reverte a favor do IGFSS, I. P., sendo deduzida pelas instituições de segurança social do montante das prestações por elas pagas, constituindo uma receita do sistema previdencial.
67. Os pedidos vêm sustentados na seguinte ordem de considerações:
a) A aplicação de uma contribuição sobre prestações do sistema previdencial nas eventualidades de doença e desemprego de 5% e de 6%, respetivamente, ainda que com a garantia do valor mínimo previsto nos correspondentes regimes jurídicos é de todo desrazoável e continua a afrontar a Constituição;
b) Importa não esquecer que os beneficiários destas prestações já viram os seus rendimentos substancialmente reduzidos em função da situação de doença ou de desemprego em que involuntariamente se encontram, sendo que o valor do subsídio de desemprego corresponde a 65% da remuneração média, não podendo ultrapassar o valor de 2,5 IAS, e é reduzido em 10% ao fim de seis meses (redução que já atinge hoje a maioria dos desempregados devido ao peso relativo do desemprego de longa duração) e o valor do subsídio de doença oscila entre os 55% e os 75% da remuneração média, conforme a duração da incapacidade para o trabalho, sendo de notar que em situação de doença os encargos tendem a aumentar;
c) Não é admissível que cidadãos que se encontram em situação de falta ou de diminuição de meios de subsistência e que por isso são credores de proteção social (artigo 63.°, n.º 3, da Constituição) vejam os seus meios de subsistência ainda mais reduzidos por um encargo para o qual não se apresenta justificação;
d) Os cortes de 5% e de 6%, respetivamente, sobre os subsídios de desemprego e de doença não são manifestamente um meio idóneo para resolver ou minorar significativamente eventuais problemas de sustentabilidade da segurança social, e quando representam um sacrifício adicional para quem já se encontra numa situação de particular fragilidade, entram no domínio da desproporcionalidade;
e) A aplicação, de forma repetida, de um tratamento mais gravoso a quem é constitucionalmente merecedor de mais proteção, num contexto em que se desagravam outros e se reduz o esforço exigido noutras direções, ofende não apenas o princípio da proporcionalidade em várias das suas dimensões, mas também (nomeadamente o da necessidade) e ainda o princípio da igualdade, por aplicação - repetida e duplicada -.
68. O questionado artigo 115.º sujeita os montantes dos subsídios concedidos no âmbito da eventualidade de doença ou de desemprego a uma “contribuição”, respetivamente, de 5% e de 6%, com exceção das situações previstas nos seus n.ºs 3 e 4 (subsídios referentes a período de incapacidade temporária de duração inferior ou igual a 30 dias e situações de majoração do subsídio de desemprego previstas no artigo 118.º), salvaguardando, contudo, o valor mínimo das prestações, nos termos previstos nos respetivos regimes jurídicos (nº 2). A referida contribuição será deduzida pelas instituições de segurança social do montante das prestações por ela pagas e constituirá uma receita do sistema previdencial (n.º 5).
Através desta disposição, reedita-se para o ano de 2014 a norma constante 117.º da Lei do Orçamento de Estado para 2013 (Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro), que igualmente instituía uma contribuição sobre prestações de doença e desemprego, com a diferença específica de ter passado estabelecer-se, por efeito no n.º 2 do artigo 115.º, a garantia do valor mínimo das prestações que resulte do regime legal aplicável a qualquer das situações.
Por sua vez, a norma agora em apreciação reproduz a do artigo 10.º da Lei n.º 51/2013, de 24 de julho, que procede à primeira alteração à Lei do Orçamento de Estado para 2013, e que surge na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/13, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, a referida disposição do artigo 117.º daquela Lei.
69. As prestações de desemprego encontram-se previstas e reguladas no Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 68/2009, de 20 de março, 72/2010, de 18 de junho, 64/2012, de 15 de março, 13/2013, de 18 de janeiro, e 167-E/2013, de 31 de dezembro, bem como pelas Leis n.ºs 5/2010, de 5 de maio, e 66-B/2012, de 21 de dezembro.
Nos termos do diploma mencionado, constituem prestações de desemprego o subsídio de desemprego, o subsídio social de desemprego e o subsídio de desemprego parcial (artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 220/2006). A contribuição prevista no artigo 115.º abrange, no entanto, apenas as prestações do sistema previdencial e, portanto, as prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da eventualidade de desemprego, e não já o subsídio social de desemprego, que integra o subsistema de solidariedade do sistema de proteção social de cidadania e que cobre a proteção social nas situações em que não seja atribuível o subsídio de desemprego ou em que os beneficiários tenham esgotado os períodos de concessão de desemprego (cfr. artigos 41.º, n.º 1, alínea c), e 52.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, e artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 220/2006).
A titularidade do direito ao subsídio de desemprego que, por ser uma prestação do sistema previdencial, interessa considerar, é reconhecida, em termos gerais, segundo o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 220/2006, aos beneficiários cujo contrato de trabalho tenha cessado de forma involuntária, reúnam as respetivas condições de atribuição à data do desemprego e residam em território nacional.
O montante mínimo do subsídio de desemprego está previsto no artigo 29.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 220/2006, alterado pelo Decreto-Lei n.º 64/2012, que estabelece o seguinte: “o montante mensal do subsídio de desemprego não pode ser superior a duas vezes e meia o valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem inferior ao valor desse indexante, sem preju
Ora, à luz do artigo 113.º da Lei nº 83-C/2013, encontra-se suspenso durante o ano de 2014 o regime de atualização anual do IAS, mantendo–se em vigor o valor de € 419,22, estabelecido no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 323/2009, de 24 de dezembro, alterado pelas Leis n.ºs 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 64-B/2011, de 30 de dezembro. Nestes termos, o valor mínimo garantido, por força do n.º 2 do artigo 115.º da Lei OE 2014, é correspondente ao referido montante de € 419,22.
70. Por seu turno, o regime jurídico de proteção social na eventualidade de doença encontra-se plasmado no Decreto-Lei n.º 28/2004, de 4 de fevereiro, alterado pelos Decretos-Lei n.ºs 146/2005, de 26 de agosto, 302/2009, de 22 de outubro, pela Lei n.º 28/2011, de 16 de junho, e pelo Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho. Nos termos destes diplomas, a proteção na eventualidade doença realiza-se mediante a atribuição de prestações destinadas a compensar a perda de remuneração presumida, em consequência de incapacidade temporária para o trabalho e abrange, em regra, os beneficiários do subsistema previdencial integrados no regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem e dos trabalhadores independentes (artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 28/2004).
O montante mínimo do subsídio de doença decorre do artigo 19.º do diploma acima referido, e “não pode ser inferior a 30% do valor diário da retribuição mínima mensal estabelecida para o setor de atividade do beneficiário”. Além disso, “nos casos em que a remuneração de referência do beneficiário seja inferior ao valor mínimo estabelecido no número anterior o montante diário do subsídio de doença é igual ao montante diário daquela remuneração”. Nestes termos, e tendo em conta que a remuneração mínima mensal garantida foi substituída, por força dos artigos 2.º e 8.º, n.º 1, da Lei n.º 53-B/2006, de 29 de dezembro, pelo Indexante dos Apoios Sociais (IAS), o limite mínimo do subsídio de doença será, em qualquer caso, € 4,19 diários (€ 125,70 mensais), correspondentes a 30% do valor diário do IAS ou 100% da remuneração de referência líquida se esta for inferior àquele valor.
71. Estamos, em qualquer dos casos, perante prestações contributivas (incluídas no regime geral de segurança social contributivo e obrigatório) e substitutivas de rendimentos do trabalho (subsistema previdencial). Afiguram-se, por isso, como concretizações do direito fundamental dos trabalhadores a assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego, previsto no artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da CRP; bem como do direito à segurança social, consagrado no artigo 63.º da Constituição, cujo n.º 3 estabelece que o “sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
Desta forma, o subsídio de desemprego “consiste numa espécie de compensação ou indemnização por não satisfação do direito ao trabalho” e deveria, em condições ideais, ser universal, não ter limite temporal (manter-se enquanto persistir a situação de desemprego involuntário) e permitir uma existência condigna. Contudo, “é evidente que tratando-se de um direito prestacional, de natureza positiva, a sua realização depende do legislador e da sua implementação administrativa e financeira” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 774).
Quanto ao subsídio de doença, e apesar de não haver, na Constituição, uma referência expressa à assistência material por doença não profissional, parece resultar da conjugação do artigo 59.º, n.º 1, alínea e), com o artigo 63.º, n.º 3, da CRP uma exigência constitucional de previsão legal de formas de assistência material aos trabalhadores que, não estando desempregados, se encontram, por outro fundamento impedidos temporariamente da prestação de trabalho, e em situação de carência ou insegurança material.
Em suma, e como se reafirmou no acórdão n.º 187/13, “a Constituição assegura diretamente um direito dos trabalhadores a assistência material quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego e dirige um comando ao legislador no sentido de este prever, no sistema de segurança social, formas de assistência material aos trabalhadores em situação de doença. Foi este o imperativo a que o legislador deu execução, no âmbito do subsistema previdencial, através dos regimes jurídicos de proteção social nas eventualidades de desemprego e doença”.
Dada a essencialidade deste tipo de prestações, “o direito a uma prestação pública que garanta aos carenciados uma existência minimamente digna deve ser considerado como um direito positivo imediatamente vinculante e justiciável, mesmo à margem da lei” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 818), como também decorre da jurisprudência constitucional (veja-se, por exemplo, o acórdão n.º 509/02).
72. Não existe motivo, por outro lado, para alterar a caracterização jurídica da contribuição sobre prestações de desemprego e de doença que foi já efetuada pelo Tribunal Constitucional em relação à medida similar inscrita na LOE 2013.
No acórdão n.º 187/13 entendeu-se que a contribuição deveria ser qualificada como “medida de redução de despesa, tendo em conta que, (...) é exclusivamente no interior do sistema público, que se processa e paga o subsídio, que se obtém o resultado orçamental pretendido, por minoração do conteúdo da posição creditória dos beneficiários de uma prestação previdencial. O valor da contribuição é, na verdade, descontado na importância a receber pelo beneficiário, por compensação parcial entre crédito e débito, tudo se passando como se a prestação a que o beneficiário tem direito fosse reduzida no seu montante.
[...] A circunstância de se tratar de uma contribuição que obedece a uma taxa fixa, de montante reduzido, invariável e não progressiva, sem qualquer isenção na base, incidente sobre uma prestação decorrente de situações eventuais e não certas, como a pensão por reforma ou aposentação, reforça o entendimento de que estamos perante uma situação que se não enquadra no universo tributário, tratando-se antes de uma redução do montante dos subsídios a que têm direito”.
Porém - acrescentou ainda o Tribunal -, mesmo que se entendesse tratar-se de uma medida de natureza tributária, “a sobrecarga contributiva fixada nestes termos, que vai onerar precisamente as categorias de sujeitos que se encontram numa posição de vulnerabilidade - em razão da qual foi organizado o sistema de proteção -, não suscita em si um problema de invalidade constitucional por referência ao direito à segurança social (artigo 63º, n.º 3, da Constituição), constituindo antes um desvio ao funcionamento do sistema, na medida em que introduz uma nova modalidade de financiamento da segurança social que abarca os próprios beneficiários das prestações sociais. Podendo apenas discutir-se, em tese geral, a razoabilidade ou a proporcionalidade da medida”.
Assim sendo, mesmo na perspetiva de que estamos perante uma receita do sistema previdencial – e tal como se concluiu naquele aresto -, a questão que é colocada reconduz-se a saber se é constitucionalmente legítimo operar a diminuição do montante pecuniário que é devido nas situações de doença ou desemprego. E a resposta a essa questão não será diversa daquela que puder ser formulada quando se entenda, diferentemente, que o artigo 115º da Lei do Orçamento não pretendeu mais do que instituir uma medida de redução de despesa.
73. A questão nova que os pedidos de declaração de inconstitucionalidade colocam, relativamente à precedente norma do artigo 117.º, é a de saber se a inclusão de uma cláusula de salvaguarda no n.º 2 do artigo 115.º da LOE 2014, que impede que a aplicação da contribuição sobre prestações de doença e de desemprego possa prejudicar, em qualquer caso, a “garantia do valor mínimo das prestações, nos termos previstos nos respetivos regimes jurídicos”, afasta a possível violação do princípio da proporcionalidade.
O proponente da norma, na Nota enviada ao Tribunal em que justifica a constitucionalidade da Lei n.º 83-C/2013, considera que o único obstáculo à viabilização constitucional da medida colocado pelo acórdão n.º 187/13 relativamente à correspondente disposição do artigo 117.º consistia na não previsão de um “limiar abaixo do qual os subsídios de doença e de desemprego não poderiam ser restringidos”, e exprime a ideia de que esse óbice se encontra inteiramente corrigido, na nova formulação do artigo 115.º da Lei nº 83-C/2013, na medida em que se prevê agora (concretamente no seu n.º 2) que da aplicação das contribuições sobre os montantes dos subsídios concedidos nas eventualidades de doença e de desemprego, “em caso algum poderá ser atingido o valor mínimo das prestações já efetivado nos termos da lei” (págs. 23-24).
Essa poderá não ser, no entanto, a única interpretação possível do acórdão que declarou a inconstitucionalidade do antigo artigo 117.º da LOE 2013.
Tendo feito notar que a contribuição sobre subsídios de doença e desemprego, implicando, na prática, uma redução dos montantes pecuniários a que os beneficiários têm direito, poderá determinar que a prestação a auferir fique, em certos casos, aquém do nível mínimo que foi já objeto de concretização legislativa, o Tribunal deu especial ênfase à ausência de uma qualquer cláusula de salvaguarda que evite esse resultado e que impeça, portanto, que os montantes pecuniários correspondentes aos subsídios de doença e de desemprego, por força da dedução agora prevista, possam ficar abaixo do limite mínimo que o legislador fixou, em geral, para o conteúdo da prestação devida para qualquer dessas situações.
E considerou que uma tal solução pode confrontar-se, desde logo, com o princípio da proporcionalidade, especificamente na vertente relativa à idoneidade da medida para a prossecução dos fins visados pela lei. Isso porque, tendo pretendido o legislador reforçar o financiamento da segurança social e contrariar o défice resultante da diminuição de receitas contributivas e do aumento de despesa com as prestações sociais, dificilmente se poderia conceber como adequada uma medida que, “sem qualquer ponderação valorativa, atinja aqueles beneficiários cujas prestações estão já reduzidas a um montante que o próprio legislador, nos termos do regime legal aplicável, considerou corresponder a um mínimo de sobrevivência para aquelas específicas situações de risco social”.
E por essa mesma ordem de considerações, o Tribunal questionou – como argumento adicional - se não poderia estar aí em causa a garantia da existência condigna, tendo em conta que os limites mínimos que o legislador fixa para as prestações compensatórias da perda da remuneração, no âmbito do sistema previdencial, ainda que não tenham por referência os critérios de fixação do salário mínimo nacional, não deixam de constituir a expressão de um mínimo de existência socialmente adequado.
No entanto, o Tribunal focou também a atenção na desrazoabilidade da medida quando “ela atinge os beneficiários que se encontram em situação de maior vulnerabilidade por não disporem de condições para obterem rendimentos do trabalho para fazer face às necessidades vitais do seu agregado familiar, e abrange as prestações sociais que precisamente revestem uma função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado”.
E este outro fundamento parece ter pleno cabimento independentemente da ultrapassagem da garantia do valor mínimo das prestações, no ponto em que o Tribunal associa a desrazoabilidade à especial vulnerabilidade dos destinatários da medida em decorrência de as prestações que lhe são atribuídas, implicarem já, pelo seu próprio regime, uma diminuição pecuniária substancial em relação aos normais rendimentos do trabalho, e não tanto à maior debilitação que resulta de essas prestações, por efeito da contribuição, se situarem abaixo do nível mínimo legalmente concretizado. E, assim, o argumento, porque está relacionado com a situação específica dos beneficiários dos subsídios de doença e de desemprego, mostra-se ser invocável mesmo em face da cláusula de salvaguarda que o n.º 2 do artigo 115.º da LOE de 2104 visou introduzir.
74. O princípio da razoabilidade surge relacionado com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, e orienta-se para a avaliação da razoabilidade da imposição na perspetiva das suas consequências na esfera pessoal daquele que é afetado. Nesse plano, a questão não se coloca na adequação da gravidade do sacrifício imposto em relação à importância ou premência da realização dos fins prosseguidos, mas na circunstância de ocorrer uma afetação inadmissível ou intolerável do ponto de vista de quem a sofre e por razões atinentes à sua subjetividade. Deste modo, “o controlo da razoabilidade concentra-se na gravidade, qualitativa ou quantitativa, que a medida provoca na esfera do(s) afetado(s), havendo inconstitucionalidade sempre que, independentemente da adequação da relação meio-fim […], os encargos impostos excedem o que é legitimamente tolerável pela liberdade e autonomia pessoal em Estado de Direito. Logo, no controlo da razoabilidade já não é a adequação da relação entre bens que é averiguada, mas sim a razoabilidade da relação entre um dever de direito público e a pessoa do obrigado” (REIS NOVAIS, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, págs. 187-189).
Este critério atinente ao princípio da proporcionalidade tem particular acuidade quando se fala de uma contribuição que incide sobre cidadãos que se encontram dependentes, quanto à sua capacidade de ganho, do sistema previdencial da segurança social e viram os seus rendimentos, por via disso, substancialmente reduzidos.
Recorde-se que, por aplicação da cláusula de salvaguarda agora instituída pelo n.º 2 do artigo 115.º da lei n.º 83-C/2013, o montante mínimo do subsídio de desemprego corresponde ao valor do Indexante dos Apoios Sociais (€ 419,22) e pode não atingir mais do que 80% desse valor no caso do subsídio social de desemprego (€ 335,38), enquanto que o montante mínimo do subsídio de doença não ultrapassa 30% do valor diário do Indexante dos Apoios Sociais (€ 125,70 mensais), montantes que se aproximam ou se situam mesmo abaixo do limiar de risco de pobreza:
E mesmo para as situações a que se não torne aplicável esse limite, as prestações que sofrem a incidência da contribuição têm, em regra, um valor muito reduzido e respeitam a beneficiários que se encontram em situação especialmente fragilizada. Note-se que o valor do subsídio de desemprego corresponde a 65% da remuneração média, não podendo ultrapassar o valor de 2,5 IAS (€ 1.048,05), e é reduzido em 10% ao fim de seis meses; por seu turno, o subsídio de doença oscila entre os 55% e os 75% da remuneração média, conforme a duração da incapacidade para o trabalho.
O próprio regime destas prestações, tal como normativamente configurado, já acarreta, pois, inevitavelmente, uma séria afetação do padrão de vida dos atingidos por uma situação de desemprego ou doença, pelo que a incidência desta medida de redução representa, não uma primeira afetação negativa (como a redução que recai sobre as remunerações), mas uma nova diminuição do rendimento disponível, agravando carências já anteriormente causadas pelas situações que justificam as prestações. Prestações que, além do mais, têm caráter precário, o que constitui um constrangimento suplementar na condução de vida e na autonomia pessoal dos beneficiários.
Para além disso o grau de afetação provocado pela contribuição sobre o subsídio de desemprego e de doença é particularmente intenso comparativamente com as reduções remuneratórias para os trabalhadores da Administração Pública e do Setor Empresarial do Estado, que abrangem apenas as remunerações superiores a € 675 e a que se aplica uma taxa percentual progressiva a partir de 2,5%, e que só atinge 5% e 6% a partir de remunerações de € 1000 e de € 1200 (artigo 33.º, n.º 1, da Lei OE 2014); como também em relação à Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), cujo limite mínimo de incidência é de € 1.000, com uma taxa percentual de 3,5% até ao valor de € 1800 (artigo 76.º da LOE de 2014, na redação da Lei n.º 13/2014, de 14 de março).
75. Nestes termos, mesmo que se entenda que as razões de consolidação orçamental legitimam alguma redução dos montantes destas prestações, o critério de fixação, no n.º 2 do artigo 115.º, dos patamares mínimos de incidência penaliza excessivamente os credores de prestações mais baixas.
Não podendo deixar de se considerar, além do mais, que a atribuição dos subsídios de desemprego e de doença não tem um cunho assistencialista, mas representa antes a efetivação de um direito integrado no sistema de segurança social constitucionalmente consagrado, no quadro de um sistema de gestão coletiva de riscos. E, tal como se afirmou no acórdão n.º 187/13, o que se tem em vista com essas prestações “não é assegurar os mínimos vitais de cidadãos em situação de carência económica e contribuir para a satisfação das suas necessidades essenciais, mas antes garantir, no âmbito do sistema previdencial, assente num princípio de solidariedade de base profissional, o pagamento de prestações pecuniárias destinadas a compensar a perda da remuneração por incapacidade temporária para o trabalho ou impossibilidade de obtenção de emprego”.
Revestindo estas prestações uma função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado, por ter caído nas situações de desemprego ou de doença, impor-se-ia que se não atingissem, sem uma justificação reforçada, aqueles que auferem prestações de menor valor e cuja redução só poderia constituir uma iniciativa extrema, de ultima ratio, fundada na sua absoluta indispensabilidade e insubstituibilidade.
Uma diferente opção legislativa é desrazoável na medida em que afeta especialmente cidadãos que se encontram em situação de particular vulnerabilidade.
O Tribunal pronuncia-se, nestes termos, pela inconstitucionalidade da norma do artigo 115.º
D) Normas do artigo 117.º (pensões de sobrevivência)
76. Os requerentes nos Processos n.ºs 14/14, 47/14 e 137/14 pedem a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de normas contidas no artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, com fundamento na violação do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º), do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1), e do princípio da proporcionalidade, também decorrente do princípio do Estado de direito, e ainda com base em restrição ao direito à propriedade (artigo 62.º) e ao direito à segurança social (artigo 63.º).
É o seguinte o teor das normas do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro:
«Artigo 117.º
Pensões de sobrevivência dos cônjuges e ex-cônjuges
1 — As pensões de sobrevivência a atribuir a partir de 1 de janeiro de 2014, pela CGA e pelo CNP, aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente ou beneficiários do regime geral de segurança social que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000 são calculadas por aplicação das taxas de formação da pensão da seguinte tabela:
Valor mensal global das pensões percebidas pelo titular (euro) |
Taxa de formação da pensão (%) |
|
A |
B |
|
De 2 000 a 2 250 . . . . . . . . . . . . . . . |
44,0 |
53,0 |
De 2 250,01 a 2 500 . . . . . . . . . . . .. .. |
43,0 |
51,0 |
De 2 500,01 a 2 750 . . . . . . . . . . . .. .. |
40,0 |
48,0 |
De 2 750,01 a 3 000 . . . . . . . . . . . . .. |
38,0 |
45,0 |
De 3 000,01 a 4 000 . . . . . . . . . . . . .. |
34,0 |
41,0 |
Mais de 4 000. . . . . . . . . . . . . . . . |
33,0 |
39,0 |
2 — Os valores da taxa de formação da pensão da tabela do número anterior aplicam-se, no âmbito do regime de proteção social convergente e do regime geral de segurança social, nos seguintes termos:
a) A pensão de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor até 31 de dezembro de 2005 ou de subscritor inscrito na CGA, até 31 de agosto de 1993, falecido no ativo, que se aposentaria com base naquele regime legal é calculada, segundo as regras do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março, com base nos valores da col. A;
b) A pensão de sobrevivência a atribuir por morte de beneficiário do regime geral de segurança social ou de contribuinte do regime de proteção social convergente inscrito na CGA após 31 de agosto de 1993 não aposentado até 31 de dezembro de 2005 é calculada, segundo as regras do regime de proteção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro, com base nos valores da col. B;
c) A pensão de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor a partir de 1 de janeiro de 2006 ou de subscritor, falecido no ativo, que se aposentaria com base naquele regime legal é calculada com base na aplicação dos valores da col. A ao montante da 1.ª parcela da pensão de aposentação ou reforma e dos valores da col. B ao montante da 2.ª parcela da mesma pensão, distribuindo-se o valor assim obtido pelos herdeiros hábeis na mesma proporção estabelecida no regime de proteção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro.
3 — Nos casos em que o cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto do regime de proteção social convergente concorra com outros herdeiros do contribuinte falecido, a pensão daquele corresponde a uma parte do montante resultante da aplicação das regras dos números anteriores proporcional à percentagem da pensão de aposentação ou equiparada do falecido que lhe caberia de acordo com as regras de distribuição da pensão de sobrevivência do regime legal que lhe seja concretamente aplicável.
4 — Nos casos em que o cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto do regime geral concorra com ex-cônjuges, a pensão daquele corresponde à parte que lhe cabe de acordo com as regras de individualização do artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro, do montante da pensão calculada de acordo com as percentagens constantes da col. B acrescidas de uma majoração de 16,66 %.
5 — As pensões de sobrevivência em pagamento pela CGA, aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000 são recalculadas, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014, nos termos estabelecidos nos n.ºs 1, 2 e 3.
6 — O valor ilíquido das pensões de sobrevivência dos cônjuges pensionistas do regime geral, em pagamento em 31 de dezembro de 2013, que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000 é reduzido na percentagem resultante da proporção entre as percentagens previstas no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro, e as aplicáveis ao cônjuge nos termos dos n.ºs 1, 2 e 4.
7 — Para efeito do disposto no presente artigo, considera-se valor global mensal percebido a título de pensão o montante correspondente ao somatório do valor mensal de subvenção mensal vitalícia e subvenção de sobrevivência com todas as pensões de aposentação, reforma e equiparadas, pensões de velhice e invalidez, bem como pensões de sobrevivência, que sejam pagas, ao titular da pensão a atribuir ou a recalcular, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza, institucional, associativa ou empresarial, do seu âmbito territorial, nacional, regional ou municipal, e do grau de independência ou autonomia, incluindo entidades reguladoras, de supervisão ou controlo e caixas de previdência de ordens profissionais, diretamente ou por intermédio de terceiros, designadamente companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões.
8 — As pensões e outras prestações não previstas no número anterior não relevam para determinação do valor global mensal percebido a título de pensão, nomeadamente as seguintes:
a) Pensões de reforma extraordinária e de invalidez e abonos e prestações suplementares de invalidez atribuídos a:
i) Deficientes das Forças Armadas (DFAS), ao abrigo do Decreto-Lei n.º 43/76, de 20 de janeiro;
ii) Grandes deficientes das Forças Armadas (GDFAS), nos termos do Decreto -Lei n.º 314/90, de 13 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 146/92, de 21 de julho, e 248/98, de 11 de agosto;
iii) Grandes deficientes do serviço efetivo normal (GDSEN), de acordo com o Decreto-Lei n.º 250/99, de 7 de julho;
b) Pensões de preço de sangue e pensões por serviços excecionais e relevantes prestados ao País, reguladas no Decreto-Lei n.º 466/99, de 6 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 161/2001, de 22 de maio;
c) Pensões por condecorações, previstas nos Decretos-Leis n.ºs 316/2002, de 27 de dezembro, 414-A/86, de 15 de dezembro, alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 85/88, de 10 de março, e 131/95, de 6 de junho, e no Decreto Regulamentar n.º 71-A/86, de 15 de dezembro, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 12/2003, de 29 de maio;
d) Pensões de ex-prisioneiros de guerra, previstas na Lei n.º 34/98, de 18 de julho, e no Decreto-Lei n.º 161/2001, de 22 de maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 170/2004, de 16 de julho;
e) Acréscimo vitalício de pensão, complemento especial de pensão e suplemento especial de pensão atribuídos aos antigos combatentes ao abrigo das Leis n.ºs 9/2002, de 11 de fevereiro, 21/2004, de 5 de junho, e 3/2009, de 13 de janeiro.
9 — As pensões e outras prestações referidas no número anterior transmitidas por morte do seu beneficiário originário, designadamente do autor dos factos que determinam a sua atribuição, ficam excluídas do âmbito de aplicação do presente artigo, designadamente das regras de cálculo e de recalculo estabelecidas nos n.ºs 1 e 5.
10 — As pensões de sobrevivência de ex-cônjuge divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens e de pessoa cujo casamento com contribuinte do regime de proteção social convergente ou com beneficiário do regime geral de segurança social tenha sido declarado nulo ou anulado são atribuídas ou recalculadas, em função do regime legal considerado no respetivo cálculo, nos seguintes termos:
a) As atribuídas com base no regime legal introduzido pelo Decreto-Lei n.º 133/2012, de 27 de junho, são calculadas ou recalculadas no valor estritamente necessário para assegurar que o montante dessas pensões não exceda o valor da pensão de alimentos que o seu titular recebia do contribuinte ou beneficiário à data do falecimento deste;
b) As restantes, atribuídas com base em regimes anteriores, são recalculadas nos mesmos termos das pensões de sobrevivência do cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto.
11 — Da aplicação do disposto no presente artigo não pode resultar para os pensionistas de sobrevivência referidos nos n.ºs 1, 3 e 4 e na alínea b) do número anterior um valor global mensal a título de pensão ilíquido inferior a € 2000.
12 — Na determinação da taxa de formação da pensão a aplicar, o 14.º mês ou equivalente e o subsídio de Natal são considerados mensalidades autónomas.
13 — O valor correspondente à diferença entre a pensão de sobrevivência do cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto determinada com base na taxa de formação de pensão da tabela do n.º 1 e a que resultaria da aplicação das taxas de formação da pensão previstas no Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março, ou no regime de proteção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro, não é objeto de distribuição pelos outros herdeiros hábeis do contribuinte ou beneficiário falecido.
14 — As medidas dos números anteriores são acumuláveis com a redução das pensões da CGA, operada no quadro da convergência deste regime com as regras de cálculo do regime geral de segurança social na parte em que o valor daquelas, calculadas sem aplicação das regras da convergência, exceda o desta.
15 — A aplicação do regime do presente artigo depende de o cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto ser titular de, pelo menos, uma prestação prevista no n.º 7 excluindo pensões de sobrevivência.”
77. Os pedidos invocam, em resumo, as seguintes razões:
a) Opta-se, para essas pensões e para os seus titulares, por um tratamento mais gravoso, a ponto de atingir a desapropriação total, quando se imporia uma proteção diferencial (artigo 63.º, n.º 4);
b) Prevê-se no artigo 117.° da Lei nº 83-C/2013 a ablação, parcial ou total, de prestações a atribuir ou pagas a título de pensão de sobrevivência, sendo este nível sacrificial é injustificável para situações de viuvez e análogas;
c)Em alguns casos, as normas em causa consubstanciam uma redução retrospetiva, operada através de recálculo, de pensões de sobrevivência já em pagamento, pelo que afetam direitos consolidados na esfera patrimonial dos seus titulares, o que constitui uma afetação gravosa e inédita do direito à pensão protegido constitucionalmente;
d) As normas do artigo 117.° da Lei nº 83-C/2013 contém soluções legislativas manifestamente assistemáticas e desenquadradas de qualquer esforço global de sustentabilidade do sistema público de proteção social e de repartição intergeracional e intrageracional do ónus dessa sustentabilidade, merecendo por isso o mesmo destino que as normas que estiveram em apreciação no acórdão n.º 862/2013 desse Tribunal, isto é, a declaração de inconstitucionalidade por violação do princípio da proteção da confiança;
e) Para além disso, o legislador isolou categorias ou classes específicas de pensionistas e submeteu-os a tratamento diferenciado cujo impacto, comparando com a situação dos grupos de pensionistas que não são atingidos, se mostra claramente desequilibrado em relação às razões da diferenciação;
f) As normas violam ainda o princípio da proporcionalidade, desde logo porque o próprio legislador, pelos seus comportamentos noutras zonas da política orçamental, mostra que existe margem para medidas alternativas menos drásticas para estas categorias específicas de beneficiários da proteção social;
g) O artigo 117.° da Lei nº 83-C/2013 reduz as pensões de sobrevivência atribuídas aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente ou beneficiários do regime geral de segurança social que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a 2000 euro, resultando mesmo em alguns casos na supressão total da pensão de sobrevivência;
h) A redução do valor das prestações atribuídas no âmbito de sistemas contributivos, seja qual for o seu valor, corresponde a uma violação da relação jurídica de segurança social estabelecida entre o Estado e o cidadão beneficiário;
i) O legislador elegeu como único grupo de cidadãos visados aqueles pensionistas de sobrevivência que percebam rendimentos de pensões a cargo de quaisquer entidades públicas (com as exceções consignadas no n.º 8 do artigo 117.º), isentando do âmbito subjetivo da ablação os pensionistas de sobrevivência que, não sendo titulares de uma das pensões ou prestações relevantes para efeitos da aplicação da medida contestada, aufiram igualmente valor global mensal igual ou superior a € 2.000,00 a título de outras fontes de rendimento;
l) As normas constantes do preceito em causa denotam pois uma desigualdade entre pensionistas de sobrevivência com idêntica condição de recursos, em função do tipo ou natureza dos rendimentos auferidos, sacrificando o legislador exclusivamente os direitos de certos pensionistas de sobrevivência.
Enquadramento
78. Da fundamentação do pedido formulado no Processo n.º 14/2014 resulta que as normas do artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 que os requerentes questionam são as normas que preveem “a desapropriação”, “a ablação, parcial ou total, de prestações a atribuir ou pagas a título de pensão de sobrevivência”, normas essas que em alguns casos “consubstanciam uma redução retrospetiva, operada através de recálculo, de pensões de sobrevivência já em pagamento”.
Os requerentes do Processo n.º 47/2014, ainda que também peçam a declaração da inconstitucionalidade de todas as normas do artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, questionam apenas, como resulta da fundamentação do seu pedido, as normas daquele artigo que reduzem “as pensões de sobrevivência atribuídas aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente ou beneficiários do regime geral de segurança social que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a 2000 euro” normas que “configuram uma redução retrospetiva de pensões já em pagamento”.
No Processo n.º 137/2014, vem pedida a declaração da inconstitucionalidade das normas constantes dos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 e, consequencialmente, das demais normas contidas no mesmo artigo. Da análise da fundamentação do pedido resulta que as normas questionadas pelo requerente são as que fixam “as regras de cálculo das pensões de sobrevivência a atribuir a partir de 1 de janeiro de 2014, bem como as regras de recálculo ou redução das pensões de sobrevivência já atribuídas”, que abrangem as pensões de sobrevivência a cargo tanto da Caixa Geral de Aposentações como do Centro Nacional de Pensões e que têm por destinatários aqueles que aufiram um valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000.
Do confronto do teor do artigo 117.º com os pedidos e respetivos fundamentos resulta que ao Tribunal caberá conhecer da conformidade constitucional das seguintes normas do artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro):
i) As normas que estabelecem o regime de cálculo das pensões de sobrevivência a atribuir a partir de 1 de janeiro de 2014, pela CGA e pelo CNP, aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente ou beneficiários do regime geral de segurança social que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000, ínsitas nos n.ºs 1 a 4, 7 e 15 do artigo 117.º;
ii) a norma que determina o recálculo, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014, nos termos estabelecidos para o cálculo nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 117.º, das pensões de sobrevivência em pagamento pela CGA aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000, ínsita no n.º 5 do artigo 117.º;
iii) a norma que determina a redução do valor ilíquido das pensões de sobrevivência dos cônjuges pensionistas do regime geral que percebam valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2000, em pagamento em 31 de dezembro de 2013, na percentagem resultante da proporção entre as percentagens previstas no artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro, e as aplicáveis ao cônjuge nos termos dos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 117.º, ínsita no n.º 6 do artigo 117.º;
iv) a norma que determina os termos em que são atribuídas ou recalculadas as pensões de sobrevivência de ex-cônjuge divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens e de pessoa cujo casamento com contribuinte do regime de proteção social convergente ou com beneficiário do regime geral de segurança social tenha sido declarado nulo ou anulado, ínsita no n.º 10 do artigo 117.º.
É, pois, com este objeto que deverão ser analisados os pedidos de inconstitucionalidade.
79. A proteção por morte dos beneficiários ativos ou pensionistas do regime geral de segurança social – a que corresponde o regime de pensões de sobrevivência – é definida e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de outubro, alterado por último pelo Decreto-Lei n.º 13/2013, de 25 de janeiro, que reconhece a titularidade do direito às pensões aos cônjuges, ex-cônjuges e pessoas que viviam com o beneficiário em união de facto, e ainda aos descendentes e ascendentes, de acordo com as condições especialmente estabelecidas nos artigos 11.º a 14.º desse diploma (cfr. artigos 7.º e 8.º).
Por sua vez, no regime de proteção social convergente, a pensão de sobrevivência é regulada pelo Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31 de março, com múltiplas alterações posteriores, que contempla o mesmo âmbito subjetivo de proteção, nos termos das disposições dos artigos 40.º a 44.º desse diploma. Nesse domínio interessa, no entanto, ter em atenção a implementação de mecanismos de convergência dos regimes da função com os regimes de segurança social, especialmente através do Decreto-Lei n.º 286/93, de 20 de agosto, que determina que a pensão de aposentação dos subscritores da Caixa Geral de Aposentações inscritos a partir da data de entrada em vigor do diploma (1 de setembro de 1993) seja calculada nos termos das normas legais aplicáveis ao cálculo das pensões dos beneficiários do regime geral da segurança social, e da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, que impôs, a partir de 1 de janeiro de 2006, a inscrição obrigatória de novos subscritores no regime geral da segurança social e alterou a fórmula de cálculo das pensões, que passou a ser constituída por uma parcela correspondente ao tempo de serviço prestado até 31 de dezembro de 2005 (P1) e uma parcela correspondente ao tempo de serviço posterior àquela data (P2).
As regras de determinação do montante das pensões de sobrevivência do regime de proteção social convergente passaram a ser consideradas, nos termos dessas disposições, em função de três diferentes situações: (i) pensões de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor até 31 de dezembro de 2005 ou de subscritor inscrito na CGA até 31 de agosto de 1993, falecido no ativo, que se aposentaria com base naquele regime; (ii) pensões de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor a partir de 1 de janeiro de 2006 ou de subscritor, falecido no ativo, que se aposentaria com base naquele regime legal; (iii) pensões de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente inscrito na CGA após 31 de agosto de 1993 não aposentado até 31 de dezembro de 2005.
Preliminarmente, cabe ainda referir que a pensão de sobrevivência consiste numa prestação pecuniária mensal cujo montante é igual a metade da pensão de aposentação ou reforma que o contribuinte se encontre a receber na data da sua morte ou a que teria direito se na mesma data fosse aposentado ou reformado, no caso das pensões reguladas pelo Estatuto das Pensões de Sobrevivência (artigos 27.º e 28.º), ou cujo montante corresponde a 60% ou 70%, quando atribuídas a cônjuges ou a ex-cônjuges (consoante forem um ou mais do que um), do valor da pensão de invalidez ou de velhice que o beneficiário recebia ou que lhe seria calculada à data do seu falecimento, no caso das pensões do regime geral da segurança social (artigos 24.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 322/90).
80. A análise do regime das pensões de sobrevivência, quer no âmbito do regime de proteção social convergente, quer no domínio do regime geral de segurança social, permite concluir que a pensão de sobrevivência tem por objetivo compensar os familiares da perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte do beneficiário, encontrando-se por isso a sua atribuição relacionada com o impacto económico que a morte do beneficiário teve no agregado familiar.
Assim se compreende que alguns dos titulares do direito à pensão de sobrevivência tenham de demonstrar factos de onde se presume ou resulta que a morte do beneficiário implicou a diminuição dos meios de subsistência e só têm direito à pensão quando a sua subsistência possa estar em causa. É o caso do cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens ou divorciado e da pessoa cujo casamento tenha sido declarado nulo ou anulado, dos enteados dos beneficiários falecido, dos descendentes além do 1.º grau e dos ascendentes (artigos 7.º, n.º 2, e 11.º, 13.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 322/90 e artigos 41.º, 43.º e 44.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência). Em situação equivalente encontram-se os descendentes menores e ainda os descendentes com idade igual ou superior a 18 anos que provem a inscrição e frequência em atividade escolar ou de formação profissional, relativamente aos quais se pode depreender a impossibilidade de obtenção de rendimentos por meios próprios (artigos 12.º do Decreto-Lei n.º 322/90 e 42.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência).
Já a atribuição da pensão de sobrevivência aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto não está dependente de qualquer «condição de recursos» económicos ou de «condição de rendimentos». Quer no regime geral de segurança social, quer no regime do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, os cônjuges sobrevivos e os membros sobrevivos de união de facto, para acederem à pensão de sobrevivência, não têm qualquer requisito adicional relativo à demonstração da diminuição dos meios de subsistência (artigos 7.º, n.º 1, alínea a), e 11.º a contrario, do Decreto-Lei n.º 322/90 e artigos 40.º, n.º 1, alínea a), e 41.º, n.º 1, a contrario, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência).
O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 651/2009, considerou que esta situação parece coadunar-se com a «natureza que detém, no sistema de segurança social, a pensão de sobrevivência, enquanto forma de tutela própria do sub-sistema previdencial».
Entendeu-se, então, que «o termo sobrevivência não é aqui denotativo de especiais condições de carência, que pressupusessem que a correspondente pensão só fosse atribuída naqueles casos em que se mostrasse necessária para a assistência a familiares (do beneficiário falecido) destituídos de quaisquer recursos de existência. De acordo com o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 322/90, a finalidade destas prestações sociais é apenas a de “compensar os familiares do beneficiário da perda de rendimentos de trabalho determinada pela morte deste”. A lei presume, portanto, que o beneficiário falecido contribuía, através dos proventos resultantes do seu trabalho, para a economia do seu agregado familiar; e pretende que a prestação da pensão – possibilitada pela lógica contributiva do princípio previdencial – venha a compensar a diminuição de rendimentos daqueles familiares que, sobrevivendo ao beneficiário, de algum modo dele economicamente dependiam. Por isso mesmo, entende-se normalmente que a prestação desta pensão tem natureza substitutiva da prestação de alimentos. O elenco dos familiares sobrevivos que a ela têm direito, tanto no regime geral de segurança social quanto no regime próprio do funcionalismo público, são justamente aqueles que viviam, ou que a lei presume que viviam, a cargo do trabalhador falecido: cônjuges, ex-cônjuges, descendentes, ascendentes. Em relação aos ex-cônjuges (ou a cônjuges separados judicialmente de pessoas e bens), tal como em relação aos ascendentes e descendentes maiores de 18 anos, exige a lei que se faça prova da existência de elos de dependência económica. Mas já não assim quanto ao cônjuge ou aos descendentes menores de 18 anos: nestes casos, parte-se do princípio segundo o qual a morte do beneficiário terá, para os familiares em causa, acarretado necessariamente uma perda de rendimentos que a pensão de sobrevivência visa compensar».
Neste mesmo aresto, entendeu o Tribunal que «a previsão, por lei, deste tipo de prestação social prossegue, no sub-sistema contributivo e previdencial de segurança, uma finalidade bem precisa: a de compensar aqueles familiares que vivendo, real ou presumidamente, “a cargo” do beneficiário falecido, acabam por sofrer com a sua morte acentuadas e inevitáveis perdas de rendimentos».
81. O artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 estabelece um duplo mecanismo de cálculo do montante das pensões de sobrevivência a atribuir, a partir de 1 de janeiro de 2014, pela Caixa Geral de Aposentações (CGA) e pelo Centro Nacional de Pensões (CNP), aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do regime de proteção social convergente ou beneficiários do regime geral de segurança social, e de recálculo ou redução das pensões de sobrevivência que estejam já em pagamento, em relação àqueles mesmos sujeitos, a partir dessa data (artigo 117.º, n.ºs 1 e 5).
O cálculo ou redução é efetuado com base na taxa de formação das pensões a que se refere a coluna A ou a coluna B para cada um dos níveis de rendimentos em pensões percebidas pelo titular, segundo a tabela constante do n.º 1 desse artigo. As diferentes taxas previstas em cada uma dessas colunas refletem o diverso regime de cálculo da pensão que poderá estar em causa: a coluna A aplica-se quando a pensão de aposentação que serviu de base à pensão de sobrevivência foi fixada exclusivamente segundo o regime do Estatuto da Aposentação; a coluna B aplica-se às pensões do regime geral da segurança social. Às pensões de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente cuja posição tenha sido influenciada pelas regras do Decreto-Lei n.º 286/93, de 20 de agosto, e da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro, aplica-se a coluna B ou as colunas A e B, conforme a aposentação ou reforma tenha ocorrido com base no regime geral da segurança ou no regime misto do Estatuto da Aposentação e do regime geral (cfr. supra n.º 79).
Genericamente, a taxa de formação da pensão da coluna A é aplicável por morte de beneficiários do regime de proteção social convergente (CGA) em vigor até 31 de dezembro de 2005 ou que tenha sido subscritor inscrito até 31 de agosto de 1993. A taxa de formação da pensão da coluna B é aplicável por morte de beneficiário do regime geral da segurança social ou de contribuinte da CGA inscrito após 31 de agosto de 1993 e que não tenha sido aposentado até 31 de dezembro de 2005. A pensão de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente com base no regime legal vigente a partir de 1 de janeiro de 2006, é calculada com base nos valores da coluna A para a primeira parcela da pensão de aposentação e nos valores da coluna B para a segunda da mesma pensão.
O regime é, no entanto, apenas aplicável a beneficiários que percebam “valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2.000”, considerando-se valor global mensal percebido a título de pensão o montante correspondente ao somatório do valor mensal de subvenção mensal vitalícia e subvenção de sobrevivência com todas as pensões de aposentação, reforma e equiparadas, pensões de velhice e invalidez, bem como pensões de sobrevivência, que sejam pagas, ao titular da pensão a atribuir, por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza, institucional, associativa ou empresarial e do grau de independência ou autonomia (artigo 117.º, n.ºs 1 e 7). As pensões e outras prestações não previstas no n.º 7 do artigo 117.º não relevam para determinação do valor global mensal percebido a título de pensão, nomeadamente as referidas nos n.ºs 8 e 9 do mesmo artigo.
Por outro lado, a aplicação do regime de cálculo ou redução do montante das pensões de sobrevivência depende de o cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo de união de facto ser titular de, pelo menos, uma das prestações supra referidas, excluindo pensões de sobrevivência (artigo 117.º, n.º 15). Ou seja, para que se aplique o regime do artigo 117.º, os cônjuges sobrevivos e os membros sobrevivos de união de facto têm que ser titulares de uma pensão de sobrevivência – que é objeto do novo cálculo ou redução – e de uma outra ou mais prestações de pensão de diferente natureza. Não sendo aplicável quando o interessado seja apenas titular de uma pensão de sobrevivência, ainda que em cumulação com rendimentos não provenientes de prestações de pensão, ou quando não tenha uma pensão de sobrevivência, ainda que seja titular de pensões de aposentação ou de reforma.
Acresce que da aplicação do regime previsto no artigo 117.º não pode resultar para pensionistas de sobrevivência cuja pensão a atribuir deva ser calculada segundo as novas taxas de formação um “valor global mensal a título de pensão ilíquido inferior a € 2.000” (artigo 117.º, n.º 11).
82. Interessa ainda considerar a seguinte nota.
Para determinação da taxa de formação aplicável às pensões em pagamento será necessário somar a pensão de sobrevivência, tal como tem sido processada e paga, segundo as regras do Estatuto das Pensões de Sobrevivência ou do regime geral da segurança social, a qualquer outra pensão de aposentação ou reforma que o titular detenha. É a taxa correspondente ao valor global mensal auferido a título de pensão (e, por isso, resultante do somatório dessas pensões), segundo a tabela constante do n.º 1 do artigo 117.º, que irá incidir sobre a pensão de sobrevivência para efeito de recalculo e redução.
Relativamente às pensões a atribuir haverá que proceder correspondentemente a esse duplo procedimento de cálculo. A pensão de sobrevivência será calculada segundo as regras aplicáveis nos termos gerais (e, portanto, com base em 50% e 60% ou 70%, consoante se trate do regime de proteção social convergente ou do regime geral da segurança social), e é o valor assim obtido que é somado a outra pensão de aposentação ou reforma que exista para determinar a taxa de formação que deve ser tida em consideração. A pensão de sobrevivência será fixada definitivamente em função da taxa que resultar da aplicação da nova tabela.
83. O que resulta do regime legal é o seguinte:
i) a pensão de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor até 31 de dezembro de 2005 ou de subscritor inscrito na CGA até 31 de agosto de 1993, falecido no ativo, que se aposentaria com base naquele regime legal, é calculada com base na aplicação de uma taxa de formação da pensão que varia entre 44% e 33% em função do valor global mensal a título de pensão, e não segundo a taxa de 50% prevista no Estatuto das Pensões de Sobrevivência;
ii) a pensão de sobrevivência a atribuir por morte de beneficiário do regime geral de segurança social ou de contribuinte do regime de proteção social convergente inscrito na CGA após 31 de agosto de 1993 não aposentado até 31 de dezembro de 2005, é calculada com base na aplicação de uma taxa de formação da pensão que varia entre 53% e 39%, em função do valor global mensal a título de pensão, e não segundo a taxa de 60% ou 70% aplicável no regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 322/90;
iii) a pensão de sobrevivência a atribuir por morte de contribuinte do regime de proteção social convergente aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor a partir de 1 de janeiro de 2006 ou de subscritor, falecido no ativo, que se aposentaria com base naquele regime legal, é calculada com base na aplicação de uma taxa de formação da pensão que varia entre 44% e 33% (e não com a taxa de 50%), ao montante da 1.ª parcela da pensão de aposentação ou reforma e com base na aplicação de uma taxa de formação da pensão que varia entre 53% e 39% ao montante da 2.ª parcela da mesma pensão (e não com a taxa de 60% ou 70%).
O mesmo critério torna-se aplicável às pensões de sobrevivência em pagamento por força do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 117.º
Por outro lado, o efeito da redução no rendimento mensal do titular da pensão de sobrevivência dependerá da proporção que a pensão de sobrevivência representa no seu rendimento global, uma vez que o cálculo ou recalculo incide sobre a pensão de sobrevivência e não sobre o “valor mensal global das prestações percebidas pelo titular”, considerado para a determinação da taxa de formação da pensão aplicável, ou sobre o rendimento mensal do titular da pensão. O que significa que quanto maior for o peso da pensão de sobrevivência no valor mensal global das prestações percebidas pelo titular maior será o impacto da “redução” operada pelo artigo 117.º
84. O proponente da norma refere-se ao novo regime de cálculo, recálculo e redução do montante das pensões de sobrevivência previsto no artigo 117.º da Lei nº 83-C/2013, como correspondendo à introdução de uma “condição de recursos nas pensões de sobrevivência”, explicitando, a esse propósito, no Relatório que acompanhou a proposta desse diploma, o seguinte (pág. 59):
Para efeitos de atribuição de pensões de sobrevivência, considera-se o valor mensal global das pensões que corresponde ao somatório do valor mensal de todas as pensões de aposentação, reforma e sobrevivência que sejam pagas ao titular da pensão por quaisquer entidades públicas, independentemente da respetiva natureza, institucional, associativa ou empresarial, do seu âmbito territorial, nacional, regional ou municipal, e do grau de independência ou autonomia, incluindo entidades reguladoras, de supervisão ou controlo e caixas de previdência de ordens profissionais, diretamente ou por intermédio de terceiros, designadamente companhias de seguros e entidades gestoras de fundos de pensões.
Neste contexto, as pensões de sobrevivência pagas pela Caixa Geral de Aposentações e pelo Centro Nacional de Pensões aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto de contribuintes do Regime de Proteção Social Convergente (CGA) ou de beneficiários do RGSS são reduzidas, a partir de 1 de janeiro de 2014, em função do valor global mensal global das pensões (…).
[…]
O efeito desta medida é estimado em 100 milhões de euro.
Por outro lado, as pensões de sobrevivência surgem incorporadas, a par das pensões de aposentação e reforma, no conjunto de medidas sobre o sistema de pensões, a que no Relatório sobre do OE 2014 se faz alusão nos seguintes termos:
Nos últimos 15 anos, Portugal assistiu a um forte crescimento das transferências sociais realizadas através de regimes contributivos e não contributivos (prestações sociais que não em espécie). O peso desta rubrica no PIB praticamente duplicou, passando de 10,8% em 1999 para 19,4% em 2013. A este desenvolvimento esteve associado não só um alargamento do universo de beneficiários, por exemplo por razões demográficas, como o aumento do número de prestações sociais.
O aumento da proteção social foi uma das faces mais visíveis do desenvolvimento do Estado Social, tendência generalizada na maioria dos países europeus desde os anos 60. No entanto, em Portugal esse desenvolvimento foi mais tardio e o crescimento das prestações sociais teve uma expressão acentuada entre 1999 e 2013. (…) Portugal é hoje o terceiro país da União Europeia que mais gasta, em percentagem do PIB, nesta rubrica de despesa, superado apenas por Itália e França.
[…]
Mais de 75% da despesa com estas prestações são despesas com pensões de velhice, doença ou sobrevivência, seguido de 9% de prestações associadas a situações de desemprego. Nas últimas duas décadas, o crescimento da despesa em pensões tem-se intensificado, decorrente não só do envelhecimento da população mas também da maturidade do próprio sistema de pensões públicas, com os novos pensionistas a receberem pensões superiores correspondentes a carreiras contributivas mais longas e até completas. Em 2013, a despesa em pensões representa cerca de 30% da despesa pública. O sistema de pensões é, por isso, uma questão central de debate sobre o modelo de prestações sociais que o Estado tem, ou não, capacidade para conceder, tendo em conta que não se perspetiva que a evolução da receita contributiva acompanhe a tendência pelo lado da despesa. Este é um ponto fundamental a considerar quando está em causa a sustentabilidade não só dos sistemas de segurança social como das próprias finanças públicas portuguesas.
De acordo com as projeções divulgadas em 2012 pelo grupo de trabalho da Comissão Europeia que acompanha as matérias relacionadas com o impacto do envelhecimento da população na despesa pública, em particular em pensões, estima-se que, no período 2010-2060, Portugal será um dos países onde o risco do aumento do peso da despesa com pensões ameaçar a sustentabilidade do sistema será menor (Gráfico II.3.12).
[…]
Este é um reflexo das medidas sobre os sistemas de pensões introduzidas anteriormente, como é o caso da reforma de 2007 que introduziu, entre outras medidas, o fator de sustentabilidade (igual à razão entre a esperança de vida aos 65 anos em 2006 e no ano anterior ao da passagem à reforma). A lógica deste fator foi a de que cada geração de novos reformados/aposentados receba benefícios ajustados para refletir o aumento do número de anos em que se espera receber benefícios, aliviando parcialmente os trabalhadores mais jovens de pagar impostos mais elevados para financiar aumentos de longevidade. Contudo, este ajustamento só é aplicável aos que se reformaram ou aposentaram a partir de 2007. Em paralelo, as regras de cálculo para as pensões atribuídas pela CGA passaram a considerar uma segunda parcela que segue as regras do regime geral da Segurança Social, mas apenas para a proporção de descontos nos anos subsequentes a 2005. Assim, eliminou-se parcialmente, e apenas para o futuro, diferenças significativas e temporalmente desalinhadas, entre os dois regimes, no tempo de descontos, na idade e na remuneração de referência ao apuramento do valor da pensão.
No entanto, estas medidas dirigiram-se ao problema da sustentabilidade do sistema de pensões no longo prazo, não resolvendo o problema financeiro de curto e médio prazo. É de notar ainda que estas projeções tiveram por ano base 2010, quando as projeções demográficas (essencialmente por via da maior imigração líquida) e de crescimento económico eram mais favoráveis, com repercussões na evolução do peso da despesa em pensões no PIB. Mas já em 2010, Portugal era o quinto país da União Europeia que maior despesa tinha com o sistema de pensões (Gráfico II.3.13). Desde 2010, a despesa em pensões continua a aumentar, atingindo quase 15% do PIB em 2013, apesar do congelamento das pensões exceto as de mais baixos valores, e da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (Gráfico II.3.14).
[…]
A despesa com pensões é, assim, de uma dimensão de tal ordem, tanto a nível nacional como comparando com a realidade internacional, que são exigidas respostas de curto prazo de forma a garantir a compatibilização do sistema de pensões com a sustentabilidade das finanças públicas.
O sistema de pensões português não é de capitalização mas sim de repartição, o que significa que são os atuais empregados que financiam as pensões dos beneficiários. Uma opção por não reduzir o valor das pensões implica sobrecarregar a geração atual de trabalhadores com mais impostos ou com mais contribuições.
Assim, foi opção do Governo repartir os custos deste ajustamento pela geração de pensionistas e de trabalhadores, segundo princípios de equidade intergeracional, de forma a poder corrigir distorções específicas ou situações de desigualdade que ainda existem no regime de pensões.
O novo regime de cálculo e redução de pensões de sobrevivência é encarado, neste contexto, como uma medida de redução da despesa que tem em vista não apenas cumprir os compromissos internacionais de redução do défice orçamental e minimizar os custos a suportar pela economia, mas também criar as condições de sustentabilidade futura das finanças públicas e do sistema de pensões (Relatório, pág. 44).
85. Sublinhe-se que o estabelecimento de uma «condição de recursos económicos”, entendida como uma exigência relacionada com o rendimento disponível das pessoas que pretendam aceder a determinada prestação social, está de algum modo coberta pelo princípio da diferenciação positiva, previsto no artigo 10.º da Lei de Bases do Sistema de Segurança Social, que permite a flexibilização e modulação das prestações, em função, entre outros fatores, dos rendimentos. E não constitui uma inovação no sistema jurídico. O reconhecimento e manutenção do direito a algumas prestações dos subsistemas de proteção familiar e de solidariedade dependem da verificação de condições de recursos, como é o caso das prestações por encargos familiares, rendimento social de inserção, subsídio social de desemprego e subsídios sociais no âmbito da parentalidade.
Neste âmbito e relativamente a este tipo de prestações, o Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, alterado pela Lei n.º 15/2011, de 3 de maio, e pelos Decretos-Leis n.ºs 113/2011, de 29 de novembro, e 133/2012, de 27 de junho, estabelece as regras para a determinação dos rendimentos, composição do agregado familiar e capitação dos rendimentos do agregado familiar para a verificação das condições de recursos a ter em conta no reconhecimento e manutenção do direito (n.ºs 1 e 2 do artigo 1.º), caracterizando a condição de recursos como correspondendo “ao limite de rendimentos e de valor dos bens de quem pretende obter a prestação de segurança social ou apoio social, bem como do seu agregado familiar, até ao qual a lei condiciona a possibilidade da sua atribuição” (artigo 2.º, n.º 1).
Para esse efeito, são considerados, entre outros, os rendimentos de trabalho dependente, rendimentos empresariais e profissionais, rendimentos de capitais, rendimentos prediais, pensões e prestações sociais (artigo 3.º, n.º 1), sendo que o direito às prestações e aos apoios sociais fica dependente ainda de o valor do património mobiliário do requerente e do seu agregado familiar, à data do requerimento ou do pedido de apoio social, não ser superior a 240 vezes o valor do indexante dos apoios sociais (IAS) (artigo 2.º, n.º 4).
Por outro lado, como se deixou já esclarecido, a «condição de recursos» tem já aplicação no quadro da atribuição das pensões de sobrevivência relativamente a titulares que não sejam os cônjuges e membros de união de facto, cujo direito depende da demonstração de uma situação de «dependência económica» em relação ao beneficiário falecido (cfr. supra n.º 80).
86. A inovação resultante do artigo 117.º reside na introdução de uma «condição de recursos» nas pensões de sobrevivência dos cônjuges sobrevivos e membros sobrevivos de união de facto - titulares até aqui dispensados da demonstração do requisito de dependência económica do beneficiário falecido - e na sua reconfiguração como uma exclusiva medida de redução de despesa pela qual se pretende, não já instituir ou limitar as condições de acesso à atribuição da pensão, mas antes reduzir os montantes das pensões a atribuir ou em pagamento, tomando como referência não a disponibilidade geral de obtenção de rendimentos ou o valor dos bens patrimoniais do titular, mas o valor global mensal auferido a título de pensão, abrangendo outras pensões de aposentação ou reforma.
Essa solução afasta-se do regime aplicável às subvenções mensais vitalícias atribuídas a ex-titulares de cargos políticos e às respetivas subvenções de sobrevivência, em pagamento e a atribuir, a que se refere o artigo 77.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014. Neste caso, o valor das subvenções mensais vitalícias fica dependente de condição de recursos, nos termos do regime de acesso a prestações sociais não contributivas previsto no Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, com as especificidades previstas naquele artigo (n.º 1).
Em função do valor do rendimento mensal médio do beneficiário e do seu agregado familiar no ano imediatamente anterior àquele a que respeita a subvenção, esta prestação, com efeitos a partir do dia 1 de janeiro de cada ano (i) é suspensa, se o beneficiário tiver um rendimento mensal médio, excluindo a subvenção, superior a € 2.000 e (ii) fica limitada à diferença entre o valor de referência de € 2.000 e o rendimento mensal médio, excluindo a subvenção, nas restantes situações (n.º 2).
Contrariamente, a norma do artigo 117.º consigna a redução das pensões de sobrevivência, por efeito do cálculo ou recalculo da pensão a atribuir ou em pagamento, tendo em conta não todos os rendimentos do titular, mas apenas os rendimentos resultantes da cumulação com outras pensões de aposentação ou reforma.
87. Uma outra questão que se coloca prende-se com a vigência temporal da norma.
O n.º 1 do artigo 117.º determina que o novo regime de cálculo do montante das pensões de sobrevivência se aplica às pensões de sobrevivência “a atribuir a partir de 1 de janeiro de 2014” não determinando a data da cessação da sua vigência. Por seu turno, o n.º 5 estabelece que as pensões de sobrevivência em pagamento pela CGA “são recalculadas, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014” e o n.º 6 que o valor ilíquido das pensões de sobrevivência dos cônjuges pensionistas do regime geral de segurança social “em pagamento em 31 de dezembro de 2013 (…) é reduzido”.
Se estivermos perante medidas de caráter orçamental, estas, por força da regra do n.º 1 do artigo 106.º da Constituição, gozam de vigência anual, não sendo necessário determinar expressamente o termo final da sua vigência.
Tudo indica, no entanto, que as normas impugnadas visam instituir, com caráter de permanência, um novo regime jurídico de determinação do montante das prestações, mediante a alteração das taxas de formação da pensão, e que se destina a vigorar para o futuro. De facto, as normas impugnadas, ainda que se enquadrem no conjunto de medidas de redução de despesa, não se limitam, à semelhança do que sucede com a Contribuição Extraordinária de Solidariedade, a determinar para o ano de 2014 uma redução das pensões num valor percentual a partir de um certo montante, antes consagram uma reconfiguração normativa da taxa de formação da pensão (n.º 1) de modo a influenciar as regras de cálculo do montante da pensão a atribuir (n.ºs 2 a 4), e o recalculo e a consequente redução das pensões em pagamento (n.ºs 5 e 6). O único limite é que, por efeito do próprio regime legal, as novas taxas de formação apenas se aplicam a beneficiários que recebam pensões no valor global mensal igual ou superior a € 2000 (n.º 1).
Não estamos perante uma medida com eficácia temporal restrita, predefinida, concebida para ocorrer a uma situação excecional e transitória de emergência económica, e que deva apenas vigorar no corrente no ano orçamental ou que possa ser renovada, com esse mesmo objetivo, nos anos orçamentais subsequentes. Mas antes perante uma medida estrutural que, como se depreende também do Relatório do OE para 2014 (pág. 44), se destina a criar condições de sustentabilidade futura do sistema de pensões.
Pode afirmar-se, tal como se considerou no acórdão n.º 396/2011 a propósito da redução dos subsídios equiparados a ajudas de custo dos magistrados judiciais e do Ministério Público operada pela Lei do Orçamento de Estado de 2011, que a «correlação com a lei do orçamento é apenas genética. Uma vez editado, este regime desprende-se do seu local de nascimento, ganha vida própria, sobrevive por si, sem dependência funcional da lei que operou essa inserção», o que significará que basta a inércia do legislador para que os efeitos das normas impugnadas perdurem.
Assim, o artigo 117.º, na medida em que regula matéria alheia à função específica e mais estrita do orçamento, enquanto instrumento de programação anual económico-financeira da atividade do Estado, e se projeta para fora da execução do Orçamento do Estado, não têm caráter meramente orçamental, e não lhe pode ser atribuída apenas vigência anual.
Questões de constitucionalidade - Direito à segurança social e direito à pensão
88. Os requerentes do Processo n.º 14/2014 defendem que as normas em causa consubstanciam uma redução retrospetiva de pensões de sobrevivência já em pagamento, pelo que afetam direitos consolidados na esfera patrimonial dos seus titulares, o que constitui uma afetação gravosa e inédita do direito à pensão protegido constitucionalmente e do direito à segurança social.
Também os requerentes do Processo n.º 47/2014 alegam que a redução do valor de prestações atribuídas no âmbito de sistemas contributivos, como é o caso das pensões de sobrevivência atribuídas no âmbito do sistema de proteção social dos trabalhadores da administração pública, seja qual for o seu valor, corresponde a uma violação da relação jurídica de segurança social estabelecida entre o Estado e o cidadão beneficiário.
Coloca-se, nestes termos, a questão de saber se a redução de pensões de sobrevivência por efeito da aplicação de novas taxas de formação é suscetível de afetar o direito à pensão como manifestação do direito à segurança social constitucionalmente garantido.
A este propósito a jurisprudência constitucional portuguesa tem entendido que os requisitos exigidos para se adquirir o direito à pensão, bem como as regras de cálculo ou a quantia efetiva a receber, ainda que cobertos pelo princípio da proteção da confiança, poderão ceder, dentro de um limitado condicionalismo, perante o interesse público justificativo da revisibilidade das leis.
Esse mesmo ponto de vista foi reafirmado no acórdão n.º 187/13 em relação à norma da Lei do Orçamento do Estado de 2103 que suspendeu parcialmente o pagamento do subsídio de férias de aposentados e reformados. Aí se ponderou que “o reconhecimento do direito à pensão e a tutela específica de que ele goza não afastam, à partida, a possibilidade de redução do montante concreto da pensão. O que está constitucionalmente garantido é o direito à pensão, não o direito a um certo montante, a título de pensão. Este resulta da aplicação de critérios legalmente estabelecidos, mas de valor infraconstitucional”.
E esta asserção é válida quando estejam em causa direitos a constituir cobertos por expectativas, eventualmente tuteladas do ponto de vista jurídico, dos futuros pensionistas – situação versada no mencionado acórdão n.º 3/2010 -, como quando se trate direitos já constituídos, isto é, de posições jurídicas de cidadãos que adquiriram definitivamente o estatuto de pensionistas, com um conteúdo já perfeitamente definido pelas regras legais em vigor, no momento relevante para o seu cálculo – questão que estava especialmente em foco no acórdão n.º 187/13. Visto que o que está essencialmente em causa, em qualquer dos casos, é a existência de um interesse público relevante – a necessidade de garantir a sustentabilidade económico-financeira do Estado e do sistema de pensões –, que possa justificar o reconhecimento de uma ampla liberdade de conformação por parte do legislador.
Foi ainda esta linha de entendimento que o Tribunal adotou no acórdão n.º 862/13, quando apreciou um diploma da Assembleia da República que, em vista à convergência entre pensões do sistema geral de segurança social e da proteção social dos trabalhadores da Administração Pública, determinava para os atuais beneficiários a redução e recalculo do montante de pensões de aposentação da CGA e de pensões de sobrevivência fixadas nos termos do Estatuto das Pensões de Sobrevivência.
Também nesse caso, o Tribunal considerou que a “Constituição não fixa, com caráter de regra suscetível de aplicação direta e imediata, o sistema de pensões e demais prestações do sistema de segurança social, assim como os critérios da sua concessão e valor pecuniário, cabendo ao legislador ordinário, em função das disponibilidades financeiras e das margens de avaliação e opções políticas decorrentes do princípio democrático, modelar especificamente esses elementos de conteúdo das pensões”.
O legislador – acrescenta-se ainda – “possui margem de manobra para delinear o conteúdo concreto ou final do direito à pensão, respeitados os limites constitucionais pertinentes. Assim, afirmar o reconhecimento, autónoma e imediatamente decorrente do texto constitucional, do direito à pensão, não significa que se possa afirmar o direito a uma determinada pensão. Não pode por isso falar-se de uma absoluta intangibilidade do direito à pensão, mas sim que o referido direito [quando adquire um conteúdo preciso através da legislação ordinária], passa a beneficiar da proteção específica correspondente, nomeadamente dos princípios estruturantes do Estado de Direito, como a proteção da confiança ou da proporcionalidade, apenas podendo ser suprimidos ou diminuídos com observância desses mesmos princípios”.
Assim, o legislador não está proibido de alterar a forma como materializa o direito à pensão, podendo alterar ou até mesmo reduzir o seu montante, tendo em consideração a evolução das circunstâncias económicas ou sociais, estando embora proibido de eliminar o instituto “pensão de reforma, aposentação, invalidez e sobrevivência” ou, ainda, o seu conteúdo essencial.
Por outro lado, todas estas considerações são transponíveis para a pensão de sobrevivência visto que se trata de uma prestação que pretende cobrir uma das eventualidades que integra o âmbito material de proteção do sistema previdencial ou do sistema de proteção social convergente, a par da pensão de aposentação ou de reforma, e que se encontra igualmente sujeita a um princípio de contributividade.
89. À luz destes critérios, não pode dizer-se que as normas questionadas violem o direito à segurança social e o direito à pensão, no seu conteúdo constitucionalmente relevante.
Por força do novo regime legal, as taxas de formação da pensão de sobrevivência diminuem, por comparação com as taxas de formação previstas no Estatuto das Pensões de Sobrevivência e no regime de proteção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social, entre 6% e 17%, para as pensões de sobrevivência calculadas de acordo com os valores da coluna A da tabela do n.º 1 do artigo 117.º, e entre 7% e 21 %, para as pensões de sobrevivência calculadas de acordo com os valores da coluna B da mesma tabela.
Por outro lado, a redução da pensão apenas opera quando o titular aufira um valor cumulado, a título de pensões, igual ou superior a € 2000.
Nestes termos, as alterações legislativas em questão estão muito longe de traduzir a supressão da proteção mínima aos cônjuges sobrevivos, membros sobrevivos de união de facto e ex-cônjuges, que, por força da morte do beneficiário, viram diminuída a sua capacidade económica, pelo que o que interessa essencialmente verificar é se os termos em que a redução é efetivada se mostra conforme com os princípios da proteção da confiança, da proporcionalidade e da igualdade que vêm também convocados como parâmetros de constitucionalidade.
Violação do direito à propriedade
90. Os requerentes no Processo n.º 14/2014 alegam que, na medida em que existe uma parcela das contribuições pagas, identificada e quantificada, expressamente destinada à pensão de sobrevivência, está também em causa uma eventual restrição ilegítima de um direito análogo a um direito, liberdade e garantia, pois, através das presentes medidas de “reconfiguração”, o Estado apropria-se da contrapartida para a qual, e em nome da qual, recolheu especificas verbas, desviando-as – podendo-o fazer na totalidade – da finalidade anunciada aos que a suportaram, em regra ao longo de uma vida. Há, por isso, uma restrição desproporcionada do direito à propriedade que se traduz numa violação do artigo 62.º
O Tribunal Constitucional, em termos que são plenamente transponíveis para o caso em apreço, deu já resposta a esta questão no acórdão n.º 187/13, a propósito da norma da Lei do Orçamento de Estado para 2013 que suspendeu parcialmente o pagamento do subsídio de férias a aposentados e reformados.
Afirmou-se, com base em elementos de direito comparado que foram então analisados, o seguinte:
[…] Por um lado, doutrina e jurisprudência têm procurado fundar a tutela dos pensionistas no direito de propriedade nas situações em que os catálogos de direitos fundamentais que definem o parâmetro de validade das medidas legislativas e/ou administrativas passíveis de pôr em causa os direitos adquiridos dos pensionistas não contêm disposições relativas a direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente, ao direito à segurança social. Por outro lado, os critérios doutrinais e jurisprudenciais avançados para delimitar as consequências da tutela das prestações sociais – incluindo as pensões – em face do direito fundamental à propriedade privada acabam por reconduzir-se, de forma mais ou menos direta, à avaliação da conformidade das medidas passíveis de afetar as posições jurídicas em causa com os princípios da proteção da confiança e, acima de tudo, da proporcionalidade, nomeadamente na sua vertente de proibição do excesso.
63. No quadro constitucional português, e ainda que se admita a existência de uma dimensão proprietária no direito dos pensionistas, a sua proteção no específico âmbito de tutela do artigo 62.º é duvidosa, tendo em conta que existe uma norma dedicada ao direito à segurança social, aí se incluindo o direito à pensão – artigo 63.º (recusando essa possibilidade, Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pág. 963, com fundamento em que isso conduziria a uma alteração do conceito constitucional de propriedade). Acresce que não existe, no nosso sistema de segurança social, uma relação direta entre a pensão auferida pelo beneficiário e o montante das quotizações que tenha deduzido durante a sua vida ativa (embora haja uma relação sinalagmática entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações – artigo 54º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). Isso porque o sistema previdencial não assenta num sistema de capitalização individual, mas num sistema de repartição, pelo qual os atuais pensionistas auferem pensões que são financiadas pelas quotizações dos trabalhadores no ativo e pelas contribuições das respetivas entidades empregadoras (artigo 56º da mesma Lei), de tal modo que não pode considerar-se que as pensões de reforma atualmente em pagamento correspondam ao retorno das próprias contribuições que o beneficiário tenha efetuado no passado. Regime que se torna extensivo à proteção social da função pública por via da convergência com o sistema de segurança social, que foi já implementado, na sequência do disposto no artigo 104º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 117/2006, de 20 de junho.
A obtenção de mais forte tutela a partir do direito de propriedade, como direito ao montante da pensão fixado, encontraria fundamento se pudesse ser estabelecida a equiparação plena dos efeitos ablatórios da suspensão do pagamento de parte da pensão à expropriação por utilidade pública. Pois então estaríamos indiscutivelmente situados no núcleo essencial do que é reconhecidamente uma dimensão do direito de propriedade de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Mas essa equiparação não tem fundamento. Reduções parciais do quantitativo de uma prestação social não podem ser consideradas uma expropriação parcial, por dois motivos essenciais. Não se trata, em primeiro lugar, da subtração, através de um ato jurídico, de uma posição jurídica concreta, mas da determinação, em termos gerais e abstratos, do conteúdo de toda uma categoria de direitos. Não pode esquecer-se, em segundo lugar, que estamos perante uma posição com uma forte componente social, tanto do ponto de vista genético como funcional, correspondente à participação num fundo comum de solidariedade, organizado pelo Estado, a partir de contribuições de todos os trabalhadores e das entidades empregadoras, e parcialmente financiado por transferências de verbas do orçamento geral do Estado. O que, inequivocamente afasta esta posição das que têm uma exclusiva fonte pessoal, da esfera própria do titular.
[…]»
Desta jurisprudência decorre que a aplicação do novo regime de cálculo com a consequente redução do montante das pensões de sobrevivência apenas poderia colocar a questão da violação do direito à propriedade se se reconhecesse a existência de «um estrito princípio de correspetividade no âmbito da relação jurídica de segurança social, de modo a que existisse efetiva equivalência entre o montante das contribuições e o valor das prestações».
A análise do regime legal conduz, no entanto, «a concluir que o cálculo do montante da pensão não corresponde à aplicação de um princípio de correspetividade que pudesse resultar da capitalização individual das contribuições, mas radica antes num critério de repartição que assenta num princípio de solidariedade, princípio este que aponta para a responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do sistema e se concretiza, num dos seus vetores, pela transferência de recursos entre cidadãos – cfr. artigo 8º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), da Lei n.º 4/2007» (neste sentido, JOÃO LOUREIRO, Adeus ao Estado social? O insustentável peso do não-ter, BFD 83 (2007), págs. 168-169).
Para além de que, contrariamente ao que vem alegado, o regime de cálculo, recalculo e redução das pensões de sobrevivência, instituído pelo artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, não determina em nenhum caso a ablação total da pensão de sobrevivência.
Rejeitada que seja a inclusão desta medida no âmbito de proteção do n.º 2 do artigo 62.º da Constituição, uma pronúncia definitiva sobre a questão de constitucionalidade fica sempre dependente do resultado da aplicação dos parâmetros de aferição que resultam dos princípios constitucionais da proteção da confiança, da proporcionalidade e da igualdade, que servem também de fundamento ao pedido.
Violação do princípio da proteção da confiança
91. São conhecidos, e foram já aqui recordados, os critérios a que o Tribunal Constitucional dá relevância para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança».
Como se deixou exposto, o artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 estabelece, mediante a aplicação de novas taxas de formação da pensão, um novo regime de cálculo das pensões de sobrevivência a atribuir e de recalculo e redução das pensões de sobrevivência em pagamento, e, desse modo, atinge direitos adquiridos, isto é, direitos que se encontram já reconhecidos ou podem sê-lo por se encontrarem reunidos todos os requisitos legais necessários de atribuição da pensão, e direitos em formação, que correspondem aos períodos contributivos e valores de remunerações registadas em nome do beneficiário, quando ainda não tenha ocorrido o facto determinante da concessão da pensão.
E não pode deixar de reconhecer-se que os destinatários das normas que são titulares de um direito à pensão já constituído e consolidado na sua esfera jurídica têm expetativas legítimas de receberem mensalmente o montante da pensão calculado nos termos do regime vigente à data da atribuição do direito.
No plano normativo, o legislador tem também atuado de forma capaz de gerar expetativas de continuidade quanto à manutenção da ordem jurídica, não apenas porque tem proclamado nas leis de bases do sistema de segurança social um princípio de salvaguarda de direitos adquiridos, quer quanto aos prazos de garantia, quer quanto aos quantitativos de pensões que resultem remunerações registadas na vigência de leis anteriores (cfr., por último, o artigo 100.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro), mas também porque sempre que introduziu alterações legislativas com reflexo na determinação do montante da pensão, como sucedeu recentemente com a Lei n.º 133/2012, de 27 de junho, limitou a respetiva produção de efeitos a situações decorrentes de óbitos de beneficiários que ocorram após a data da entrada em vigor da lei (artigo 16.º, n.ºs 1 e 3).
E poderá dizer-se que os destinatários das normas não dispõem de mecanismos de autotutela e de adaptação da sua própria conduta às novas circunstâncias, visto que o âmbito de aplicação do artigo 117.º apenas abrange os cônjuges sobrevivos e os membros sobrevivos de união de facto que cumulem a pensão de sobrevivência com pensões de aposentação, reforma, velhice ou invalidez, e, portanto, apenas aquele conjunto de pessoas que, sendo beneficiárias de uma pensão de sobrevivência, cessaram também já a sua vida ativa e estão normalmente impossibilitados de obter, por outros meios, fontes de rendimentos complementares, encontrando-se em situação equivalente a quem seja unicamente titular de algum destes outros tipos de pensões.
De todo modo, no caso das pensões de sobrevivência, o valor jurídico da confiança tem um menor peso comparativamente com medidas legislativas que afetem o montante das pensões que sejam diretamente substitutivas de rendimentos do trabalho, como é o caso das pensões de aposentação ou de reforma. Isso porque a atribuição da pensão de sobrevivência não é necessariamente vitalícia e pode ser extinta por qualquer das vicissitudes a que se referem os artigos 47.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência e 41.º do Decreto-Lei n.º 322/90, e não confere a garantia da manutenção do seu montante, na medida em que a individualização das pensões, através da repartição por entre os titulares do direito, pode ser objeto de novo cálculo ou de nova repartição dos montantes por efeito da verificação de uma causa de extinção do direito à pensão ou do aparecimento de um novo titular (artigos 34.º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência e 28.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 322/90).
A relativização das expectativas é ainda mais evidente no que se refere aos direitos em formação, não só porque os destinatários das normas ainda não viram o seu direito à pensão de sobrevivência reconhecido, muito menos o direito a um determinado montante da pensão, mas também porque a própria atribuição da pensão depende de um facto incerto quanto ao an e ao quando, na medida em que está desde logo condicionado pela sobrevivência do cônjuge ou unido de facto ao beneficiário do regime de proteção social convergente ou do regime geral de segurança social, cuja obrigação contributiva está na base da relação jurídica prestacional.
Para além de que, como necessária decorrência da revisibilidade das leis, os direitos em formação não se encontram protegidos com o mesmo grau de intensidade dos direitos adquiridos em relação a alterações legislativas que envolvam a modificação para futuro do regime de determinação do montante da pensão.
92. Por outro lado, face a todo o condicionalismo que rodeou a implementação do novo regime de cálculo e redução das pensões de sobrevivência – e, em especial, a situação de emergência económica e financeira, que determinou já uma diminuição conjuntural das pensões, incluindo as atribuídas no âmbito do sistema complementar, não só as expectativas de estabilidade na ordem jurídica surgem agora mais atenuadas, como são sobretudo atendíveis relevantes razões de interesse público que justificam, em ponderação, uma excecional e transitória descontinuidade do comportamento estadual.
Como se fez já notar, segundo o proponente da norma, a introdução de uma condição de recursos nas pensões de sobrevivência inscreve-se no âmbito mais geral da concretização da estratégia de consolidação orçamental e é justificada mais concretamente como uma medida relativa ao sistema de pensões, tendo em vista a sustentabilidade do sistema de segurança social e a sustentabilidade do sistema de pensões, mas também a aplicação de um princípio de equidade intergeracional.
Para além de outras medidas já anteriormente adotadas (introdução do fator de sustentabilidade e de mecanismos de convergência de pensões) que visam solucionar a sustentabilidade do sistema no longo prazo, pretende-se agora dar resposta no médio e curto prazo ao problema financeiro colocado pelo acentuado crescimento da despesa com as prestações sociais, especialmente as relacionadas com a atribuição de pensões (aqui se incluindo as pensões de velhice, doença ou sobrevivência), de modo a garantir a compatibilização do sistema de pensões com a própria sustentabilidade das finanças públicas.
Paralelamente, tendo em conta que o sistema de pensões assenta num princípio de repartição e não de capitalização, com a consequência de serem os atuais empregados a financiar com as suas quotizações as pensões em pagamento, tornou-se necessário, na perspetiva do legislador, repartir os custos pela geração de pensionistas e de trabalhadores, dando concretização prática a um princípio de equidade intergeracional (Relatório do OE de 2014, págs. 55-57).
Do exposto resulta que os interesses públicos a salvaguardar com a medida, não só se encontram perfeitamente identificados pelo legislador, como se revestem de grande relevo, por efeito do incremento da despesa com prestações sociais associado ao alargamento do universo do beneficiários, por razões demográficas e aumento do número de prestações, e à maior maturidade das pensões, por envelhecimento da população e maior longevidade das carreiras contributivas.
93. Os requerentes nos Processos n.º 14/2014 e 47/2014 alegam ainda que as normas do artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 contêm “soluções legislativas manifestamente assistemáticas e desenquadradas de qualquer esforço global de sustentabilidade do sistema público de proteção social e de repartição intrageracional e intergeracional” e que a solução legislativa se encontra “desenquadrada de qualquer lógica de sustentabilidade global do sistema de segurança social” e incide sobre uma “categoria isolada de pensionistas”, tornando-se-lhes aplicável o juízo de inconstitucionalidade formulado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013.
Não parece ser esse o caso.
Esse aresto apreciou a inconstitucionalidade de disposições de um diploma da Assembleia da República que, visando a convergência de pensões dos sistemas da Caixa Geral de Aposentações e do regime geral da segurança social, previam a redução de 10% do valor das pensões de aposentação e de sobrevivência que foram fixadas de acordo com o Estatuto da Aposentação e o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, e o recalculo das pensões de aposentação e sobrevivência mediante a aplicação de uma taxa de formação de 80% ao valor da parcela um (P1) das pensões fixadas com base no regime da Lei n.º 60/2005, de 29 de dezembro.
Analisando o interesse público prosseguido por essas disposições à luz do princípio da proteção da confiança, o Tribunal considerou que a consolidação orçamental visada por essas medidas vem reportada exclusivamente a uma parte do sistema público de pensões – ao regime previdencial da CGA -, e não ao sistema público de pensões ou ao Estado social globalmente considerado, além de que a necessidade de financiamento do défice estrutural da CGA não podia ser imputado apenas aos seus atuais ou futuros beneficiários, mas resultava de uma opção político-legislativa que fechou a CGA a novas inscrições a partir de 1 de janeiro de 2005 (artigo 2.º da Lei n.º 60/2005).
Por outro lado, entendeu-se que os pensionistas de qualquer dos dois regimes se consideram titulares de um direito à pensão com igual consistência jurídica e as eventuais desigualdades ao nível da disciplina legal vindas do passado, ainda que com reflexos financeiros na atualidade, não poderiam ser corrigidas apenas com sacrifício exclusivo dos direitos constituídos de apenas um grupo de beneficiários.
E deu-se como assente que as soluções sacrificiais motivadas por razões de insustentabilidade financeira dirigidas apenas aos beneficiários de uma das componentes do sistema, são necessariamente assistémicas ou avulsas e enfermam de um desvio funcional: visam fins – evitar o aumento das transferências do Orçamento do Estado – que não se enquadram no desenho constitucional de um sistema público de pensões unificado.
Por isso se concluiu, no acórdão, que a adoção daquelas medidas concretas não revestiam um peso importante para efeitos da prossecução dos interesses públicos da sustentabilidade, do equilíbrio intergeracional e da convergência dos regimes de proteção social, já que a prossecução destes interesses, pelo seu caráter estrutural, exige medidas pensadas num contexto global dos regimes de proteção social.
Importa reconhecer que estas considerações não são transponíveis para o caso em apreço.
Desde logo porque o diploma não visa a correção de eventuais desigualdades ao nível da disciplina legal das pensões de sobrevivência dos dois regimes públicos, mas pretende introduzir, em ambos os regimes, regras comuns de cálculo das pensões a atribuir e de redução das pensões em pagamento, tendo em vista a diminuição imediata da despesa com pensões de sobrevivência.
Não está, por isso, em causa um problema de financiamento de um dos sistemas de pensões, mas de consolidação orçamental e de sustentabilidade do sistema público de pensões em contraponto com um princípio da equidade intergeracional.
O Tribunal Constitucional, no referido aresto, não exclui a possibilidade de revisão dos valores das pensões na ótica da sustentabilidade financeira e da salvaguarda da justiça do sistema, tanto no plano intrageracional como no plano intergeracional, mas considerou que essas soluções teriam de ser equacionadas de forma integrada e coerente no âmbito do sistema de proteção social considerado na sua globalidade, e não através de medidas isoladas e de caráter unilateral que afetem apenas um conjunto de beneficiários.
Essa censura não pode ser feita às normas do artigo 117.º da Lei do Orçamento de Estado para 2014.
Não há pois, nenhuma evidência, em todo este contexto, de uma infração ao princípio da proteção da confiança.
Violação do princípio da proporcionalidade
94. Admitindo que as expetativas de manutenção do montante da pensão de sobrevivência possam ter de ceder face a interesses públicos contrapostos de maior peso, resta verificar se se poderá ter como violado o princípio da proporcionalidade, em qualquer das suas vertentes de adequação, necessidade ou justa medida.
Como observa REIS NOVAIS, o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido, ou, mais rigorosamente, devem, de forma sensível, contribuir para o alcançar.
No entanto, o controlo da idoneidade ou adequação da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes. E, assim, a medida só será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão quando os seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos tomando como referência a aproximação do fim visado (Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, págs. 167-168).
No caso vertente, não pode deixar de reconhecer-se que a medida em causa, ao permitir diminuir no imediato a despesa com o pagamento de pensões de sobrevivência, pode contribuir para a salvaguarda, a médio e curto prazo, da sustentabilidade do sistema de pensões e das próprias finanças públicas e mostra-se ser apta para a prossecução dos fins que visa atingir.
Quanto a saber se para atingir esse objetivo, o meio efetivamente escolhido é o necessário ou exigível, tudo depende da representação de alternativas viáveis, de eficácia equivalente, em prazo idêntico, e de menor gravosidade para os direitos atingidos. Mas essa avaliação tem que conter-se no campo das opções primárias tomadas pelo legislador democraticamente legitimado, não podendo ir ao ponto de questionar a estratégia orçamental adotada como via para a atenuação do desequilíbrio das contas públicas. Como se afirmou no acórdão n.º 396/2011, não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade da estratégia seguida, nem entrar no debate sobre se o reequilíbrio das contas públicas se deve fazer preferencialmente pelo lado da receita ou pelo lado da despesa, mas apenas «ajuizar se as soluções impugnadas são arbitrárias, por sobrecarregarem gratuita e injustificadamente uma certa categoria de cidadãos».
Ora, no quadro de uma opção de redução da despesa pública que abranja também as prestações sociais (tendo em consideração que 75% da despesa com prestações sociais são despesas com pensões de velhice, doença e sobrevivência e a despesa em pensões é de cerca de 30 % da despesa pública), não pode afirmar-se, num critério de evidência, que a solução impugnada – visando especialmente pensões de sobrevivência - seja desnecessária ou dispensável, quando é certo que entretanto foram já implementadas medidas de redução de pensões de aposentação e de reforma, sob a forma de uma contribuição extraordinária de solidariedade, e de redução remuneratória em relação aos trabalhadores do setor público.
A questão que pode colocar-se, neste plano, é a de saber se, cumprindo-se os critérios da adequação e necessidade quanto à aplicação de um novo regime de cálculo do montante das pensões de sobrevivência, se justifica que, de entre os titulares desse direito, sejam apenas afetados os cônjuges sobrevivos e membros sobrevivos de união de facto que cumulem essa pensão com outra ou outras pensões de aposentação ou reforma. Mas essa é uma questão que, podendo ter impacto no juízo de proporcionalidade (na medida em que a extensão da medida à generalidade dos beneficiários poderia propiciar uma menor onerosidade na esfera individual), tem sobretudo a ver com a conformidade da medida com o princípio da igualdade, matéria que será objeto de apreciação num momento ulterior.
Não parece, por outro lado, que a medida possa ser considerada excessiva ou desproporcionada.
Como se deixou já exposto, o novo regime de cálculo e redução de pensões de sobrevivência implica que a taxa de formação varie entre 44% e 33%, em função valor global mensal a título de pensão, para as pensões que devam ser calculadas segundo o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, a que se aplicava a taxa de 50%, e entre 53% e 39%, em função valor global mensal a título de pensão, para as pensões do regime geral da segurança social, a se aplicava a taxa de 60% ou 70%. Essas mesmas taxas de formação são aplicáveis, correspetivamente, à 1.ª parcela e à 2.ª parcela da pensão de aposentação ou reforma de contribuintes do regime de proteção social convergente que se tenham aposentado ou reformado com base no regime legal em vigor a partir de 1 de janeiro de 2006.
Opera-se nestes termos uma diminuição das taxas de formação entre 6% e 17% ou entre 7% e 21 % por referência à pensão de aposentação ou de reforma que serve de base à determinação do montante da pensão de sobrevivência ou por referência simultânea a cada das parcelas em que se decompõe o cálculo dessa pensão quando seja aplicável o regime de convergência definido pela Lei n.º 60/2005.
O impacto desta redução no rendimento mensal do titular da pensão de sobrevivência dependerá da proporção que a pensão de sobrevivência representa no seu rendimento global, uma vez que só incide sobre a pensão de sobrevivência e não sobre o valor mensal global das prestações percebidas pelo titular. E, por outro lado, o regime só se aplica a beneficiários que aufiram em cumulação com outras pensões um montante total igual ou superior a € 2 000;
Contrariamente ao que é afirmado pelos requerentes no Processo n.º 14/2014, em nenhum caso o novo regime implica a ablação total da pensão de sobrevivência. Para além disso, o legislador utiliza uma escala regressiva de modo a evitar que possa ocorrer uma redução muito acentuada da pensão de sobrevivência nas situações em que seja mais elevado o rendimento proveniente da atribuição de outras pensões.
Tudo ponderado, é de concluir que a redução não tem uma expressão tal que possa vir a colidir, de modo intolerável e demasiado opressivo, com decisões de vida que os pensionistas tenham tomado, e não acarreta uma medida de sacrifício que possa ser tida por desproporcionada ou demasiado onerosa, em face da vantagem associada aos fins de interesse público a atingir.
Nestes termos, não pode considerar-se que as normas impugnadas importem a violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 18.º da Constituição.
Violação do princípio da igualdade
95. Em face da fundamentação deduzida nos requerimentos formulados nos Processos n.ºs 14/14 e 137/14, é também necessária uma ponderação da específica posição jurídica dos pensionistas, no que se refere ao princípio da igualdade, tomando-se como termo de referência comparativo os pensionistas de sobrevivência que sejam titulares de outros fontes de rendimento, tendo em consideração que o âmbito subjetivo da medida se encontra circunscrito àqueles que cumulem a pensão de sobrevivência com, pelo menos, uma pensão de aposentação ou reforma, com exclusão de quaisquer outras situações de cumulação de rendimentos.
Recorde-se que a atribuição de prestações pecuniárias denominadas pensões de sobrevivência tem por objetivo compensar os familiares de beneficiário (do sistema de proteção de convergência ou do regime geral de segurança social) da perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte deste, e está relacionada, desse modo, com o impacto económico que essa eventualidade tem no respetivo agregado familiar.
No entanto, alguns dos titulares do direito à pensão têm que demonstrar que a morte do beneficiário implicou a diminuição dos meios de subsistência, o que sucede – como já se explicitou - com o cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens ou divorciado e da pessoa cujo casamento tenha sido declarado nulo ou anulado, os enteados dos beneficiários falecidos, os descendentes além do 1.º grau e os ascendentes. Já no que se refere aos cônjuges, unidos de facto e descendentes menores de 18 anos presume-se que a morte do beneficiário acarreta necessariamente uma perda de rendimentos, pelo que o acesso à pensão de sobrevivência não está dependente de qualquer requisito adicional relativo à demonstração de carência.
Nestes termos, o regime legal estabelecia já uma condição de recursos em função do grau de dependência económica dos familiares em relação ao beneficiário falecido, e que só era excecionada relativamente àqueles que, pela sua específica situação pessoal, seriam presumivelmente afetados pela diminuição de rendimentos resultante da morte do beneficiário.
Neste quadro geral de referência, e em face a um especial interesse público de consolidação orçamental e de sustentabilidade do sistema de pensões, poderá compreender-se que um mecanismo equivalente, ainda que para efeito da determinação do montante da pensão, e não da delimitação do direito à pensão, se torne aplicável aos cônjuges sobrevivos e aos membros sobrevivos de união de facto. Tanto mais que também os titulares de pensões de aposentação ou de reforma foram já afetados, também com fundamento na deficitária conjuntura financeira, por medidas de redução de pensões por via da aplicação da contribuição extraordinária de solidariedade.
96. Por outro lado, contrariamente ao que vem alegado pelo requerente no Processo n.º 137/14, poderá encontrar-se algum fundamento racional e materialmente aceitável na diferenciação que é estabelecida entre os titulares de pensão de sobrevivência em cumulação com pensões de aposentação ou de reforma – que são os diretos destinatários da norma – e aqueles que cumulem essa mesma pensão com rendimentos não provenientes de prestações por invalidez ou velhice, como será o caso daqueles que, mantendo-se na vida ativa, aufiram rendimentos do trabalho, e que são isentos de qualquer afetação.
Pode admitir-se que este conjunto de normas, embora seja tido como uma condição de recursos – tal como é caracterizado no Relatório do Orçamento de Estado para 2014 – vise regular estritamente situações de cumulação de pensões – constituindo como que uma medida restritiva de cumulação de pensões – qualificação que o Governo lhe passou a atribuir na “Nota” que integra a documentação posteriormente entregue e apensa aos autos.
A delimitação do âmbito aplicativo do artigo 117.º nos termos em que é feita não deixa de suscitar alguma perplexidade, visto que quem cumule uma pensão de sobrevivência com rendimentos do trabalho, apenas ficará sujeito à redução da pensão quando cesse a atividade e passe a auferir também uma pensão de aposentação ou de reforma e se encontre, por isso, numa situação de maior vulnerabilidade e com uma maior limitação para reorientar as suas perspetivas de vida.
Constitui, no entanto, ainda um critério de diferenciação admissível, estando em causa uma medida essencialmente dirigida à sustentabilidade do sistema de pensões, que o legislador pretenda introduzir uma condição de recursos que seja aferida, não pela capacidade económica geral do pensionista, mas pelo nível de rendimentos que este aufere globalmente a título de pensões, por estarem aí em causa verbas do orçamento da segurança social e da CGA que constituem despesa pública. Ainda que se não trate da aplicação de uma típica condição de recursos, em que devam ser considerados todos os rendimentos do titular, mas de uma condição de recursos indexada apenas aos montantes percebidos por acumulação de pensões, pode detetar-se ainda nessa opção legislativa uma relação de substancialidade entre os fins prosseguidos e os meios utilizados.
Em todo o caso, a solução cabe ainda na liberdade de conformação legislativa, no ponto em que é ao legislador que pertence definir e qualificar as situações de facto ou as relações de vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou diferenciadamente. E só poderiam considerar-se violados os limites externos da discricionariedade legislativa quando a medida legislativa não tivesse adequado suporte material ou fosse destituída de uma racionalidade coerente face à estratégia de atuação que se entendeu adotar.
97. A conformidade constitucional com o princípio da igualdade levanta maiores dificuldades no âmbito da relação interna, isto é, no círculo dos destinatários das normas tal como se encontra legalmente delimitado.
Como se viu, a taxa de formação da pensão de sobrevivência para efeito do cálculo ou redução a que se refere o artigo 117.º depende do «valor global mensal a título de pensão» percebido pelos cônjuges sobrevivos e membros sobrevivos de união de facto, mas, uma vez fixada a taxa aplicável no caso concreto, o correspondente valor percentual só opera para determinar o montante da pensão de sobrevivência. Ou seja, a redução incide apenas sobre o montante da pensão de sobrevivência, embora a extensão dessa redução seja influenciada pelo valor que o titular aufere globalmente em resultado do recebimento de outras pensões de aposentação ou de reforma.
Daqui decorre que o impacto da medida no rendimento mensal do titular da pensão de sobrevivência dependerá da proporção que esta representa no seu rendimento global, uma vez que a redução só afeta a pensão de sobrevivência e não o rendimento mensal do titular da pensão. E, deste modo, valores globais de pensão perfeitamente idênticos podem sofrer reduções muito diferenciadas, pois, quanto maior for o peso da pensão de sobrevivência no valor mensal global das prestações percebidas pelo titular maior será o impacto da redução operada pelo artigo 117.º
A título exemplificativo, uma pensão de sobrevivência em pagamento pela CGA a um cônjuge sobrevivo de contribuinte do regime de proteção social convergente, cuja pensão de sobrevivência foi fixada de acordo com as regras do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, que não concorra com outros herdeiros e que perceba valor global mensal a título de pensão de € 2.600 será recalculada, de acordo com o estabelecido no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 117.º, com base na aplicação da taxa de formação da pensão de 40 % (e não de 50 %).
No entanto, se o valor global mensal a título de pensão for formado pela soma de uma pensão de aposentação de € 2.000 com uma pensão de sobrevivência de € 600, a aplicação da nova taxa de formação da pensão determina o recálculo da pensão de sobrevivência para € 480, equivalendo a uma redução na pensão de sobrevivência de € 120 e à consequente diminuição do valor total para € 2480. E na situação inversa, em que valor global mensal a título de pensão seja constituído pela soma de uma pensão de aposentação de € 600 com uma pensão de sobrevivência de € 2.000, a nova taxa de formação da pensão implica o recálculo da pensão de sobrevivência para € 1.600, correspondendo a uma redução na pensão de sobrevivência de € 400 e à diminuição do valor total para € 2.200.
No primeiro caso, a pensão de sobrevivência é reduzida em 20% e o valor global mensal a título de pensão é reduzido em 4,6%; no segundo caso, a pensão de sobrevivência também é reduzida em 20% mas o valor global mensal a título de pensão é reduzido em 15,4%;
Assim, pensionistas abrangidos pelo regime do artigo 117.º, com o mesmo valor global mensal a título de pensão e a mesma taxa de formação da pensão de sobrevivência, poderão ver a sua pensão de sobrevivência reduzida em montantes diferentes em função do peso que esta pensão tem no valor acumulado de prestações, com reflexo no cômputo global que o titular acaba por auferir.
Tendo em conta que a medida é qualificada como uma condição de recursos ou, numa outra perspetiva, como medida restritiva de acumulação de pensões, não se descortina o fundamento material para o tratamento diferenciado de posições jurídico-subjetivas que são de idêntica natureza. Tanto que se trata de uma diferenciação que não justificável à luz da ratio que o próprio regime jurídico prossegue, dado que este tem em vista limitar os montantes a pagar a título de pensão de sobrevivência em razão do cúmulo com outras prestações sociais que sejam atribuídas ao mesmo titular por invalidez ou velhice.
Neste sentido, a medida introduz diferenças de regime injustificáveis, face aos fins que a normação legal pretende prosseguir, e é constitucionalmente censurável do ponto de vista do princípio da igualdade.
98. Neste plano de análise uma questão é ainda colocada pela norma do n.º 15 do artigo 117.º
Este preceito circunscreve o âmbito de aplicação do regime previsto nesse artigo aos cônjuges sobrevivos ou membros sobrevivos de união de facto que sejam “titulares de, pelo menos, uma prestação prevista no n.º 7 excluindo pensões de sobrevivência”, o que significa que o cálculo ou redução da pensão de sobrevivência segundo o regime aí definido se torna aplicável apenas aos titulares que aufiram também outra ou outras pensões de aposentação, reforma ou equivalente, e não àqueles que apenas disponham de uma pensão de sobrevivência não cumulável com qualquer outra daquelas prestações.
De facto, a norma do n.º 7, para que remete aquele n.º 15, já antes transcrita, tem em vista definir o que se entende, para efeitos do disposto no artigo, por “valor global mensal percebido a título de pensão”, consignando que esse é o “montante correspondente ao somatório do valor mensal de subvenção mensal vitalícia e subvenção de sobrevivência com todas as pensões de aposentação, reforma e equiparadas, pensões de velhice e invalidez, bem como pensões de sobrevivência, que sejam pagas, ao titular da pensão a atribuir ou a recalcular, por quaisquer entidades públicas (…)”. Por outro lado, a lei, ao referir no n.º 15, que o regime é aplicável ao “titular de, pelo menos, uma prestação prevista no n.º 7 excluindo pensões de sobrevivência”, está precisamente a delimitar o respetivo campo de aplicação por referência à titularidade de qualquer das pensões mencionadas nesse outro preceito, com exceção da própria pensão de sobrevivência que é objeto de novo cálculo ou redução.
A ressalva contida no segmento final desse n.º 15 tem, por conseguinte, o sentido útil de excluir do campo aplicativo do regime aqueles pensionistas que detenham apenas uma pensão de sobrevivência, implicando que o novo cálculo ou redução da pensão de sobrevivência apenas opere em caso de cumulação dessa com, pelo menos, uma outra pensão de aposentação ou reforma.
Esta opção legislativa poderá encontrar justificação no interesse de operacionalizar um mecanismo de redução de despesa que seja direcionado para as situações de cumulação de rendimentos auferidos através do pagamento de pensões. Mas não pode perder-se de vista que está em causa concretamente uma medida que se insere, segundo o proponente da norma, numa estratégia de contenção de despesa pública com prestações sociais (em que têm um significativo peso as pensões de velhice e de sobrevivência) com a finalidade de contrariar a tendência desfavorável de incremento de despesa e dar resposta ao problema de financiamento relacionado com a sustentabilidade do sistema de pensões. Por isso, a solução legislativa é encarada, não apenas como uma mera medida de consolidação orçamental, mas também e especialmente como uma “medida sobre o sistema de pensões” (Relatório sobre o Orçamento de Estado para 2014, pág. 54).
O legislador concebe uma medida que se destina especificamente a reduzir pensões de sobrevivência, com base no primordial interesse público de sustentabilidade do sistema de pensões, e estabelece um limiar mínimo, em termos pecuniários, a partir do qual ela se torna aplicável. Mas depois penaliza apenas os pensionistas de sobrevivência que cumulem outra pensão e isenta aqueles que possuam apenas uma pensão de sobrevivência ainda que esta seja igual ou superior ao valor de referência que determinaria, em caso de cumulação, a incidência das novas taxas de formação.
Dentro da lógica de política legislativa que presidiu à implementação da medida, a não inclusão dos titulares de uma única pensão de sobrevivência é incongruente e não se encontra minimamente justificada. Ainda que possa admitir-se que o legislador tenha pretendido atingir apenas os titulares de pensões, excluindo do âmbito de aplicação do conjunto de normas as situações em que ocorra a cumulação de prestações sociais com rendimentos de outra fonte, mesmo que na sua globalidade excedam o limiar de € 2000, já não é aceitável que se introduza uma desigualdade de tratamento entre grupos de destinatários a quem normalmente a medida, pela sua própria natureza e finalidade, deveria ser dirigida, sem que exista um motivo justificativo do tratamento desigual.
Esta é uma situação diversa da analisada precedentemente a propósito da exclusão do âmbito aplicativo do artigo 117.º dos pensionistas de sobrevivência que obtenham um rendimento mensal global, em conjunto com rendimentos de outra fonte, igual superior a € 2000. O que está agora em causa é a desigualdade entre pensionistas com idêntica condição de recursos em função do tipo e da natureza dos rendimentos e, portanto, a desigualdade de tratamento entre pessoas que preenchem a condição de recursos através apenas do montante auferido a título de pensão.
A questão adquire maior acuidade quando é certo que, no controlo da igualdade, numa ponderação de interesses, deverá dar-se atenção não apenas à relevância do interesse público prosseguido, mas também o grau e intensidade da afetação de direitos, como indicador da gravidade da diferenciação (REIS NOVAIS, ob. cit., pág. 115).
Ora, as normas impugnadas impõem um encargo adicional, afetando as posições jurídicas já constituídas ou em formação mediante a alteração das fórmulas de cálculo das pensões, mas apenas em relação àqueles que possuam uma outra pensão de aposentação ou de reforma e que, por isso, já cessaram a sua vida ativa, deixando incólumes outros titulares de pensão de sobrevivência que aufiram apenas a esse título um montante igual ou superior a € 2000, independentemente de poderem ainda manter uma atividade profissional remunerada.
As normas revestem-se assim de uma especial onerosidade que sacrifica apenas aqueles se encontram numa situação de maior vulnerabilidade, o que torna mais evidente a ausência de uma justificação para a diferença de tratamento.
Verifica-se, pois, relativamente às normas constantes dos n.ºs 1 a 7, 10 e 15 do artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, a violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13.º da Constituição.
Limitação de efeitos quanto às normas do artigo 33.º
99. O Tribunal Constitucional, pelos acórdãos n.ºs 396/11 e 187/13 decidiu sucessivamente não declarar a inconstitucionalidade das normas dos artigos 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e 27.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, que estabeleciam para os exercícios orçamentais de 2011 e 2013, respetivamente, a redução remuneratória entre 3,5% e 10% para os trabalhadores do setor público que auferissem remunerações base superiores a €1.500.00, e reafirmou essa jurisprudência, ainda que implicitamente, no acórdão n.º 353/12, em relação à norma de idêntico teor do artigo 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro.
Entendeu-se então que o recurso a uma medida de redução de rendimentos de quem aufere por verbas públicas como meio de rapidamente diminuir o défice público, em excecionais circunstâncias económico-financeiras, apesar de se traduzir num tratamento desigual relativamente a quem aufere rendimentos provenientes do setor privado da economia, tinha justificações que a subtraíam à censura do principio da igualdade na repartição de encargos públicos, uma vez que, sendo admissível alguma diferenciação em relação a pessoas que mantêm uma relação de emprego público, a redução continha-se ainda dentro dos limites do sacrifício.
As normas do n.º 1 artigo 33.º da LOE de 2014 tem uma configuração diversa daquela que foi anteriormente objeto de um juízo de não constitucionalidade, na medida em que alarga o universo dos trabalhadores do setor público afetados pela medida de redução salarial, atingindo titulares de retribuições salariais superiores a € 675, e fixa em 2,5% e 12%, respetivamente, os limites mínimo e máximo do coeficiente de redução aplicável de forma progressiva a partir daquele valor, operando uma intensificação da medida do sacrifício.
Deste modo, a norma possui um alcance inovatório, em resultado de ter efetuado uma revisão global do regime de redução remuneratória, e corresponde, nesse sentido, a uma realidade jurídica incindível, pelo que não poderá ser objeto de limitação de efeitos relativamente ao segmento ideal de redução remuneratória para que se reconheceu existir anteriormente fundamento constitucional bastante.
Importa ter em consideração, por outro lado, que a eficácia ex tunc atribuída em geral à declaração de inconstitucionalidade, nos termos do n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, num momento em que decorreu já um amplo período de execução orçamental, implicaria, em relação aos destinatários da norma do artigo 33.º da LOE de 2014, o reembolso da totalidade das verbas que, em aplicação desse preceito, integram a redução remuneratória, incluindo os montantes que ainda se contenham dentro dos limites julgados constitucionalmente admissíveis pela jurisprudência constitucional anterior.
Nestes termos, considerando a necessidade de evitar a perda para o Estado da poupança líquida de despesa pública já obtida no presente exercício orçamental por via das reduções remuneratórias, apesar de excederem o limite do sacrifício que se entende constitucionalmente admissível em relação aos trabalhadores que auferem por verbas públicas, com base no disposto no n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, e em atenção a esse interesse público de excecional relevo, o Tribunal decide atribuir efeitos ex nunc à declaração de inconstitucionalidade das referidas normas, que, assim, se produzirão apenas a partir da data da sua decisão.
III – Decisão - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, das normas do artigo 33º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, das normas do artigo 115º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro;
c) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, das normas do artigo 117º, n.ºs 1 a 7, 10 e 15, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro;
d) Não declarar a inconstitucionalidade das normas do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro;
e) Em função do decidido na precedente alínea a), declarar prejudicada a apreciação do pedido subsidiário relativo à norma da alínea r) do n.º 9 do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
f) Determinar que a declaração da inconstitucionalidade constante da alínea só produza efeitos a partir da data da presente decisão.
Lisboa, 30 de maio de 2014 - Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à decisão da alínea d) nos termos da declaração de voto junta) - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida quanto à alínea c) nos termos da declaração junta) - Lino Rodrigues Ribeiro (Vencido parcialmente quanto à alínea a) e vencido quanto à alínea b), pelas razões constantes da declaração em anexo) - Catarina Sarmento e Castro (Vencida quanto à alínea d) da decisão (complementos de pensão); com declaração de voto; Acompanhando a decisão, e no essencial, a fundamentação das restantes alíneas (e conforme declaração, relativamente à fundamentação das alíneas a) (redução remuneratória) e c) (pensões de sobrevivência). Vencida quanto à alínea f) (efeitos) nos termos da declaração de voto junta) - João Cura Mariano (vencido quanto à alínea d) da decisão e quanto à restrição de efeitos pelas razões constantes da declaração que junto) - Maria José Rangel de Mesquita (vencida parcialmente quanto à decisão e fundamentação da alínea a), vencida quanto à decisão da alínea b) e com declaração quanto às decisões das alíneas c) e d)) - Pedro Machete (vencido quanto às alíneas a), b) e c) da decisão, conforme a declaração junta) - Ana Maria Guerra Martins (vencida quanto à alínea c) da decisão, conforme declaração em anexo)- João Pedro Caupers (vencido quanto às alíneas c), d) e f) da decisão nos termos da declaração em anexo) - Fernando Vaz Ventura (vencido quanto às alíneas c), d) e f) da decisão, nos termos da declaração de voto junta)- Maria Lúcia Amaral (vencida quanto às alíneas a), b) e c) da decisão, conforme declaração em anexo)- José da Cunha Barbosa (vencido quanto às alíneas a) e b) da decisão nos termos da declaração de voto que junto) - Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido quanto à alínea d) da decisão, nos termos da declaração anexa)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto à alínea d) da decisão com base nas seguintes considerações.
Entendi que a norma do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, ao suspender, com caráter de imperatividade, nos termos aí previstos, os complementos de pensão atribuídos por empresas do setor público através de convenções coletivas de trabalho, não viola o direito à contratação coletiva previsto no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição, visto que se trata de matéria que não integra os direitos dos trabalhadores a que se referem os subsequentes artigos 58.º e 59.º, nem se enquadra sequer no direito à segurança social coberto pelo artigo 63.º, e também não coloca, essencialmente pelas razões que foram explanadas no acórdão, um problema de proteção da confiança.
Considero, no entanto, que essa disposição viola a garantia institucional de contratação coletiva na medida em que não parece possível descontratualizar os montantes das prestações e afastar a competência privada de autoregulação para realizar objetivos de consolidação orçamental das empresas contratantes, em detrimento dos próprios interesses dos trabalhadores.
Ainda que não seja legalmente possível instituir através de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho um regime complementar contratual que se não enquadre nos regimes profissionais complementares do sistema providencial (artigo 478.º, n.º 2 do Código do Trabalho, na linha do anteriormente estabelecido pelo artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 209/92, de 2 de outubro), o mecanismo que se encontrava à disposição das entidades contratantes seria a ação de anulação das correspondentes cláusulas de convenção coletiva de trabalho, regulada nos artigos 183.º e seguintes do Código de Processo de Trabalho.
Por outro lado, ainda que se possa estabelecer a imperatividade de normas laborais em função de um interesse público relevante, e que normalmente se destina a garantir um tratamento mais favorável do trabalhador (artigo 3.º, n.º 3, do Código do Trabalho), não é esse o caso quando estamos perante uma mera norma orçamental que se limita a pôr em causa a disponibilidade das partes e a infirmar o espaço próprio da contratação coletiva (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 92/94).
Podendo dizer-se que não existe obstáculo à exclusão dos complementos de pensões da reserva de contratação coletiva, tal como se decidiu, em situação similar, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 517/98, não há, no entanto, motivo para pôr em causa a autonomia privada das partes quando o interesse geral ou de ordem pública invocado pelo legislador não releva no plano do direito laboral, caso em que é a própria garantia institucional de contratação coletiva que é afetada.
Carlos Fernandes Cadilha
DECLARAÇÃO DE VOTO
- 1.Vencida quanto à declaração de inconstitucionalidade do artigo 117.º da Lei do Orçamento de Estado (LOE) de 2014 (a.), junto também declaração de voto quanto à declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 33.º da LOE de 2014 por violação do princípio da igualdade (b.) e quanto à fixação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (c.).
- a.Quanto à declaração de inconstitucionalidade do artigo 117.º da LOE de 2014
- 2.Voto vencida quanto à declaração de inconstitucionalidade do artigo 117.º, n.os 1 a 7, 10 e 15, porque não acompanho o Acórdão quando este conclui pela violação do princípio da igualdade. Aceito que a norma em questão e a opção política tomada possam ser criticadas, mas rejeito que daí redunde a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
- 3.Devo começar por referir que concordo, de uma forma geral, com o Acórdão, relativamente à não verificação de uma violação, por esta norma, do direito à propriedade, do princípio da tutela da confiança, do princípio da proporcionalidade – embora tenha dúvidas quanto à classificação como permanente, de uma medida que não revoga a legislação em vigor, se encontra prevista no orçamento e tem impacto orçamental. Também concordo com a não violação do princípio da igualdade no que diz respeito à relação entre os destinatários da norma (os titulares do direito à pensão de sobrevivência que a cumulam com outras pensões, quando o valor global do assim percebido seja superior a € 2.000) e os titulares do direito à pensão de sobrevivência que a cumulam com rendimentos de outras proveniências. Assim, a minha discordância diz respeito à fundamentação apresentada para a declaração de inconstitucionalidade do artigo 117.º, por violação do princípio da igualdade no âmbito da relação interna.
- 4.O raciocínio do Tribunal Constitucional baseia-se, em grande medida, na qualificação da norma em causa como uma “condição de recursos” – da qual discordo.
- 5.O legislador, democraticamente legitimado, pretende reduzir a despesa no âmbito do sistema de pensões a curto prazo, para garantir a sua sustentabilidade. Com esse objetivo, optou, neste caso, por introduzir uma medida de redução de encargos com a cumulação de pensões através da redução do valor da pensão que uma pessoa perceba em cumulação, a partir de um determinado valor global de pensões. Trata-se de uma opção racional tendo em vista esse objetivo, pois incide apenas sobre a pensão de sobrevivência quando esta constitui uma prestação adicional à percebida a título principal, tendo um caráter complementar, e apenas acima de um determinado montante.
- 6.Pode discordar-se da opção do Governo, ou considerar que o preceito não é claro ou é pouco feliz. Pode considerar-se que o legislador podia ter ido mais ou menos longe, tendo em conta o objetivo de redução da despesa. Mas daí não decorre a inconstitucionalidade da norma. Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade da opção elegida pelo legislador democraticamente legitimado – apenas ajuizar se as medidas são conformes à Constituição.
Não ignoro que a medida foi apresentada politicamente como a introdução de uma “condição de recursos” nas pensões de sobrevivência, nomeadamente no Relatório que acompanhou a proposta de OE (p. 59). No entanto, estes elementos interpretativos devem ser desconsiderados se contrariados por outros elementos de igual ou maior importância, como a letra da lei ou a teleologia da norma. Não deve partir-se de uma determinada qualificação a priori – apesar de apresentada pelo proponente da norma – para dela tirar conclusões quanto à interpretação do preceito, especialmente se essa qualificação tiver consequências relativamente à constitucionalidade do regime. Deve iniciar-se o raciocínio através da interpretação do preceito em causa, verificando-se se este é consentâneo com a sua qualificação como condição de recursos – o que, como já disse, é pelo menos duvidoso.
Uma “condição de recursos” é, regra geral, uma cláusula que sujeita o direito à perceção de uma determinada prestação social (tipicamente no âmbito do subsistema de solidariedade) ao cumprimento de um determinado conjunto de requisitos, nomeadamente quanto à globalidade de rendimento disponível da pessoa em causa. Nos casos em que o valor de uma prestação social esteja dividido em escalões de montante da prestação, a condição de recursos também pode ser estabelecida de forma a limitar o acesso a alguns desses escalões. Neste último caso, pode dizer-se que a condição de recursos condiciona, de certa forma, o montante da prestação, na medida em que determina o escalão da prestação a que a pessoa tem direito mas, regra geral, não existe essa relação entre condição de recursos e montante de prestação.
Assim, é de concluir que a norma decorrente do artigo 117.º não constitui uma “condição de recursos”. De facto, a análise do artigo 117.º revela uma medida de redução do montante das pensões de sobrevivência atribuídas ou a atribuir a partir de um determinado montante de valor global de pensões percebidas e tendo em conta esse valor, quando cumuladas com outras pensões. Isto é distinto da introdução de uma condição de recursos no âmbito das pensões de sobrevivência – nos termos referidos no parágrafo anterior (por exemplo, através da introdução de um nível mínimo de rendimento a partir do qual se teria acesso à pensão de sobrevivência). A norma objeto de apreciação é, portanto, uma medida que visa regular a cumulação de pensões de sobrevivência com outras pensões, reduzindo o seu montante, e assim deve ser analisada. Traduz um objetivo legítimo, razoável e, pelo menos à partida, não inconstitucional. É esta também a qualificação que o Governo atribui à medida na “Nota” apensa a este processo (“conjunto de normas que regulam estritamente situações de acumulação de pensões, incidindo a sua dimensão restritiva unicamente sobre o montante da pensão de sobrevivência percebida pelo cônjuge sobrevivo ou pelo membro sobrevivo da união de facto”). O Acórdão admite esta qualificação (de “medida restritiva de cumulação de pensões”), mas dela não retira as devidas consequências.
É este o fundamento material para o valor da redução poder ser diferente quanto a pessoas que percebem valores globais idênticos. A redução incide sobre a pensão que cumula com a pensão já percebida, dependendo o valor concreto da referida redução do montante da pensão de sobrevivência. As posições jurídico-subjetivas dos pensionistas não são objeto de tratamento diferenciado, pois este depende do valor da pensão de sobrevivência cumulada e do valor global de pensões percebidas – o que é um fundamento razoável para a diferenciação de montante de redução.
Justifica-se, por isso, também que a medida apenas se aplique a quem cumula pensões, deixando de fora quem perceba apenas uma pensão de sobrevivência (artigo 117.º, n.º 15): porque são grupos diferenciados de pessoas – umas recebem a pensão de sobrevivência em cumulação com outras pensões, outras apenas a pensão de sobrevivência. Se a norma tem como objetivo precisamente reduzir os valores de pensões em caso da sua cumulação apenas faz sentido que a medida incida sobre o primeiro grupo de pessoas, pois só nesse caso se verifica a cumulação. Eis a importância de qualificar corretamente a medida, tendo em conta o texto legal e o fim prosseguido, não como uma condição de recursos – caso em que a atribuição da pensão de sobrevivência (ou o seu montante) dependerá do nível global de recursos dos eventuais titulares – mas como uma medida restritiva da cumulação de pensões. Aceitando-se essa qualificação da medida, é compreensível e justificado que se excluam os titulares únicos da pensão de sobrevivência.
- b. Quanto à declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 33.º da LOE de 2014
- 7.Acompanho o presente Acórdão quanto à declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 33.º da LOE de 2014 por violação do princípio da igualdade. No entanto, sinto necessidade de fazer algumas precisões quanto a certos pontos da fundamentação do Acórdão que não acompanho, na linha da minha declaração de voto ao Acórdão n.º 187/2013, relativo à LOE de 2013, com o objetivo de explicar a minha posição mais aprofundadamente, bem como de contribuir para a clarificação e precisão da discussão em torno do princípio da igualdade e, desta forma, contribuir também para a previsibilidade das decisões do Tribunal Constitucional.
- 8.Não há dúvidas de que o princípio da igualdade é convocável na apreciação da constitucionalidade do artigo 33.º da LOE de 2013. De facto, a norma que dele decorre, conduz à identificação de grupos distintos de pessoas, sujeitos a regimes legais diferenciados: uma vez que introduz reduções nas remunerações de pessoas que trabalham para o Estado, demais pessoas coletivas públicas, ou quaisquer das restantes entidades referidas no seu n.º 9, deixando de fora todos os outros trabalhadores, designadamente os trabalhadores com remunerações por prestação de atividade laboral subordinada nos setores privado e cooperativo, bem como os trabalhadores por conta própria. Neste contexto, a apreciação da sua conformidade constitucional apela, assim, diretamente, ao parâmetro da igualdade perante a lei (artigo 13.º da Constituição).
- 9.Sendo incontroverso que o objetivo de redução do défice pode ser alcançado através da redução da despesa, reduzir salários dos funcionários públicos para prosseguir aquele fim é, em si mesma, uma opção racional. A determinação, pelo período correspondente ao ano orçamental, de um corte nos salários dos trabalhadores do sector público tendo em vista a diminuição do défice do orçamento geral de Estado constitui, pois, uma razão justificativa de tratamento diferenciado suficientemente racional para superar o teste do arbítrio do princípio da igualdade (a “versão fraca” do escrutínio). Assim, no confronto das razões que sustentam o tratamento diferenciado (redução dos salários dos trabalhadores do sector público) com o fim da norma (redução do défice) importa concluir pela racionalidade ou não arbitrariedade da diferenciação.
A apreciação que faço da compatibilidade desta norma com o princípio da igualdade tem como ponto de partida que o seu objetivo (ou o seu fim) é a redução do défice. O facto de este fim decorrer do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) ou do Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (o designado “Tratado Orçamental”) é irrelevante para estes efeitos, pois ambos os instrumentos preveem a necessidade da sua prossecução. Para alcançar este fim, o legislador escolheu a via da redução da despesa, em alternativa à via do aumento da receita. A circunstância de a redução da despesa ser uma alternativa para alcançar o fim visado pelo legislador, demonstra que esta constitui um meio, uma via instrumental, e não um fim em si mesmo. É importante referir que a minha análise é condicionada pelo fim da norma em causa, pelo que as conclusões a que chego podem ser diferenciadas quanto a outra norma, se o seu fim for diferente – por exemplo, uma coisa é uma medida orçamental, de redução do défice, outra, bem diferente, será uma reforma estrutural da tabela salarial dos trabalhadores da Administração Pública.
10. No entanto, acompanho o Acórdão no sentido de ser de rejeitar a sujeição da norma em apreciação ao mero teste do arbítrio. De facto, esta norma introduz uma diferenciação de tratamento entre grupos de pessoas, o que torna insuficiente o afastamento do arbítrio para afirmar a sua validade constitucional. Qualquer diferenciação de tratamento baseada em características referidas às pessoas ou às situações em que se encontram, não pode bastar-se com um controlo de mera evidência, ou de ausência de arbítrio. A suficiência de um tal controlo seria incongruente com a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º).
A exigência de uma análise mais densa e rigorosa impõe-se com maior grau de premência quando, como no caso em presença, são afetados direitos fundamentais. Com efeito, através da norma em análise, é afetado o direito fundamental à retribuição do trabalho consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição. De facto, o valor ou o montante das remunerações dos trabalhadores não pode deixar de estar abrangido pela esfera de proteção do direito fundamental referido pois representa um elemento essencial desse direito. Se assim não fosse, a esfera de proteção ficaria comprimida a um conteúdo mínimo, de forma incompreensível e injustificável. É importante referir que defender que o quantum das remunerações está abrangido pela esfera de proteção do direito fundamental em causa não equivale a defender a irredutibilidade dos montantes em causa. A redução das remunerações representa uma restrição àqueles direitos que é possível (como, regra geral, é possível restringir um direito fundamental) desde que obedeça aos parâmetros constitucionais aplicáveis, designadamente o da igualdade.
Sem se questionar a liberdade de conformação do legislador na definição de medidas que visem prosseguir um fim público, como a aqui sob escrutínio, importa, todavia, apelar a um critério mais exigente de apreciação da sua conformidade constitucional ao nível do princípio da igualdade (uma “versão forte”) que, nessa medida, acaba por se revelar, legitimamente, como mais constrangedor daquela liberdade.
11. E em que se traduz esse critério de maior exigência no controlo do princípio da igualdade nestes casos? Para se dar resposta, pode-se recorrer à jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão e, ultrapassando o teste do arbítrio (proibição de arbítrio), incidente sobre a razão do tratamento diferenciado, lançar-se mão a um teste mais exigente de controlo do princípio da igualdade (designado por aquele Tribunal como nova fórmula) que, prosseguindo uma igualdade ponderada, se preocupa com as diferenças existentes entre os grupos e a sua correspondência com as diferenças dos regimes aplicáveis (Entsprechungsprüfung – o teste da correspondência, na designação de alguma doutrina).
Trata-se, pois, desde logo, de uma diferença de perspetiva de análise. No caso da proibição do arbítrio inquire-se pela justificação constitucional de um tratamento diferenciado partindo de fora, na medida em que se pergunta por razões externas que o justifiquem, sem entrar em consideração com as características específicas de cada grupo; diferentemente, a nova fórmula procura determinar se nos atributos de cada grupo visado existe justificação para o tratamento diferenciado. Em primeiro lugar, identificando as diferenças entre os grupos e, estabelecidas estas, indagando da correspondência entre elas e a diferença de tratamento adotada pelo legislador.
Indispensável é que exista uma relação interna entre as diferenças identificáveis entre os grupos e a diferença de tratamento. Ou seja, cada diferença de tratamento deve ter uma razão justificativa assente em diferenças objetivas entre os grupos, sendo que as diferenças devem ser tanto de maior natureza e de maior relevância quanto mais relevante for a diferença de tratamento.
Impõe-se, assim, proceder a um juízo ponderativo.
12. Face à diferença de tratamento decorrente do artigo 33.º LOE, que se salda na redução dos salários de trabalhadores do setor público, o Tribunal Constitucional considera a norma inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, com o que concordo.
Quanto às razões invocáveis para a diferenciação, o Acórdão recusa a validade dos argumentos assentes na superioridade média das retribuições auferidas pelos trabalhadores do Estado e outras entidades públicas e/ou da maior garantia de subsistência do respetivo vínculo laboral, numa fundamentação que, quanto a estes argumentos, acompanho.
De seguida o Acórdão, aceita, porém, na linha de arestos anteriores, como razão de diferenciação invocável a perceção por um grupo de remuneração através de verbas públicas (ou recursos públicos) – questão que analisarei infra. Este argumento é relacionado com a eficácia da medida – que assim terá um impacto certo, imediato e quantitativamente relevante nas despesas do Estado.
Não posso acompanhar este argumento como fundamento da não inconstitucionalidade do tratamento diferenciado. A fórmula mais exigente de controlo do princípio da igualdade (igualdade ponderada), que adoto, ao exigir a verificação de uma relação interna entre as diferenças detetáveis nos grupos de pessoas em causa e a diferença de tratamento dada pelo legislador, evidencia queas razões de eficácia não podem servir de justificação para tratamentos diferenciados.A eficácia, não é uma característica de qualquer dos grupos destinatários da norma. Antes uma valoração externa da justificação da medida, em razão do resultado e não em razão das diferenças detetadas nos grupos de pessoas em confronto.
13. Também não acompanho a fundamentação do Acórdão quando este, num segundo momento de escrutínio, faz apelo a juízos de proporcionalidade da extensão da diferenciação, tendo em conta o seu fundamento.
A maior densidade de controlo exigida pelo teste mais denso do princípio da igualdade, convocada pela diferenciação de grupos de pessoas e afetação de um direito fundamental, apelando embora a um momento de ponderação dentro da estrutura do princípio (igualdade ponderada), não deve ser confundida com o teste clássico da proporcionalidade dos direitos de liberdade. A igualdade pressupõe uma comparação, enquanto a proporcionalidade uma colisão de direitos, valores ou bens. Enquanto esta última assenta num juízo relativo a um fim que deve ser prosseguido por um determinado meio, verificando-se, de seguida, a relação meio-fim, o teste da igualdade configura uma comparação entre grupos de destinatários de normas e regimes respetivamente aplicáveis.
É esta diferença de estrutura identificável na comparação do princípio da igualdade com o princípio da proporcionalidade que permite compreender que uma mesma medida possa violar um princípio sem contrariar o outro.
14. Diferentemente do que sucede com o princípio da proporcionalidade, a dogmática do princípio da igualdade assenta na distinção entre razão justificativa da diferenciação e fim da norma que contém a diferenciação. Para o tratamento diferenciado terá sempre de haver uma razão justificativa (fundamento).
A questão está, pois, em saber como determinar a verificação dessa justificação. Enquanto na “versão fraca” do princípio da igualdade esta avaliação é feita pela procura da existência de uma razão válida para a diferença de tratamento, na sua “versão forte”, o momento ponderativo do princípio não dispensa o escrutínio da própria avaliação realizada pelo legislador quando atribuiu peso determinante às razões que justificam a diferença de tratamento legislativo.
15. Esta fórmula mais exigente de controlo do princípio da igualdade (igualdade ponderada) compara duas grandezas, estabelecendo que a diferença identificável entre os grupos de pessoas em presença tem de ser de tal ordem e natureza que, num juízo de ponderação, justifique a diferença de tratamento adotada. Só diferenças objetivas e de relevo justificam uma diferença de tratamento, sendo que as diferenças têm de ser tanto maiores e de maior peso quanto mais grave for a diferença de tratamento. Portanto, ou as diferenças identificáveis são de dimensão e/ou de natureza tal que justificam o tratamento diferenciado adotado, e não há violação do princípio da igualdade, ou não são de ordem a justificar aquela diferença e há violação.
Ora, uma tal avaliação implica a verificação da correspondência do tratamento diferenciado com o fim da norma, no cotejo das razões ponderáveis a favor e contra a diferenciação, tendo em conta o contexto factual e normativo em que se insere a medida. Para avaliar a correspondência da diferença de tratamento com as diferenças identificadas nos diversos grupos de pessoas, importa, pois, começar por confrontar a medida diferenciadora adotada (sua natureza e dimensão) com as razões invocadas para a empreender.
16. Ora, quanto às razões invocadas para a diferenciação, o Acórdão aceita, como já referi (para além da razão de eficácia que já acima afastei), a perceção por um grupo de remuneração através de verbas públicas o que, nessa medida (“e apenas nessa medida” – n.º 30) os posiciona de “forma diferenciada perante o objetivo de consolidação orçamental definido a partir do cumprimento dos limites quantitativos anuais fixados para o défice, constituindo este um interesse público suficientemente percetível e constitucionalmente fundado para que nele possa continuar a fixar-se o ponto de referência implícito na ratio do tratamento distintivo a que aqueles trabalhadores se mantêm sujeitos”.
Mais uma vez, não posso acompanhar a fundamentação do Acórdão neste ponto.
A diferença anotada – da perceção por um grupo de remuneração através de verbas públicas – não revela natureza e relevância suficientes para justificar o grau de tratamento mais oneroso a que os trabalhadores do setor público estão sujeitos por via do artigo 33.º da LOE. Ela não constitui diferença objetiva que justifique a diferença de tratamento adotada.
Na verdade, a diferença da perceção por verbas públicas, tendo embora inegável reflexo nas contas do Estado, não apresenta nenhuma relevância na delimitação do direito fundamental à retribuição de qualquer trabalhador. A garantia deste direito fundamental tem igual expressão para todos os trabalhadores. A Constituição não distingue o grau de garantia que merece a remuneração dos trabalhadores do setor público, privado ou do terceiro setor (artigo 59.º, n.º 3, da Constituição). Não existe, pois, fundamento para a discriminação na redução dos vencimentos dos trabalhadores pela circunstância de a sua entidade empregadora ser um ente público ou privado. A solução legal proposta assenta numa ideia de poder dispositivo unilateral do Estado sobre as remunerações de todos os trabalhadores do setor público (poder que nenhum empregador tem sobre os respetivos trabalhadores), confundindo Estado-empregador e Estado-legislador, e pressupõe que a garantia do direito fundamental à retribuição não tem igual expressão para todos os trabalhadores, o que não pode ser aceite.
Conclui-se, assim, que não existe correspondência entre a característica identificadora do grupo de pessoas formado pelos trabalhadores do setor público e o tratamento diferenciado que lhes é proporcionado relativamente aos demais cidadãos portugueses.
17. Em regra, todos devem contribuir, de acordo com as suas capacidades, para um objetivo que a todos aproveita: a diminuição do défice do Estado. Na medida em que visam solucionar um problema do Estado, enquanto coletividade, o interesse público por elas prosseguido diz respeito à generalidade dos cidadãos e não, unicamente, aos trabalhadores do setor público. A redução da despesa pública, tendo em vista assegurar a prossecução das finalidades estaduais, onde se incluem também as prestações sociais, por fundada que seja no contexto económico e financeiro atual, não legitima o sacrifício adicional, e desprovido de qualquer compensação específica, de apenas alguns para satisfação dos interesses de todos.
A seleção de quem deve ser chamado a solver os encargos públicos tem como limite a igualdade na repartição dos encargos públicos, bem como a respetiva capacidade contributiva.
18. Afasto-me, portanto, da fundamentação do Acórdão, quando ali se afirma que não é no fundamento mas na medida da diferenciação que reside o problema referente ao parâmetro da igualdade (n.º 33). Em si mesmo, o princípio da igualdade não contém nenhuma escala de avaliação para determinar uma relação contrária ao Direito, pelo que não é possível uma afetação deste princípio que se contenha ainda dentro dos limites do tolerável. Não está, pois, nas mãos do Tribunal Constitucional definir a medida da diferença tolerável.
Não havendo correspondência entre as características diferenciadoras dos grupos identificados pela norma e as diferenças de tratamento detetadas, não existe verdadeiro fundamento para a discriminação.
- c. Quanto à fixação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
- 19. Apesar de ter votado favoravelmente a fixação de efeitos, preferia uma solução em que a restrição de efeitos apenas abrangesse a parte da norma do artigo 33.º do LOE que, de acordo com a fundamentação do Acórdão, excede o limite do razoável e que justifica a declaração de inconstitucionalidade – ou seja, a restrição dos efeitos devia abranger apenas a redução remuneratória entre 3,5% e 10% para trabalhadores do setor público que aufiram remunerações base superiores a € 1.500, aplicando-se aos restantes efeitos da norma a eficácia regra ex tunc. Tratava-se de uma solução mais adequada e juridicamente possível que, todavia, não mereceu acolhimento.
Tomo esta posição apesar de considerar que a inconstitucionalidade da norma também afeta esta dimensão normativa do artigo 33.º LOE, uma vez que a decisão de modelação de efeitos constitui uma decisão distinta do Tribunal Constitucional, que incide sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, tendo, portanto, como seu pressuposto a decisão já tomada pelo Tribunal Constitucional e sendo dependente desta.
20. O Tribunal Constitucional é autorizado pelo artigo 282.º, n.º 4, da Constituição a fixar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de forma a alcançar um efeito mais restrito ou menos oneroso do que a eficácia normal desta declaração, prevista no artigo 282.º, n.os 1 e 2, quando tal for exigível por imperativos de segurança jurídica, equidade ou interesse público de especial relevo. Ao usar este poder, o Tribunal não está a restringir os efeitos da inconstitucionalidade proprio sensu da norma em questão, uma vez que estes estão fixados na Constituição, mas os efeitos da declaração de inconstitucionalidade do Tribunal propriamente dita.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional tem competência para restringir qualquer efeito da declaração (o efeito retroativo e o efeito repristinatório), em razão do tempo (v.g., até à publicação do Acórdão), da matéria em questão ou das circunstâncias (v.g., os efeitos ressalvados da norma abarcam apenas algumas das situações ou casos que seriam afetados). Todas estas hipóteses decorrem do artigo 282.º, n.º 4, que não contém uma mera alternativa entre eficácia ex tuncou ex nunc da decisão, mas confere expressamente o poder ao Tribunal Constitucional de fixar os efeitos da sua decisão salvaguardando determinadas situações constituídas ou determinadas dimensões normativas da norma julgada inconstitucional, durante certo período de tempo (C. Blanco de Morais, Justiça Constitucional, t. II, Coimbra Editora, 2011, pp. 268-270, 337 ss.; R. Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, UCP, 1999, pp. 673-674, 696 ss.; V. Canas, Introdução às Decisões de Provimento do Tribunal Constitucional, AAFDL, 1994, pp. 195-196). De facto, se o preceito dá competência ao Tribunal para retirar a eficácia regra (ex tunc)à totalidade da decisão, então tem de se reconhecer a competência do Tribunal para restringir efeitos em menor medida.
A decisão de limitação dos efeitos e a medida dessa limitação dependem da existência de um sacrifício desproporcionado da segurança jurídica, da equidade ou de interesse público de excecional relevo e do grau desse sacrifício. Daqui resulta o caráter limitado do poder do Tribunal de manipulação de efeitos, uma vez que não se trata de um espaço de absoluta discricionariedade. De facto, a Constituição não pretende transformar o Tribunal Constitucional em órgão de decisão ou ponderação política de interesses – nomeadamente quando se refere a “interesse público de especial relevo” – pois esta apenas cabe ao decisor político democraticamente legitimado. Tal seria, aliás, desconforme com os princípios do Estado de Direito democrático e da separação de poderes. A restrição, em determinado caso, de efeitos com esta base terá, assim, de encontrar fundamentação sempre num determinado princípio constitucional e na sua ponderação.
21. Assim, numa situação como a presente, tendo em conta o efeito regra da declaração de inconstitucionalidade e face ao impacto que esse efeito teria sobre o interesse público de especial relevo invocado – o evitar a perda para o Estado da poupança líquida de despesa pública – deve o Tribunal Constitucional proceder à restrição dos efeitos. Deve fazê-lo, no entanto, de acordo com o princípio da proporcionalidade, na estrita medida do necessário, exercendo as suas competências.
Se o Tribunal Constitucional ao declarar a norma inconstitucional, na sua totalidade, abrange uma redução remuneratória para que reconhece existir fundamento constitucional bastante, então apenas em relação a essa dimensão se justifica a restrição de efeitos. Não a abranger, seria desproporcionadamente lesivo do interesse público, porque o Tribunal Constitucional já admitiu a não inconstitucionalidade dessa redução. Todavia permitir a preservação dos efeitos já produzidos pela norma relativamente aos titulares do direito às remunerações que foram inconstitucionalmente privados de parte do seu rendimento, tendo em conta o seu peso financeiro nas contas do Estado, por um lado, e as consequências de privação de rendimento nos visados, por outro, em especial no que respeita aos escalões mais baixos de remuneração, já não encontra adequada cobertura no interesse público invocado, configurando um sacrifício excessivo.
Para a decisão sobre a restrição de efeitos, não é relevante o facto de a norma ser ou não incindível. Esse argumento é importante quando se está a apreciar a inconstitucionalidade da norma. No entanto, neste momento, está-se a apreciar os efeitos da sua declaração de inconstitucionalidade e nesse âmbito, o Tribunal Constitucional tem competência autónoma e independente da estrutura da norma, no respeito pelo artigo 282.º, n.º 4, da Constituição.
Maria de Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido parcialmente quanto à declaração de inconstitucionalidade expressa na alínea a), vencido quanto à alínea b) e não acompanho parte da fundamentação constante da declaração de inconstitucionalidade da alínea c), pelas seguintes razões essenciais.
1. A declaração de inconstitucionalidade das normas do artigo 33º da Lei nº 83-C/2013 (LOE2014), sustentada pela posição maioritária, fundamenta-se na desconformidade com o princípio da igualdade perante os encargos públicos, uma vez que a diferenciação estabelecida entre quem recebe por verbas públicas e os titulares de rendimentos provenientes de outras fontes, apesar de ter fundamento legítimo, excede a medida da diferença constitucionalmente tolerada entre uns e outros.
Em nosso entender, o parâmetro jurídico-constitucional invocado, assim como a aplicação que dele é feita, não é capaz de justificar a ilegitimidade constitucional da redução remuneratória imposta nas normas impugnadas.
A igualdade nos encargos, uma das manifestações do princípio da igualdade, significa que os encargos públicos devem ser repartidos de forma igual pelos cidadãos (v.g. igualdade na tributação) e, no caso de existir um sacrifício especial de um indivíduo ou de grupo de indivíduos em benefício do interesse público, que os sacrificados devam ser compensados por esse prejuízo (v.g. igualdade nos vínculos expropriatórios ou quase expropriatórios).
Na primeira dimensão, o princípio da igualdade perante os encargos públicos cumpre-se com a universalidade da medida legislativa, repartindo-se o encargo por «todos» com base no mesmo critério. Assim acontece com os impostos, que incidem sobre todos os cidadãos segundo o critério da capacidade económica (arts. 106º, nº 1 e 107º da CRP). Nesta caso, a desigualdade da situação económica de cada um é superada com o critério da capacidade contributiva, que exclui do campo de incidência dos impostos as pessoas que não disponham dessa capacidade e que impõe que os contribuintes com a mesma capacidade económica paguem os mesmos impostos e os que tenham diferente capacidade paguem diferentes impostos. Quer dizer: a igualdade de tributação afere-se (e mede-se) através do critério (tertium comparationis) da capacidade contributiva, que se exprime através da imposição aos contribuintes de um sacrifício proporcional a favor do estado.
Na segunda dimensão, em que existe uma imposição desigual de encargos a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos em benefício da comunidade, o princípio da igualdade perante encargos públicos é tradicionalmente invocado para justificar a compensação pela desigualdade criada. Perante um ato violador do princípio da igualdade, na medida em que uns destinatários são atingidos de modo desigual em comparação com outros, a igualdade é reparada ou restabelecida através de uma indemnização que compense o sacrifício especial por eles suportado. Significa isto que a violação do princípio da igualdade não impõe a invalidade do ato sacrificial, exigindo antes uma medida compensatória que vise restabelecer a igualdade jurídica ou material violada.
Ora, as normas impugnadas não convocam qualquer das referidas dimensões do princípio da igualdade: não concretizam ou estabelecem uma medida (ou proporção) de capacidade contributiva, pois o fim imediato é a consolidação orçamental ou redução do défice orçamental através da redução da despesa com pessoal; nem visam transformar a violação do princípio da igualdade em compensação de sacrifício patrimonial suportado pela desigualdade na distribuição de encargos públicos.
Para se estabelecer uma conexão relevante com a primeira dimensão do princípio da igualdade perante os encargos públicos, a única que poderia ser convocada, a fiscalização judicial teria que incidir sobre a legitimidade do fim escolhido: a igualdade perante os encargos públicos exigiria que as medidas de consolidação orçamental fossem tomadas através do pagamento de impostos, com o correspondente aumento da receita, e não através da diminuição da despesa. Como a igualdade no contributo para os encargos públicos, segundo o critério selecionado pela Constituição, assenta na capacidade contributiva de cada um, só uma atuação pelo lado da receita era capaz de garantir o respeito por aquele princípio; já uma atuação pelo lado da despesa, como é o caso da redução remuneratória, nunca poderia ter caráter universal (não discriminatório), dada a impossibilidade do legislador impor igual medida aos trabalhadores do setor privado, assim como aos titulares de rendimentos provenientes de outras fontes.
Simplesmente, não sendo evidente a desconformidade do fim imanente das normas do artigo 33º da LOE – consolidação orçamental através da redução da despesa – com os fins expressos na Constituição, nem se detetando qualquer irrazoabilidade ou incongruência com os fins declarados, a opção pela consolidação orçamental através do aumento da receita ou da diminuição da despesa cai no âmbito da liberdade de conformação legislativa.
Ora, não se questionando a adequação teleológica daquela solução, nem há inconstitucionalidade material por violação dos fins constitucionalmente prescritos, nem o mérito da escolha política daquele fim pode ser abalado pelo juiz constitucional. Nesta parte, uma atitude de self restraint na fiscalização da medida foi logo tomada no Acórdão nº 396/11, onde se julgou que «o não prescindir-se de uma redução de vencimentos, no quadro de distintas medidas articuladas de consolidação orçamental, que incluem também aumentos fiscais e outros cortes de despesas públicas, apoia-se numa racionalidade coerente com uma estratégia de atuação cuja definição cabe ainda dentro da margem de livre conformação política do legislador».
Assente que o legislador é livre de escolher o fim visado pelas normas impugnadas, que é um pressuposto ou um dado de aplicação do princípio da igualdade, só por referência a esse fim é que se pode determinar quais as pessoas ou as situações que implicam um tratamento igual ou desigual. Ao escolher a consolidação orçamental através da redução da despesa com pessoal, o legislador pré-definiu os objetos a comparar, uma vez que só a diminuição dos rendimentos pagos por verbas públicas é capaz de conseguir aquele objetivo. Essa pré-decisão conduz inevitavelmente a um determinado resultado de comparação: para efeitos de consolidação orçamental, os rendimentos provenientes de verbas públicas não são iguais aos rendimentos provenientes de outras fontes.
Dir-se-á que o princípio da igualdade se cumpre com a existência de uma justificação material bastante para se qualificar de forma desigual aqueles rendimentos. A diferenciação no modo de tratar os rendimentos afetados respeita a norma de proibição do arbítrio porque, tratando-se rendimentos provenientes do orçamento de estado, há uma razão justificativa para o tratamento diferenciado: a eficácia imediata para uma consolidação a curto prazo (cfr. Acórdãos nºs 396/2011, 352/2012 e 187/2013).
Mas, ainda que seja possível estabelecer uma relação entre os diversos rendimentos e que critério da fonte de rendimentos possa suportar a diferenciação criada pelas normas impugnadas, a circunstância dos titulares de rendimentos não provenientes de verbas públicas não poderem ser afetados por medidas suscetíveis de reduzir a despesa pública, torna inviável a determinação da medida exata da diferença. De facto, a igualdade como proibição do desequilíbrio, um controlo mais intenso que tem vindo a ser efetuado pela jurisprudência constitucional, implica um juízo de ponderação entre a extensão da diferenciação e a extensão das diferenças objetivas detetadas entre as situações de facto que são objeto de comparação. Mas, sem recurso a outros critérios ou termos de comparação conexionados com o fim a atingir, como determinar as diferenças entre os rendimentos de origem pública e os rendimentos de outras fontes, como os do trabalho do setor privado, empresariais, profissionais, de capitais, prediais, etc?
Se a comparação fosse feita entre trabalhadores remunerados por verbas públicas e demais trabalhadores por conta de outrem, a extensão da diferença ainda poderia ser determinada através de certos elementos relacionadores, como o nível médio de remunerações, a maior ou menor segurança no emprego ou até a situação jurídico-funcional globalmente considerada de cada elemento do par comparativo. Nos Acórdãos nºs 353/12 e 187/13 não se considerou razoável e idóneo valorar a situações a comparar em função desses critérios materiais, quer pela diversidade de funções no setor público, quer pela circunstância de só as situações de pleno emprego poderem ser atingidas pelas medidas legislativas.
A verdade é que, em vista do fim de consolidação orçamental, a irrazoabilidade não está na escolha daqueles critérios valorativos, mas sim na determinação das situações relevantes que foram tratadas diferentemente pela lei. Para aquele objetivo, que é de interesse nacional, quem recebe rendimentos a partir de verbas inscritas no orçamento do Estado deve ser comparado com todos os que pertencem à categoria dos detentores de capacidade contributiva. Dentro deste universo, os trabalhadores remunerados por verbas públicas foram diferenciados pelo maior efeito que a redução remuneratória pode ter na consolidação orçamental e na salvaguarda da solvabilidade do Estado.
Ora, a determinação da diferença entre os rendimentos provenientes de verbas públicas e os rendimentos provenientes de outras fontes é difícil de medir, se não mesmo impossível, pois as “medidas de austeridade” também atingiram esses rendimentos. Como comparar aqueles que apenas têm rendimentos prediais ou empresariais, sujeitos a um aumento significativo do IMI e do IVA, com o quantum de redução remuneratória?
No Acórdão nº 187/13 ainda se considerou que a “medida de diferenciação” corresponde ao coeficiente de redução salarial porque os trabalhadores da Administração Pública atingidos pela norma, sendo sujeitos passivos de imposto, ficaram a dispor de «menor capacidade económica para satisfazer o aumento de encargos fiscais que foi imposto generalizadamente a todos os cidadãos». A extensão da diferenciação foi assim medida pela menor capacidade contributiva causada pela redução remuneratória. Mas este argumento, que parece ser decisivo na aplicação do princípio da “igualdade proporcional”, não pode servir de suporte à diferenciação, uma vez que se há menor capacidade contributiva também o imposto a pagar será menor. Isto é, o grau de sacrifício que vai implicado na redução remuneratória não se pode medir pelo mesmo grau de sacrifício que os contribuintes suportam em consequência do pagamento dos seus impostos, pois a perda de rendimentos (sacrifício) é proporcional à diminuição da carga fiscal e desse modo continua a ser assegurada a igualdade de sacrifícios. De modo que, a repartição igual dos encargos fiscais não é afetada pela redução remuneratória imposta pelas normas impugnadas.
A posição que obteve vencimento no presente Acórdão não faz referência àquela diferenciação, mas também não indica qual a extensão da diferença entre os grupos em comparação, com base na qual se deve aferir da proporcionalidade do tratamento diferenciado. Aceita-se que há uma diferença entre os atingidos e os excluídas pelas normas impugnadas – os rendimentos daqueles provêm de verbas públicas – mas não se explícita qual a medida dessa diferença.
Ora, a nosso ver, para aferir da “justa medida” da redução de remunerações não é necessário verificar se, à luz do objetivo da consolidação orçamental, há um tratamento desigual relativamente aos demais detentores de capacidade contributiva. Tal como acontece numa empresa privada, o Estado-administração pode cortar nas despesas com o pessoal que o serve, tendo com vista a salvaguarda da sua solvabilidade, sem que seja necessário tomar em conta a igualdade de resultados relativamente aos titulares de rendimentos de outra fonte.
De resto, no contexto que dá sentido às normas impugnadas, tentar encontrar uma justificação racional para a “diferenciação” acaba por se legitimar cortes excessivos, sem que seja violado o princípio da igualdade. Na verdade, ao localizar-se a razão justificativa da diferenciação na “eficácia imediata” na redução da despesa do Estado, tanto se legitima uma redução de 10% como se valida uma redução de 12% ou mais. E será difícil sustentar, como parece resultar da posição que obteve vencimento, que a eficácia imediata justifica a diferenciação dentro de certa medida, mas não justifica o agravamento dessa medida devido à perda de “consistência valorativa” pelo decurso do tempo. É que, se o argumento da eficácia perdeu consistência, tanto perdeu para a medida de diferenciação inicial como para o seu agravamento.
Isto não significa que as normas do artigo 33º do LOE2014 estejam totalmente imunes à censura jurídico-constitucional, pois têm ainda que ser confrontadas com o princípio da proporcionalidade.
Quer se entenda que o quantum de retribuição tem natureza jusfundamental, como parece ser mais defensável, quer se entenda que a Constituição não o garante, como se defende no presente Acórdão, as medidas legislativas que o restringem ou conformam têm que ser adequadas,exigíveis e proporcionais para se alcançar o fim pretendido, seja por decorrência do nº 2 do artigo 18º da CRP, seja com fundamento no princípio do estado de direito ínsito no artigo 2º da CRP.
Que a redução remuneratória é apropriada ao fim de consolidação orçamental pelo lado da despesa é uma evidência: o impacto orçamental na redução da despesa pública é estimado em 643 milhões de euros (cfr. Relatório do OE2014). E também é defensável considerar tal medida temporária como um meio menos limitativo ou menos lesivo que a cessação do vínculo laboral ou a colocação na situação de requalificação, as alternativas disponíveis à redução de despesa com pessoal, as quais, embora idóneas, são mais lesivas do que aquela (cfr. Acórdão nº 474/13, sobre a constitucionalidade do regime jurídico da requalificação dos Trabalhadores da Administração Pública).
Já quanto à razoabilidade e equilíbrio da medida, sem se pôr em causa o espaço de conformação do legislador na sua modelação, constata-se o caráter excessivo da mesma, sobretudo na parte em que se atinge as remunerações mensais de valor compreendido entre os €675 e €1000. Não se trata de ajuizar se a justa medida impunha que o legislador fixasse um outro limiar de isenção, mas apenas de constar a manifesta irrazoabilidade de nuns casos se considerar suficiente para a satisfação do fim de consolidação orçamental um corte de rendimentos a partir de 1000 euros e noutros se impor uma redução a partir de 675 euros.
Se não se aceita que a anterior jurisprudência constitucional tenha fixado o limiar mínimo de incidência da redução remuneratória em 1.500 euros, pois o Tribunal não tem esse poder normativo, também se julga irrazoável que para os pensionistas aquele limite tenha sido fixado em 1000 euros e que para quem está no ativo tenha sido fixado em 675 euros. A Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) foi instituída e justificada como uma medida que visou obter uma contribuição equivalente à imposta com as reduções salariais dos trabalhadores da função pública nos orçamentos de 2011, 2012 e 2013. Ora, se ambas as medidas têm a mesma finalidade – redução da despesa pública – é irrazoável que para quem está no ativo o limite tenha sido fixado em 675 euros, sendo certo que nesta situação as despesas são presumivelmente maiores, e por conseguinte maior será a necessidade de rendimentos. Não se pretende convocar o parâmetro do princípio da igualdade entre pensionistas e funcionários no ativo, mas assinalar a incongruência e a falta de equidade que existe entre o limiar de 675 euros e o objetivo da consolidação orçamental: se para os pensionistas é aceitável e tolerável que o sacrifício seja exigido apenas a partir dos 1000 euros, que justificação existe (ou foi dada) para que o mesmo sacrifício seja alargado aos 675 euros relativamente aos trabalhadores no ativo?
A nosso ver, nesta parte, as normas do artigo 33º do LOE2014 não se conformam com o princípio da proporcionalidade, o que conduz à inconstitucionalidade parcial das mesmas.
2. Quanto ao juízo de inconstitucionalidade das normas do artigo 115º da LOE 2014, que consagram uma «contribuição sobre prestações de doença e de desemprego», a minha discordância tem por ponto de partida a natureza jurídica dessa «contribuição»: enquanto a posição que fez vencimento considera que se trata de uma medida de redução de despesa, para nós, tem a natureza de tributo parafiscal.
O enquadramento dessa contribuição no âmbito das medidas de redução de despesa coloca-a em desconformidade com o princípio da proporcionalidade, quer por falta de equidade interna, uma vez que a taxa é a mesma qualquer que seja o montante do subsídio, quer pela irrazoabilidade e incoerência da taxa com objetivos visados, já que relativamente a outros tipos de reduções, como as remuneratórias e a CES, o legislador impôs taxas menores para a mesma base de incidência, considerando-as suficientes para atingir o mesmo fim. A vulnerabilidade de quem se encontra na situação de desemprego ou doença justificaria que a taxa de redução dos subsídios fosse menor do que a taxa de redução das remunerações e das pensões, independentemente da existência de uma cláusula de salvaguarda de valores mínimos.
Todavia, a recondução da contribuição ao universo da parafiscalidade, como fazemos, não permite formular qualquer juízo de inconstitucionalidade, seja por referência ao direito à segurança social (artigo 63º da CRP), seja por aplicação do princípio da proporcionalidade.
O proponente da norma, para além do mais, justifica-a do seguinte modo: «estando a ser registadas contribuições a estes beneficiários durante o período de doença ou de desemprego, a respetiva carreira contributiva está a ser completada sem que estes estejam efetivamente a contribuir. Tal implica que este período seja contabilizado para efeitos de prestações para estas ou outras eventualidades futuras, sem que tenha havido qualquer contribuição. Assim, especialmente, em momento de emergência nacional, por motivos de equidade e justiça social, entende-se adequado e proporcional que estes beneficiários vejam reduzida a sua prestação».
Efetivamente, durante o período em que é atribuído o subsídio de desemprego e o subsídio de doença os serviços de segurança social são obrigados a efetuar o registo de remunerações por equivalência à entrada de contribuições, o que permite manter os efeitos da carreira contributiva dos beneficiários com exercício de atividade que, em consequência da verificação de eventualidades protegidas pelo regime geral, deixem de receber ou vejam diminuídas as respetivas remunerações (cfr. artigo 57º, nº 2 da Lei nº 4/2007, de 16 de janeiro – Lei de Bases Gerais da Segurança Social - artigos 16º e 17º da Lei nº 110/2009, de 16 de setembro - Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social – artigo 22º do Decreto-Lei nº 28/2004, de 4 de fevereiro – Regime jurídico de proteção social na eventualidade de doença no âmbito do subsistema previdencial - artigo 80º do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3 de novembro – Regime jurídico da reparação da eventualidade de desemprego no âmbito do subsistema previdencial).
O instituto do registo de remunerações por equivalência, fundado no princípio da solidariedade, tem por objetivo fundamental evitar que os beneficiários de prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação de determinadas eventualidades, e que por isso se encontram na situação de inatividade temporária, possam ver prejudicado o direito à formação da pensão em virtude de interrupção da carreira contributiva provocada por aquelas eventualidades. Como não há entrada efetiva de contribuições para a segurança social, a lei ficciona a existência de contribuições, evitando assim que o trabalhador seja lesado nos direitos à proteção social, em especial o direito à pensão, dependentes de obrigações contributivas.
Ora, a «contribuição» prevista no artigo 115º da LOE2014, que nos termos do seu nº 5 constitui uma «receita do sistema previdencial», insere-se na lógica da contributividade, fazendo com que os beneficiários das prestações contribuam para o autofinanciamento do sistema previdencial, tendo «por base uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações» (artigo 54º da LBSS). A reversão da taxa para o IGFSS.I.P, a afetação às despesas específicas do sistema previdencial e o facto de os contribuintes serem beneficiários desse sistema, são marcas características de um tributo parafiscal. Entre a contribuição e as prestações sociais existe uma relação sinalagmática: o esforço contributivo que a taxa representa é justificado pelo benefício de proteção social que os contribuintes presumivelmente obtêm em troca, especialmente a pensão de reforma. Afigura-se-nos, pois, que o critério da fixação da taxa – 5% e 6% dos subsídios – está marcado pelo princípio da equivalência ou benefício, uma vez que fica consignada a compensar os rendimentos pedidos em consequência da verificação das eventualidades que integram o âmbito matéria do sistema previdencial.
A qualificação das taxas previstas no artigo 115º do LOE2014 como tributos parafiscais – as “contribuições financeiras” previstas na alínea i) do nº 1 do artigo 165º da CRP – afasta o juízo de inconstitucionalidade, desde logo, porque o nº 2 do artigo 63º da CRP tem implícito que o financiamento do sistema de segurança social também se faça através de contribuições dos respetivos beneficiários (princípio da contributividade), numa proporção que se inclui no âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Mas também porque aquelas taxas, sendo adequadas ao fim visado e exigíveis em atenção ao custo ou valor das prestações presumidas, não são manifestamente inadequadas e desproporcionadas para se alcançar aquele fim. Apenas se verifica que o princípio da solidariedade que suporta o registo de remunerações por equivalência, enquanto ficção da entrada da contribuição de 11% sobre a remuneração ilíquida auferida pelo trabalhador desempregado ou doente, cede parcialmente perante o princípio da contributividade expresso nas taxas de 6% e 5%. Estes coeficientes não se podem ter por excessivos porque, tendo por base de incidência o valor dos subsídios – que são calculados em 65%, na eventualidade de desemprego, e entre 55% e 75%, na eventualidade de doença, da remuneração média do trabalhador – acabam por ser inferiores ao resultado da aplicação da mesmas percentagens relativamente à quota de 11%. Repare-se que a taxa contributiva global, que atualmente é de 34,75%, integra o custo correspondente a cada uma das eventualidades cobertas pelo sistema previdencial (cfr. artigos 50º e 51º do Código Contributivo) e que, não havendo contribuições da entidade empregadora, o trabalhador desempregado ou doente apenas contribui com 6% e 5%, sendo o restante custeado pela solidariedade dos demais contribuintes.
Trata-se, pois, de uma medida compensatória, equitativa, que não atinge a substância do direito ao subsídio de desemprego e ao subsídio de doença, e por conseguinte, não está em desconformidade com o princípio da proporcionalidade.
3. Em relação à inconstitucionalidade das normas do artigo 117º da LOE2014, que impõem a aplicação de uma taxa de formação às pensões de sobrevivência, concordo com a fundamentação exposta no ponto 98 do Acórdão.
Tendo em vista o fim de redução da despesa, entendemos que não há razão justificativa para diferenciar os pensionistas que têm mais do que uma pensão daqueles que apenas têm uma pensão de sobrevivência, qualquer que seja o seu valor. Que fundamento material suficiente existe para impor a taxa de formação numa pensão de sobrevivência de 1000 euros cumulada com uma pensão de reforma de 1500 euros e excluir dessa taxa quem aufere apenas uma pensão de sobrevivência de 2500 euros? Para o fim de consolidação orçamental pelo lado da despesa, a razão da diferenciação deve assentar no valor das pensões e não num determinado número de pensões. Há, pois, desigualdade de tratamento para os mesmos valores globais de pensão.
Todavia, quanto ao fundamento da desigualdade interna, não acompanho a argumentação constante do ponto 97 do Acórdão, porque nos parece que o “valor global mensal a título de pensão” é exclusivamente considerado para determinar a taxa de formação da pensão de sobrevivência, não podendo servir de critério ou termo de comparação após se ter calculado ou recalculado a pensão com base nessa taxa. O valor da pensão de sobrevivência que intervém no cálculo do valor global mensal continua a ser apurado como base nas percentagens previstas na lei (50% para o regime de proteção social convergente e 60% ou 70% para o regime geral), valor este que naturalmente será diferente após se ter aplicado à pensão de sobrevivência as taxas de formação de pensão previstas no artigo 117º. Se há reduções diferenciadas no valor global da pensão calculado após a aplicação da taxa de formação, elas derivam do diferente valor que as demais pensões têm, cujo razão justificativa assenta em diversos elementos, como o valor das remunerações, a duração da carreira contributiva, a idade do beneficiário, etc.
Lino Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
A. Artigo 33.º da LOE 2014 - Reduções remuneratórias de quem recebe por verbas públicas
1. Votei a alínea a) da decisão, considerando inconstitucional a norma do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014).
2. Subscrevi a decisão e, no essencial, a fundamentação do Acórdão, quando este considera violado o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição. Havendo já consignado, em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 187/2013, que as reduções remuneratórias previstas na LOE 2013 eram violadoras da Constituição, não poderia deixar de subscrever o presente Acórdão quando o sacrifício agora em causa, imposto à remuneração base mensal, é ampliado relativamente a 2011, 2012 e 2013 (basta que pensemos no leque de destinatários, que foi muito ampliado, ou nas taxas de redução, que, a título de exemplo, nalguns casos passam de 3,5 % para 12%!). Na lógica da minha posição seriam, por isso, dispensáveis, os juízos comparativos do Acórdão (designadamente quando confronta o peso da redução remuneratória em 2014, com a suspensão dos subsídios considerada inconstitucional em 2013).
3. A meu ver, ao fundamento de inconstitucionalidade apontado no presente Acórdão sempre acresceriam as razões por mim anteriormente avançadas em declaração de voto ao Acórdão n.º 187/2013, relativo a disposições da LOE para 2013: o tempo decorrido desde o início da imposição do sacrifício atenua de modo decisivo o argumento (ainda atendível relativamente à LOE de 2010) da indispensabilidade das medidas de redução salarial, sistematicamente apresentadas como as únicas eficazes para obtenção de uma quantia certa e determinada num curto prazo.
Já em 2013 o Tribunal Constitucional entendeu, quanto à redução remuneratória em que se traduziu a suspensão do pagamento de subsídio de férias pelo orçamento de 2013 – embora não retirando do argumento as devidas consequências quanto às reduções remuneratórias em si mesmas – que «não servia de justificação que essa fosse ainda a única medida com efeitos seguros e imediatos na redução do défice e a única opção para garantir a prossecução do objetivo traçado».
Já no Acórdão de 2013, na mencionada declaração de voto, sustentei que volvidos três sucessivos exercícios orçamentais, o corte de remunerações, três vezes reiterado, não encontrava já respaldo na Constituição. O argumento, fundamental, do resultado imediato da solução perdera-se, e tornara-se incompreensível a invocação da imperatividade ou da natureza insubstituível da medida para a preservação da capacidade financeira do Estado, por não haver soluções alternativas, de outra natureza, através das quais se chegasse a igual valor certo.
Em 2014, encontrando-nos no 4.º ano de previsão de redução remuneratória, o decurso do tempo reforça o argumento de que se não pode continuar a invocar ser a redução (agora, ainda mais agravada) a única forma de, atuando pelo lado da despesa, e com eficácia certa e imediata, atingir os objetivos pretendidos de redução do défice.
O decurso do tempo impõe um acréscimo de exigência no sentido de serem encontradas alternativas que evitem o prolongamento da medida.
Mesmo não se considerando ultrapassada a difícil situação económica nacional, no 4.º ano consecutivo, a afetação das remunerações de quem recebe por verbas públicas não pode já dar-se por justificada – não basta que esteja preordenada à realização de legítimos objetivos orçamentais, essenciais ao reequilíbrio das contas públicas. O argumento da eficácia imediata, da indiscutível urgência e imprescindibilidade, já não são suficientes para fundamentar a indispensabilidade desta medida para a obtenção de efeitos seguros e imediatos (aliás, diferentemente do Acórdão, vejo nas medidas de agravamento fiscal em sede de IRC um sinal da existência de alternativas).
4. Não se pretende com estas considerações afirmar que ao legislador esteja vedado reduzir as prestações remuneratórias fixadas.
Admito uma intervenção limitadora – que atinja o valor dessas prestações, afetando um direito social – desde que existam razões suficientemente ponderosas para essa afetação (o que é diferente de aceitar qualquer justificação desde que não seja evidente que tal justificação não serve).
Só com uma justificação forte a contrapartida pela prestação do trabalho pode ser diminuída, e na condição de serem, ainda, observados os princípios estruturantes do Estado de Direito.
Para que se afete o direito à remuneração – aqui, no seu quantum - o legislador terá de respeitar os princípios constitucionais estruturantes, e de apresentar uma justificação robusta – que invocou, em 2010 (condições excecionais e extremamente adversas; medidas seriam indispensáveis ao reequilíbrio das contas públicas e apresentavam-se como mais eficazes do que outras, sendo o modo mais certo e rápido de obtenção da verba imediatamente necessária). Em 2010, considerando o montante e a temporalidade da medida, essa justificação foi aceite pelo Tribunal Constitucional como sendo suficientemente forte. Só aquela medida seria apta, pela urgência e necessidade de certeza.
Para que, em 2014, se ponha em causa a remuneração, voltando a sacrificar os mesmos para além do que já lhes foi imposto ao longo do tempo, tem de ser apresentada uma razão suficientemente forte.
Significa, portanto, que o legislador, quando afeta um salário fixado, não está somente limitado pelo respeito de um limiar mínimo, balizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelo direito a um mínimo de subsistência condigna.
Não se diga que a escolha das alternativas ainda cabe na liberdade do legislador, por, num juízo de evidência, não ser possível atestar que uma tal medida não é apta a atingir o seu fim, ou que não é indispensável para a sua prossecução, ou que não resulta evidente a sua desproporção.
É que, em meu entender, para que o legislador fique autorizado a afetar a remuneração não basta que não resulte evidente que uma solução que afete a remuneração não serve para o fim (legítimo) visado. Ou que não seja manifesto que a solução escolhida não é a menos restritiva para atingir a finalidade legítima, de entre as soluções igualmente eficazes para o atingir. Nem basta que não seja absolutamente claro que atendendo à gravidade do sacrifício imposto a solução seja excessiva ou desrazoável.
No caso, apesar das razões de interesse público, dignas de proteção, a medida já não respeita o princípio da proporcionalidade: ainda que a medida seja idónea (adequada) para a realização de um fim legítimo, o tempo decorrido e a exigência de encontrar outras opções (desde 2011) impunha que a ela se tivessem encontrado alternativas, deixando de se poder invocar que esta seria a única, certa e imediatamente quantificável.
Por outro lado, no caso da norma em apreciação, sempre teria de ser considerada a dureza do sacrifício imposto, não apenas nos escalões de rendimento mais baixos, mas também noutros escalões que são agora sujeitos a um esforço adicional que se acentua de modo significativo em 2014, e levando ainda em consideração o esforço acumulado (i.e., a acumulação da ablação de rendimentos sofrida ao longo dos anos). O prejuízo sofrido por estes destinatários ao longo do tempo não se limitou a estas reduções remuneratórias reiteradas: sofreram, entre outras medidas, a supressão efetiva do subsídio de férias e de Natal em 2012; foram afetados pelo aumento do horário de trabalho para 40 horas; pela redução adicional na compensação sobre o valor do pagamento do trabalho extraordinário; pela alteração das regras das ajudas de custo nas deslocações em serviço, pela proibição de valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões; pelo aumento da contribuição para a ADSE; pelo agravamento fiscal que atingiu todos os trabalhadores (reduções de escalões de IRS, aumento das taxas; imposição de uma sobretaxa de 3,5% no IRS; redução de deduções à coleta …).
Atingido tal esforço sacrificial, não pode deixar de se considerar que ainda que a solução legislativa se destine a uma finalidade reconhecidamente legítima, se tornou insuportável a reiteração das medidas, tendo-se por violado o princípio da proporcionalidade.
B. Artigo 75.º da LOE 2014 - Complementos de pensão
1. Fiquei vencida quanto à decisão de considerar não desconforme com a Constituição a norma do artigo 75.º, relativa aos complementos de pensão (alínea d) da decisão).
2. Discordei, desde logo, das considerações sobre o aspeto de regime infraconstitucional que o Acórdão elabora - para, afinal, admitir que a posição assumida é geradora de dúvidas -, discordando, ainda, da caracterização da medida.
3. Quanto à questão de constitucionalidade: o artigo 75.º da LOE 2014, ao suspender o pagamento de complementos de pensão anteriormente acordados entre as empresas e os trabalhadores, suspende, unilateralmente, disposições livremente acordadas entre as partes, impedindo, para futuro, com termo indefinido, o estabelecimento de derrogações à regra da suspensão dos complementos.
A norma não se limita a afastar a possibilidade da introdução de complementos de pensão para o futuro, suspende, igualmente, a eficácia das situações anteriormente acordadas.
Uma vez que a atribuição de tais prestações complementares resultou de instrumento de regulamentação coletiva anteriormente fixado, a disposição legal que agora as suspende viola o artigo 56.º, n.º 3, da Constituição – que garante a contratação coletiva – ao pôr em causa a contratação coletiva em si mesma. Já em ocasião anterior (Acórdão n.º 602/2013) votei (vencida) a inconstitucionalidade de norma (então, do Código de Trabalho) que determinava a suspensão da eficácia de anterior resultado de exercício de autonomia contratual coletiva, por violação associada do princípio da proteção da confiança, decorrente do artigo 2.º da Constituição, e do direito de contratação coletiva. Algumas dessas considerações são genericamente válidas no caso em apreço.
A existência de um direito à contratação coletiva com um mínimo de conteúdo útil exige que o legislador respeite as expetativas fundadas na continuidade da vinculação resultante dos instrumentos de regulamentação coletiva, pelo período convencionado, por um lado, e que, naturalmente, aqueles que os adotam possam com eles contar para a conformação da sua vida, por outro. O respeito pela contratação coletiva em si mesma considerada (e constitucionalmente prevista) obriga a que se respeitem as expetativas, dignas de tutela, que os instrumentos de regulamentação coletiva geraram.
A meu ver, independentemente da natureza das matérias em causa, ou seja, independentemente de o objeto da contratação coletiva integrar a reserva de convenção coletiva, a confiança que a contratação coletiva em si mesma pressupõe, e que é base da sua essência, condição fundamental da sua existência, sempre imporia o respeito pelos conteúdos antes negociados, até ao final dos períodos contratualmente estipulados. A confiança é, afinal, crucial ao exercício pleno da liberdade de contratação coletiva, dotando-a de sentido.
Por ser assim, o legislador não pode atingir de forma tão significativa os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho já celebrados e em vigor, sem com isso ferir de modo excessivo a confiança dos contraentes na longevidade antecipadamente fixada do instrumento de regulamentação coletiva, e, consequentemente, afetando a garantia da própria contratação coletiva. A quebra do acordo celebrado, por imposição legal, com as suas consequências lesivas, constitui uma ablação significativa da confiança nos instrumentos de regulação coletiva, frustrando a certeza que as partes haviam depositado na manutenção do acordado.
Acresce que, no caso da atribuição dos complementos de pensão, em muitas situações, os beneficiários condicionaram decisões relativas ao seu contrato de trabalho na expetativa do recebimento destes complementos. Por outro lado, os que optaram por deixar a vida ativa têm neste complemento parte da sua subsistência, em muitos casos bastante significativa. Nalgumas situações, na origem da opção de antecipação do abandono da vida ativa esteve a expetativa da receção do complemento acordado. E esta opção conduziu, relembre-se, à redução de pessoal, com a consequente vantagem da redução de despesas com pessoal por parte da empresa.
Tudo ponderado, e em associação com o princípio da proteção da confiança, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, tem-se por violada a garantia da contratação coletiva instituída pela artigo 56.º, n.º 3 da Constituição.
4. Mesmo que se sustente que, nalguns casos, a atribuição do complemento de pensões possa resultar, por exemplo, de um contrato individual de trabalho, pelo que não estaria em causa a violação da contratação coletiva, em qualquer dos casos, a alteração do quadro normativo, que contende com o anteriormente instituído, seja por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, seja por contrato individual de trabalho, sempre violaria o princípio da proporcionalidade: os benefícios que decorrem para o interesse público da aplicação desta medida tendente a alcançar a consolidação das contas públicas (a poupança obtida é de cerca de 11,3 milhões de euros) são pouco significativos quando consideramos os encargos muito pesados para os trabalhadores que são afetados no complemento de pensão. Relembre-se que quem se encontra já a receber um complemento de pensão está, na maioria das vezes, em situação irreversível, não dispondo de alternativas para refazer a sua vida do ponto de vista profissional. Por outro lado, em muitos casos, as desvantagens impostas podem chegar a níveis muito elevados do seu rendimento. Há, assim, um desequilíbrio entre o fraco benefício coletivo e as muito significativas desvantagens para os afetados, não se vislumbrando que existam razões superiores de interesse público aptas a justificar a suspensão dos complementos de pensão.
Em suma, atendendo ao diminuto contributo do valor correspondente à poupança em causa, para a prossecução do interesse coletivo, por um lado, e as legítimas expetativas dos particulares e os pesados sacrifícios que a solução acarreta, por outro, não poderíamos deixar de concluir, ao contrário da maioria, pela desproporção da solução, considerando violado o princípio da proporcionalidade.
C. Artigo 117.º - Novo regime de cálculo/recálculo das pensões de sobrevivência
1. Subscrevi a decisão de inconstitucionalidade do artigo 117.º da LOE 2014 [alínea c)] e, no essencial, a sua fundamentação ancorada na violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição.
2. Ainda assim, defendi um maior alcance da decisão, uma vez que teria acompanhado o pedido do Senhor Provedor de Justiça, dado que entendi que a violação do princípio da igualdade também ocorreria quando consideradas as alterações impostas pela norma numa perspetiva de igualdade externa.
Fi-lo por não julgar suficientemente justificada a diferenciação estabelecida entre aqueles que acumulam uma pensão de sobrevivência com outras pensões e os que acumulam uma pensão de sobrevivência com outro tipo de rendimentos (não estando estes últimos destinatários sujeitos ao recálculo do valor da pensão de sobrevivência), nomeadamente rendimentos do trabalho, ainda que os rendimentos cumulados sejam de igual valor (o que pode, por absurdo, conduzir a que alguém não veja limitada uma pensão de sobrevivência que receba enquanto está a trabalhar - porque a cumula com rendimentos do trabalho -, mas veja essa mesma pensão ser reduzida a partir do momento que opte por deixar a vida ativa).
Considero que é pedido um esforço adicional, a bem de todos, a uma categoria específica de pensionistas – os pensionistas que recebem pensões de sobrevivência -, mas, mesmo entre estes, o esforço não é pedido a todos eles. A meu ver, este tratamento diferenciado não tem uma razão material distintiva suficiente, não podendo ser justificado unicamente em razão de estarem em causa titulares de outras pensões para além da pensão de sobrevivência (n.º 7). A condição de recursos introduzida é aferida exclusivamente em atenção a um determinado rendimento mensal a título de pensão.
Sendo o objetivo da medida a sustentabilidade das finanças públicas, procurando contribuir para a consolidação orçamental (respeitante a todos), não se vê como pode justificar-se o tratamento diferenciado dos pensionistas que percebem pensões de sobrevivência e, dentro destes, apenas dos que acumulam a pensão de sobrevivência com as outras pensões do n.º 7 do artigo 117.º (LOE 2014), impondo-lhes uma amputação de parte da pensão, tanto mais que as verbas usadas para pagar aos que recebem pensão de sobrevivência e que recebem outros rendimentos são as mesmas que são utlizadas para pagar a pensão de sobrevivência aos que cumulam com outras pensões.
3. Importante para a minha posição foi, ainda, a consideração de que esta medida é mais uma medida avulsa, não globalmente pensada, nem coerente, precisamente numa matéria relativamente à qual a Constituição exige que o Estado organize um sistema de segurança social, que abranja, entre outros, os cidadãos em situação de viuvez (artigo 63.º da Constituição).
Das incoerências são prova, desde logo, entre outras, as variadas situações que conduziram a que se identificasse, no Acórdão, fundamentos de violação do princípio da igualdade quando a medida é encarada numa perspetiva interna, mas também, como referi, do ponto de vista externo.
Estamos perante mais uma alteração avulsa e assistémica, mas, ao contrário de outras, com vocação para se tornar definitiva. Ora, uma medida que pudesse intervir de forma a reduzir o montante das pensões a pagamento teria de encontrar forte apoio num conjunto sistémico de alterações estruturadas (como se exigiu no já referido Acórdão n.º 862/2013, sobre a convergência de pensões), não devendo incidir, de forma cirúrgica, apenas sobre uma categoria de pensionistas – os beneficiários de pensões de sobrevivência, e, dentro destes, não abarcando todos – sem considerar as demais situações de pensões devidas pela segurança social, e, bem assim, sem considerar o conjunto das situações dentro do próprio universo dos titulares de pensões de sobrevivência.
De novo, como antes no diploma relativo à convergência de pensões dos sistemas da Caixa Geral de Aposentações e do regime geral da segurança social, o legislador não pensou o sistema de forma integrada, na sua globalidade. Afetam-se, de modo isolado, somente algumas categorias de beneficiários, sem cuidar da sua posição relativa no sistema geral da segurança social.
Acresce que, no caso, a redução das pensões de sobrevivência, dada como permanente, não compreende, na sua configuração, a previsão da reavaliação das condições de acesso à pensão, nem prevê um mecanismo que determine a possibilidade de recalcular a pensão caso as circunstâncias pessoais do beneficiário se modifiquem. Por outro lado, a medida legislativa que acarreta o recálculo da pensão ignora, por exemplo, a concreta circunstância de cada pensionista, ou o peso real da pensão de sobrevivência na aferição do montante total do rendimento de pensões que determina o escalão de recálculo. Na verdade, aplica-se uma nova taxa de formação da pensão de sobrevivência, cuja determinação depende do valor global mensal constituído pela pensão de sobrevivência somado ao de outras pensões, percebido pelo titular. Mas o impacto do recálculo com base na nova taxa é tanto maior, quanto maior for o peso da pensão de sobrevivência no rendimento.
Convém também recordar que esta disposição afeta, fundamentalmente, os viúvos e viúvas que já não estão na vida ativa, operando uma redução imprevista no seu rendimento.
Este é um grupo de destinatários especialmente sensível ao impacto das medidas de contração das prestações a que tem direito (ainda que estejamos a falar de rendimentos totais superiores a 2000 euros), por constituírem, como já antes se escreveu em voto de vencida, um segmento da população que, na sua maioria, se encontra em especial situação de vulnerabilidade e dependência e que, por naturais razões atinentes à sua idade (e, muitas vezes, à saúde) se mostra incapaz de reorientar a sua vida em caso de alteração inesperada das circunstâncias que lhes não permita fazer face a encargos anteriormente assumidos.
Reconhece-se que o interesse público prosseguido com esta medida é digno de tutela: o legislador aponta como interesse público a redução da despesa, com o objetivo de reduzir o défice orçamental e a criação de condições para a sustentabilidade futura das finanças públicas e do sistema de pensões. Respeitados os princípios constitucionais estruturantes e apresentada uma justificação forte e razoável este poderia fundar uma afetação do valor da pensão, frustrando as expetativas de quem recebe uma pensão.
Mesmo que se admita que as expetativas do montante de pensão possam ter de ceder face a interesses públicos contrapostos de maior peso, é necessário, à semelhança do que antes se fez no diploma da convergência das pensões, aferir do ponto de vista da proporcionalidade se esta é uma afetação desproporcionada da posição de confiança. Fazê-lo não se resumirá à aceitação de que, num critério de evidência (que o Acórdão aceita), não é possível afirmar que a medida frustradora de expetativas não seja apta à finalidade, ou seja dispensável, por exemplo. A justificação para tal afetação terá, também aqui, de ser uma justificação forte.
Não pode deixar de se considerar que é excessiva a frustração de expetativas que a medida introduz, afetando uma categoria de pessoas especialmente fragilizada – agora mais ainda, pela ausência de alguém com quem a vida era partilhada, e que, na falta desta, se vê privada da sua colaboração, desde logo, na partilha de despesas e na organização da vida familiar. Por outro lado, o interesse fundamental apresentado como justificador – o reequilíbrio orçamental, em situação de emergência financeira - não pode fundar uma medida tendencialmente definitiva. E mesmo quando se invoca a sustentabilidade do sistema de pensões a longo prazo, a medida falha na revisão globalmente ponderada dos regimes de proteção social. A prossecução deste objetivo estrutural exigiria medidas integradas, dotadas de coerência.
Considerei, por isso, frágeis as razões invocadas para a imposição de uma redução de caráter permanente, não temporariamente determinada.
A ser assim, rejeito que possam ser afetadas, neste grau, as expetativas deste grupo de pensionistas, considerando também violado o princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição), afastando-me do Acórdão nesta parte.
D. A restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade (artigo 282.º, n.º 4, da Constituição)
1. Fiquei vencida quanto à alínea f) da decisão, respeitante à produção de efeitos do juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma que impõe a redução remuneratória devida no âmbito da relação de emprego público.
2. Defendo que a presente decisão de inconstitucionalidade deve valer – o que é, sublinho, a regra prevista na Constituição – desde o início da vigência da norma, não se ressalvando os efeitos jurídicos que esta tenha produzido até à decisão do Tribunal Constitucional.
Vejamos a razão pela qual considero que o Tribunal não deve limitar os efeitos, fazendo-os valer apenas para o futuro.
3. Nos termos do n.º 1 do artigo 282.º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional. No caso, ao determinar a cessação de efeitos da norma que impõe a redução salarial, a declaração de inconstitucionalidade produzirá um efeito restitutivo dos valores da redução dela resultante, considerada contrária à Constituição. I.e., como os efeitos regra previstos na Lei Fundamental são efeitos retroativos, tal significaria a reposição da totalidade do valor indevidamente não pago desde o início do ano, ou seja, desde a entrada em vigor da Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2014, na qual se inscreve a norma que impôs as reduções, agora declarada inconstitucional.
Estes efeitos regra, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, apenas por razões de segurança jurídica, razões de equidade ou de interesse público de excecional relevo, que deverá ser fundamentado, podem ser substituídos por efeitos de alcance mais restrito. Tem-se entendido que os efeitos mais restritos são efeitos temporalmente mais limitados: efeitos ex nunc, ou seja, efeitos que se produzem somente a partir da declaração de inconstitucionalidade da norma (muito embora o Tribunal Constitucional tenha considerado, em 2012, de forma inovadora e com o meu voto de vencida, que poderia determinar a suspensão de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma do orçamento até ao final do ano, havendo implicado, na prática, que esta produzisse a plenitude dos seus efeitos, apesar de haver sido declarada inconstitucional).
A meu ver, as razões apresentadas pela maioria não têm força suficiente para fundamentar o desvio aos efeitos regra. O interesse público, que não foi, afinal, suficiente para credenciar constitucionalmente a imposição das medidas de redução, continua, a meu ver, a não ser fundamento suficiente para permitir a restrição temporal de efeitos da declaração de inconstitucionalidade das normas que as sustentam, salvaguardando a poupança líquida de despesa pública já obtida pelo Estado em resultado das reduções remuneratórias (a meu ver reiteradamente) inconstitucionais, em detrimento do pesado sacrifício dos cidadãos.
Considerar o contrário, seria admitir que os sacrifícios impostos, que a maioria considerou inconstitucionais, poderiam, ainda assim, ser suportados pelos seus destinatários durante quase metade do ano. Não vejo que o interesse público invocado deva prevalecer.
Sublinhe-se que a restrição de efeitos onera em particular grupos de rendimentos especialmente sensíveis a variações, que foram sujeitos às medidas agora declaradas inconstitucionais, e que, assim, se vêem irremediavelmente impedidos de recuperar o que perderam por efeito de soluções violadoras da Constituição. Entre estes destinatários encontram-se pessoas já em situação de grande carência, como aqueles que auferem rendimentos mais baixos, designadamente os que passaram a ser afetados pela redução salarial em 2014.
4. É possível sustentar-se que é bastante elevado o valor resultante da reposição em causa, já que, com os efeitos regra se determinaria a devolução de toda a redução remuneratória, incluindo, até, uma parte da redução salarial que, anteriormente, este Tribunal não considerou inconstitucional.
Embora reconhecendo que o Tribunal não censurou, no passado, a redução remuneratória anteriormente imposta (tendo eu ficado vencida no Acórdão n.º 187/2013) – pelo que seria possível sustentar-se que, nessa parte, os efeitos da norma deveriam ser salvos – não deixa de ser muito duvidoso que a Constituição, no n.º 4 do artigo 282.º, admita uma modelação, não apenas temporal, mas também do próprio conteúdo que permita salvar apenas parte da redução remuneratória, até ao valor antes não censurado, já que, na verdade, a norma agora declarada inconstitucional não repristina, a meu ver, a norma anteriormente em vigor (que era orçamental, tendo de ser renovada em cada ano). A norma aplicada no ano anterior – que a maioria não censurou em 2013 -, não é, sequer, parcialmente sobreponível com a que agora se declara inconstitucional: varia nas taxas de redução aplicadas; varia nos intervalos mínimos e máximos fixados; atinge um universo não completamente coincidente de destinatários quando consideramos as anteriores normas de redução remuneratória.
Não vejo que o Tribunal deva utilizar a modelação de efeitos temporais ao seu alcance para colmatar uma possibilidade que a Constituição lhe nega, que é a de estratificar a decisão.
Sublinhe-se que a construção da norma foi uma opção do legislador – concentrou numa só norma a redução remuneratória, sem distinguir segmentos – e é esta opção legislativa que determina que a decisão de inconstitucionalidade recaia sobre a norma assim concebida.
5. Relembre-se, por outro lado, que, quando o Tribunal, em 2013 (Acórdão n.º 187/2013), declarou a inconstitucionalidade da suspensão total ou parcialmente do pagamento do subsídio de férias ou equivalente – estando em causa uma medida que atingia dois grupos de destinatários (pensionistas e trabalhadores que auferem por verbas públicas), e não, como agora, apenas os trabalhadores no ativo, o Tribunal não decidiu no sentido da limitação temporal de efeitos, deixando a norma de vigorar desde o início da sua vigência.
6. Acrescente-se que defender a produção de efeitos regra da decisão de inconstitucionalidade é, aliás, o que mais sentido fará para aqueles que consideraram, anteriormente, a inconstitucionalidade das reduções remuneratórias. Quem entendeu já, quanto ao OE 2013, que era inconstitucional proceder a reduções remuneratórias (entendendo, assim, que em 2013 não deveriam já ter vigorado), sustentará, em coerência, por maioria de razão, que as reduções (que já não deveriam ter vigorado e que são agora mais gravosas) não possam, em 2014, produzir efeitos até à data da presente decisão do Tribunal.
7. Entendo, por fim, que este Tribunal não pode, reiteradamente, e incoerentemente, afastar os efeitos regra, permitindo, sistematicamente, e ao contrário daquela que é a solução constitucional normal, que normas inconstitucionais produzam efeitos.
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido quanto à declaração de não inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que suspenderam o pagamento de complementos de pensões nas empresas do setor público empresarial que tenham apresentado resultados líquidos negativos nos três últimos exercícios, por entender que tal medida viola o direito à contratação coletiva estabelecido no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição, e o princípio da proteção da confiança inerente ao modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da Constituição.
O referido artigo 75.º determina a suspensão de normas constantes de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho que se encontram em vigor, impondo uma ineficácia temporária destas normas, cuja cessação fica condicionada à ocorrência de um determinado facto futuro – três anos consecutivos de resultados líquidos positivos nas empresas afetadas.
Essas normas respeitam à atribuição de complementos de pensão dos sistemas de proteção social.
Se, por um lado, é verdade que não estamos perante uma matéria que integre a reserva da convenção coletiva, por outro lado, atenta a sua conexão imediata com os direitos dos trabalhadores à segurança económica na velhice, ela é naturalmente vocacionada para ser objeto de negociação coletiva, não existindo qualquer disposição legal que proíba a sua contratualização.
As normas suspensivas do pagamento dos suplementos livremente acordados constituem, pois, numa intromissão na eficácia do conteúdo do que foi livremente contratualizado.
Essa intromissão constitui uma restrição à eficácia do exercício do direito à contratação coletiva a que preside um interesse público (diminuição das despesas das empresas que integram o setor empresarial do Estado, com a consequente diminuição do montante das transferências de verbas do Orçamento Geral do Estado para estas empresas) que não é capaz de justificar tal restrição, num juízo estrito de proporcionalidade, atento o nível particularmente intenso da confiança depositada na eficácia do contratado e o grau elevado das consequências lesivas da frustração do investimento nessa confiança.
Na verdade, os atingidos pela medida em análise tomaram decisões irreversíveis que definiram os dias do resto das suas vidas, em função do contratualizado, pelo que o objetivo de obter uma poupança orçamental não pode justificar a frustração de tais expectativas.
Tal desproporção resulta, simultaneamente, numa restrição inadmissível ao direito à contratação coletiva e numa violação do princípio da confiança inerente a um Estado de direito democrático.
2. Fiquei também vencido quanto à restrição de efeitos da declaração de inconstitucionalidade do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, por entender que o facto do Tribunal em acórdãos anteriores ter admitido o corte de salários estabelecido no artigo 19.º, da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (entre 3,5% a 10%, a partir de € 1.500,00), apenas justificava que procedesse a uma limitação parcial desses efeitos, que abrangesse somente esse segmento ideal das normas constantes do referido artigo 33.º, e não a estendesse, como o fez, a todo o conteúdo das normas.
Fora do âmbito desse segmento ideal, os interesses das pessoas afetadas por uma intervenção ilegítima do legislador, designadamente aqueles que auferem baixos salários e aqueles que viram desmesuradamente agravado o corte dos seus vencimentos, deveriam ter sido salvaguardados, valendo aí a regra geral da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, consagrada no artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, que obrigasse à reposição da parte dos salários que foi ilegitimamente retirada ao abrigo de uma norma ferida de inconstitucionalidade.
Só assim se faria uma justa composição entre os interesses públicos invocados no acórdão e os interesses particulares afetados.
3. No que respeita aos fundamentos da declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, entendo que os vícios da mesma não se reduzem à violação duma exigência de igualdade entre os afetados pela nova fórmula de cálculo das pensões de sobrevivência aplicada a quem cumula pensões.
Na verdade, tais normas também violam o princípio da proteção da confiança inerente ao modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, e o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que apenas afetam aqueles que cumulam a pensão de sobrevivência com outra pensão.
A opção do legislador de apenas determinar a aplicação da nova fórmula de cálculo das pensões de sobrevivência a quem também receba outras pensões não foi minimamente fundamentada, não se vislumbrando qualquer razão que a justifique, pelo que tal medida, ao intervir de forma perfeitamente assistemática e avulsa no regime de pensões, revela-se incapaz, pelas razões que o Tribunal já enunciou no Acórdão n.º 862/2013, de justificar a violação das legítimas expectativas de quem já aufere essas pensões, violando o princípio da confiança inerente a um Estado de direito democrático.
Além disso, a diferença instituída entre quem cumula uma pensão de sobrevivência com outras pensões e quem a aufere como rendimento único ou a cumula com outro tipo de rendimentos é arbitrária, por que não tem a justificá-la um fundamento racionalmente inteligível, sobrecarregando gratuita e injustificadamente uma parte do universo das pessoas que aufere pensões de sobrevivência, violando também nesta dimensão externa o princípio da igualdade.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
A) Divergi parcialmente da decisão expressa na alínea a) da Decisão do presente Acórdão no que respeita às normas do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Redução remuneratória), pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
O artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, consagra uma medida de redução remuneratória – redução das remunerações totais ilíquidas mensais – aplicável aos «titulares dos cargos e demais pessoal» identificados no n.º 9 da mesma disposição, pagos por verbas públicas. Esta medida de redução remuneratória, na sua configuração, afasta-se das correspondentes medidas previstas nos Orçamentos de Estado para os anos de 2011, 2012 e 2103 (artigos 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, 20.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro e 27.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro), em razão de três aspetos essenciais: o abaixamento do valor do limiar a partir do qual as remunerações ficam sujeitas a redução (675 euros, em vez de 1500 euros); a alteração dos limites mínimo e máximo do coeficiente de redução (2,5% e 12% em vez de 3,5% e 10%); e o abaixamento do valor do limiar a partir do qual é aplicável o coeficiente máximo de redução (2000 euros em vez 4150 euros).
O presente Acórdão parte, na apreciação da questão de constitucionalidade, do critério de apreciação que enunciou e aplicou nos Acórdãos n.º 396/2011, n.º 353/2012, e n.º 187/2013, o qual respeita, por um lado, à existência de um fundamento para a diferenciação – daqueles que recebem remunerações e pensões pagas por verbas públicas – e, por outro lado, à medida dessa diferença.
Para tal, convoca o princípio da igualdade proporcional, aferindo, face à nova configuração da medida de redução remuneratória, o esforço adicionalmente exigido aos trabalhadores do setor público por confronto quer com o esforço exigido pela anterior modelação das medidas de redução remuneratória, quer com o cúmulo destas com as medidas de suspensão, total ou parcial, do pagamento dos subsídios de férias e de Natal (Orçamento de Estado para 2012) ou apenas do subsídio de férias ou 14.º mês (Orçamento de Estado para 2013). E, na senda do postulado resultante da jurisprudência anterior, em especial no Acórdão n.º 187/2013 (segundo o qual «ao legislador não se encontra vedada a opção de, na prossecução do interesse público na consolidação orçamental, diferenciar, a título excecional e temporário, aqueles que auferem remunerações do Orçamento do Estado, mas a medida da diferenciação que em tal contexto seja imposta terá que ser proporcional ao fim visado e sensível à dimensão de igualdade»), conclui, sendo de manter os critérios definidos pelo Acórdão n.º 187/2013, que a redução estabelecida não constitui, quando globalmente considerada, uma versão relevantemente atenuada da desigualdade gerada por via da associação da suspensão total ou parcial do pagamento do subsídio de férias (Orçamento de Estado para 2013) e, assim, que a «medida da diferenciação» inerente à configuração da medida, ainda que desacompanhada de qualquer afetação dos subsídios, se afigura excessiva e constitucionalmente ilícita perante o princípio da justa repartição dos encargos públicos – conclusão que se afigura particularmente evidente em relação ao segmento de remunerações base de valor compreendido entre 675 e 1.500 euros.
Entende-se que, no contexto de aprovação do Orçamento de Estado para 2014, ainda de excecionalidade económico-financeira, subsistem as razões de interesse público, inerentes desde logo à «Estratégia de consolidação orçamental» determinada pelas obrigações específicas assumidas pelo Estado português ao nível internacional (Fundo Monetário Internacional) e da União Europeia, por via do Programa de Assistência Económica e Financeira (e também pelos Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica e do Memorando de Políticas Económicas e Financeiras acordados, respetivamente, com a Comissão Europeia e o FMI) que podem ainda justificar a diferença de tratamento daqueles que auferem rendimentos pagos por verbas públicas que, por essa razão, podem ser chamados a suportar um esforço adicional face ao imperativo de adoção de medidas de redução de despesa que concorram para o cumprimento daquelas obrigações, em especial quanto ao valor, mais exigente, fixado para o défice orçamental para 2014. Acresce que, não obstante o termo formal do Programa de Assistência Económica e Financeira, no contexto de aprovação do Orçamento de Estado para 2014, existem ainda outras razões de interesse público que podem justificar aquela diferença – quer em geral as atinentes ao cumprimento das obrigações que decorrem do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia no quadro da política económica e também do Pacto de Estabilidade e Crescimento, quer em especial as decorrentes das imposições do procedimento por défices excessivos em curso (cfr. as Recomendações do Conselho de 16/06/2013 com vista ao termo da situação de défice excessivo que impõe que seja posto termo à situação de défice excessivo em 2015 e um valor de 2,5% para o défice no mesmo ano), quer ainda as razões decorrentes das obrigações mais estritas assumidas pelo Estado português por via da entrada em vigor, em 1 de janeiro de 2013, do Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação Económica na União Europeia de 2 de março de 2012 (DR, 1.ª Série, n.º 127, de 3/7/2012 e Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, com a redação da Lei n.º 37/2013, de 14 de junho, que a republicou)).
O controlo constitucional agora convocado para as normas constantes do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que aprova o orçamento de Estado para o ano de 2014, não pode contudo deixar de ponderar, por um lado, aquele interesse público e, por outro lado, a previsão de outras medidas que, embora sem alcance universal, contribuem de algum modo para a repartição diversa dos encargos públicos. Por isso se entende que, não obstante a medida de redução remuneratória, na sua nova configuração, impor na sua globalidade, face à configuração das anteriores medidas de redução remuneratória, um esforço acrescido aos que auferem remunerações por verbas públicas – e, em especial, ao segmento intermédio mais afetado pelo abaixamento do limiar remuneratório de aplicação do coeficiente máximo de redução – não se verifica de forma evidente a desigualdade de tratamento na repartição dos encargos públicos que justifique um juízo de inconstitucionalidade por se encontrarem ultrapassados os limites do sacrifício.
Assim, e sendo certo que, com a medida de redução remuneratória reconfigurada, os trabalhadores que auferem por verbas públicas se mostram mais onerados na distribuição dos encargos públicos, por comparação com os trabalhadores que não recebem por verbas públicas, a diferença de tratamento, fundamentada na diferença de posições dos abrangidos e dos excluídos da medida em causa, não se afigura excessiva e desproporcionada, enquanto expressão de uma medida ainda excecional e (como se assume no Relatório do Orçamento de Estado para 2014) com caráter transitório, não definitiva, justificada em face do interesse público de contenção da despesa pública e de redução do défice para tanto invocado – de modo a que este se venha a conter nos limites do défice admissível à luz das obrigações decorrentes do Direito da União Europeia.
Não obstante subsiste, em nosso entender, uma questão que deve ser apreciada, não na perspetiva da medida da diferença entre os destinatários das medidas em causa e os demais cidadãos, mas na perspetiva dos efeitos da medida dentro do universo dos seus destinatários.
Com efeito, na sua formulação reconfigurada face ao desenho da medida, também de redução remuneratória, constante das normas dos Orçamentos de Estado de anos anteriores – e como se revela evidente por aplicação do n.º 1, primeira parte, do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro – a medida de «redução remuneratória» prevista naquele artigo 33.º abrange trabalhadores do setor público pagos por verbas públicas que auferem menores rendimentos, já que o limiar de aplicação da mesma se situa, agora, em 675 euros mensais, estando este limite não muito longe do mínimo de existência em termos de rendimento líquido de imposto previsto no n.º 1 do artigo 70.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
Ora merecerá especial tutela a situação daqueles que, auferindo retribuições mais baixas, ainda são abrangidos pela medida em análise. A medida deve ser apreciada tendo em conta a remuneração anual no seu todo considerada e o impacto sobre a capacidade de fazer face à subsistência, a práticas vivenciais em razão do agregado familiar compatíveis com uma existência condigna e autónoma e a encargos e compromissos assumidos. Não se afigura desrazoável supor que no segmento de rendimentos que constitui o limiar de aplicação da medida em causa (675 euros mensais) – e também nos segmentos que deste estejam próximos que não eram afetados pelas anteriores medidas de redução remuneratória – o rendimento disponível para fazer face a onerações de rendimento justificadas por motivos de interesse público seja muito diminuto ou mesmo inexistente, por todo o rendimento ser alocado à satisfação de necessidades essenciais inerentes à existência e a compromissos básicos que concorram para essa existência, como o custo da habitação, da alimentação, da saúde e dos transporte – e outros custos, designadamente os derivados de outros direitos fundamentais como o direito à educação ou o acesso à cultura. Com efeito, e de acordo com os dados do Inquérito às Despesas das Famílias 2010/2011 elaborado pelo Instituto Nacional de Estatística (disponível em https://www.ine.pt), a despesa total média de um agregado (sem crianças dependentes) composto por dois adultos não idosos cifra-se em 19946 euros, a que corresponde uma despesa média mensal de 1662 euros e de 831 euros per capita (cfr. 2.12) – e de um agregado composto por um adulto não idoso em 13789 euros, a que corresponde uma despesa média mensal de 1149 euros - muito superiores ao limiar de aplicação da medida remuneratória.
Por essa razão, e considerando a intensidade, acrescida, das consequências da medida de redução remuneratória no que respeita aos segmentos em causa acima identificados, com rendimentos provenientes do trabalho menos elevados, a medida representa, face aos fins de interesse público por elas visados, um sacrifício que ultrapassará os limites de exigibilidade requeridos pelo princípio da proporcionalidade, afigurando-se desrazoável na sua dimensão subjetiva por o sacrifício exigido ao segmento em causa assumir uma intensidade acrescida.
Neste sentido, mostrar-se-á desrespeitado o princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que nos pronunciámos no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, mas apenas na parte em que fixa o limiar de aplicação da medida de redução remuneratória num valor de remuneração total ilíquida mensal de 675 euros.
B) Divergi quanto à decisão expressa na alínea b) da Decisão do presente Acórdão no que respeita às normas do artigo 115.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Contribuição sobre prestações de doença e de desemprego), pelas razões essenciais que de seguida se explicitam.
O presente Acórdão, na apreciação da questão de constitucionalidade, considera que as normas do artigo 115.º em causa violam o princípio da proporcionalidade já que, não obstante a consagração, pelo n.º 2, de uma garantia do valor mínimo das prestações – garantia inexistente na correspondente norma inserida no Orçamento de Estado para 2013 e declarada inconstitucional pelo Acórdão n.º 187/2013 –, a medida aí contida de aplicação das contribuições sobre as prestações de desemprego e de doença, por afetar os que, encontrando-se naquelas situações de especial vulnerabilidade, auferem prestações de menor valor, se afigura desrazoável.
Entende-se todavia que o fundamento da inconstitucionalidade decorrente do Acórdão n.º 187/2013, atinente à violação do princípio da proporcionalidade, que acompanhámos, foi de algum modo ultrapassado – não obstante subsistir uma afetação de rendimentos daqueles que se encontram numa situação de especial vulnerabilidade por se encontrarem numa situação de desemprego ou de doença – pela previsão, no n.º 2 do artigo 115.º, de uma «garantia do valor mínimo das prestações» correspondente ao valor mínimo das mesmas fixado nos termos previstos nos respetivos regimes jurídicos. Tal garantia poderá em certa medida corresponder – tendo em conta a menor amplitude dos rendimentos envolvidos sujeitos à contribuição prevista no n.º 1 do artigo, em especial no caso do subsídio de desemprego cujos limites mínimo e máximo são fixados por referência ao valor do Indexante dos Apoios Sociais –, do ponto de vista da sua função, ao limiar de aplicação das medidas de redução remuneratória e de aplicação da contribuição extraordinária de solidariedade também consagradas na Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
Atendendo ao que ficou exposto a nossa pronúncia foi no sentido da não inconstitucionalidade das normas do artigo 115.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
C) Acompanha-se a decisão expressa na alínea c) da Decisão do presente Acórdão no que respeita às normas do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Pensões de sobrevivência dos cônjuges e ex-cônjuges), nos termos que de seguida se explicitam.
No que respeita à apreciação da violação do princípio da igualdade, acompanhamos o sentido da decisão e a fundamentação do Acórdão na parte em que aí se entende ser no parâmetro da igualdade, na sua vertente interna, devido aos efeitos dentro do grupo de destinatários afetados pela medida, que reside o fundamento da sua desconformidade constitucional.
No que respeita à apreciação da violação do princípio da proteção da confiança entende-se, em qualquer caso, que as pensões de sobrevivência têm idêntica dignidade constitucional face às outras pensões diretamente substitutivas de rendimentos de trabalho (cfr. artigo 63.º, n.º 3, da Constituição), não obstante a configuração daquelas pelo legislador, implicar, em especial, que as mesmas não têm sempre caráter vitalício, nem ficam imunes à alteração do seu montante por virtude das particularidades do respetivo regime.
D) Acompanha-se a decisão expressa na alínea d) da Decisão do presente Acórdão no que respeita às normas do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Complementos de pensão), nos termos que de seguida se explicitam.
Quanto à apreciação da violação do direito de contratação coletiva, alcançamos a conclusão formulada, mas não acolhemos os fundamentos para tanto invocados. Ainda que se admita que a matéria em causa – complementos de pensões – não integra o núcleo essencial da reserva de contratação coletiva, tal como configurada pela jurisprudência deste Tribunal, a mesma não deixa só por isso de poder beneficiar do âmbito de proteção do direito de contratação coletiva tal como decorre do artigo 56.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Além disso, não se nos afigura evidente que do teor do artigo 478.º, n.º 2, do Código de Trabalho, articulado com o disposto na Lei de Bases da Segurança Social em matéria de regimes complementares de iniciativa coletiva e individual (artigo 83.º e seguintes da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 83-A/2013, de 30 de dezembro), resulte que a matéria em causa não possa integrar o sistema complementar na vertente regimes complementares de iniciativa coletiva – assentes na partilha de responsabilidades sociais (cfr. artigo 81.º, n.º 2) – os quais, se incluem os regimes profissionais complementares (cfr. artigo 83.º, n.º 2 e Decreto-Lei n.º 225/89, de 6 de julho), a estes não se confinam necessariamente (cfr. artigo 83.º, n.º 1) – e que, por essa via, fique fora do âmbito da previsão daquela disposição do Código do Trabalho.
Ora as normas do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, objeto de apreciação afetam o exercício concreto, já ocorrido, do direito fundamental de contratação coletiva, ao determinar a suspensão do pagamento, verificados certos requisitos, de complementos de pensões objeto de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e, assim, determinando uma conformação externa e a posteriori do conteúdo das convenções coletivas afetadas.
Contudo, entende-se que tal ingerência assim operada no conteúdo do direito de contratação coletiva já exercido não se afigura excessiva à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, face à prevalência dos objetivos de interesse público a prosseguir aliada quer ao facto de o domínio em causa – complementos de pensões (a cargo de empresas do setor público empresarial) – não estar incluído na reserva de contratação coletiva, quer à configuração da medida como medida de mera suspensão (e não eliminação), ainda que determinada pelo preenchimento de requisitos relativos ao resultado líquido do exercício das empresas abrangidas e, ainda, à previsão de uma cláusula de garantia da perceção de um valor mínimo de 600 euros mensais (cfr. artigo 75.º, n.º 4).
Quanto à apreciação da violação do princípio da confiança, entende-se que se afigura suficiente a análise do primeiro teste de aplicação do princípio da tutela da confiança para alcançar a conclusão da sua não violação, por o mesmo não se encontrar preenchido e serem cumulativos os requisitos ou testes de que depende a tutela da situação de confiança.
Maria José Rangel Mesquita
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido quanto às alíneas a), b) e c) da decisão, pelas razões a seguir indicadas.
§ 1.º - Quanto à alínea a) da decisão: redução remuneratória (artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro – LOE para 2014)
1.1. No Acórdão – maxime nos seus n.os 20 e 21 e 29 e 30 - reconhece-se que a redução das remunerações mensais prevista no artigo 33.º da LOE para 2014 se integra numa estratégia que já não se reconduz ao simples cumprimento do PAEF, nomeadamente por tal medida, segundo as palavras do Relatório do OE para 2014, procurar “dirimir uma inadequada política de rendimentos na Administração Pública”, através da correção do “padrão de iniquidade” considerado existir entre o público e o privado e, outrossim, por a mesma medida se inscrever agora no âmbito do “processo de revisão estrutural da despesa”. Por outro lado, o citado Relatório refere não só que o “ano de 2014 será um ano de transição entre o Programa de Ajustamento Económico [o PAEF] e o novo enquadramento orçamental a que estão sujeitos os países da União Europeia e, mais especificamente, os países da área do euro”, como também que, “paralelamente ao Programa [– isto é: o PAEF –], Portugal [se] encontra sujeito a um procedimento de défice excessivo” (v. pág. 38).
Estes novos dados – que, justamente por serem novos, não foram (nem podiam ter sido) considerados nas avaliações realizadas pelos Acórdãos n.os 396/2011, 353/2012 e 187/213 – “rompem o horizonte temporal definido a partir do período de vigência do PAEF” e impõem tanto a reponderação da perspetiva de atuação do legislador orçamental – reforçando especialmente a vertente do Estado-empregador –, como a consideração da nova definição dada ao interesse público prosseguido mediante a redução das remunerações de quem é pago por verbas públicas – o interesse público visado no artigo 33.º já não é apenas a consolidação das contas públicas no curto prazo; a medida plasmada nesse preceito integra-se numa trajetória de médio ou longo prazo.
Contudo, o caminho seguido no presente Acórdão foi o da continuidade, relativamente ao decidido nos três anos anteriores, como se neste momento o mais importante ainda fosse o PAEF e os objetivos do artigo 33.º em análise se pudessem reconduzir simplesmente aos das normas de redução remuneratória previstas nos Orçamentos do Estado para 2011, 2012 e 2013:
« Embora nos encontremos já no limite desse programa, o certo é que estamos em face de uma medida que, sem prejuízo da sua anunciada integração em objetivos mais amplos – cuja eventual concretização normativa futura poderá, a seu tempo, ser apreciada – se dirige ainda, em termos imediatos, e em linha com as anteriores, à viabilização do cumprimento das metas orçamentais definidas no PAEF para o ano de 2014» (n.º 21)
« Apesar do mais amplo enquadramento fundamentador que agora é dado à redução remuneratória imposta aos trabalhadores do setor público, é patente que a opção persiste relacionada, em termos diretos e imediatos, com a prossecução do mesmo interesse público que conduziu à adoção das medidas congéneres previstas nas Leis n.ºs 55-A/2010, 64-B/2011 e 66-B/2012, isto é, com a “consecução de fins de redução da despesa pública e de correção de um excessivo desequilíbrio orçamental” (acórdão n.º 396/2011), de acordo com um plano, plurianual mas temporalmente delimitado, definido a partir o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro, o qual se estende ainda ao exercício orçamental de 2014 […].
[…]
[À] luz, quer do enquadramento objetivo que continua a resultar do PAEF, quer dos termos em que se encontra uma vez mais normativamente concretizada, a redução remuneratória imposta para 2014 aos trabalhadores do setor público (apenas) permite que nela continue a reconhecer-se uma medida transitória, instrumentalmente preordenada “à realização de objetivos orçamentais essenciais ao reequilíbrio das contas públicas, num contexto de particular excecionalidade” […] (acórdão n.º 187/2013).
Apesar de politicamente subjacente, a perspetiva mais ampla seguida pelo legislador de 2013 não encontra nos preceitos orçamentais sob sindicância expressão normativa que justifique – ou até mesmo autorize – a reconfiguração do campo de ponderação em que o Tribunal consecutivamente situou a apreciação das medidas de afetação salarial introduzidas em exercícios orçamentais condicionados pelo cumprimento das obrigações estabelecidos no PAEF […]» (n.º 30)
Ora, como o Tribunal referiu no Acórdão n.º 396/2011, a resposta à questão de saber se as reduções remuneratórias operam a título definitivo ou a título meramente transitório constitui “um muito relevante fator de valoração, atuante transversalmente em todos os campos problemáticos de aplicação dos parâmetros constitucionais” invocados para a apreciação da constitucionalidade das mesmas reduções.
O argumento fundamental em que se baseia a perspetiva de continuidade acolhida no presente Acórdão é o de uma alegada «falta de tradução ou concretização normativa» dos novos dados, em especial no artigo 33.º da LOE para 2014; aliás, nesse artigo estabelece-se expressamente em relação às reduções remuneratórias nele previstas um período de duração correspondente ao ano de 2014 (cfr. o respetivo n.º 1: “durante o ano de 2014”).
Sucede que o elemento literal não deve ser o único a relevar na interpretação do artigo em causa.
Com efeito, para a determinação da sua teleologia concorrem, além das referências constantes do Relatório do OE para 2014 anteriormente mencionadas, e bem assim aquelas que são feitas no próprio Acórdão, a vontade expressa manifestada pelo proponente da norma nas págs. 49 e 50 do mesmo Relatório, no sentido de, para 2014, substituir a redução remuneratória que vigorou entre 2011 e 2013 por uma medida de redução com limiares e taxas diferentes destinada a atingir objetivos igualmente diferentes. Ou seja, a medida apreciada nos arestos referentes aos Orçamentos do Estado dos anos anteriores, não obstante a identidade da denominação, é diferente na sua estrutura e teleologia daquela que agora está em apreciação.
Também não é a ausência de uma «reforma sistemática» da política de remunerações dos trabalhadores das Administrações Públicas na LOE para 2014 que constitui obstáculo a divisar-se na redução remuneratória consagrada no artigo 33.º desta Lei um sentido estratégico perfeitamente definido e consonante com o programa reformador anunciado no Relatório do OE para 2014, págs. 49 e 50. De resto, tal política remuneratória, por natureza, é parte integrante da política orçamental, pelo que o sentido estratégico desta não pode deixar de ter repercussões naquela.
Acresce que, com incidência autónoma e específica no plano normativo, não podem igualmente ser desconsiderados novos dados que impõem um reenquadramento da medida de redução remuneratória aplicável em 2014.
Em primeiro lugar, o início de vigência em 1 de janeiro de 2013 do Pacto Orçamental, correspondente aos artigos 3.º a 8.º do Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (cfr. o respetivo artigo 14.º, n.º 2, e o Decreto do Presidente da República n.º 98/2012, de 3 de julho).
E, em segundo lugar, a Lei n.º 37/2013, de 14 de junho, que na sequência do artigo 3.º, n.º 2, daquele Pacto, veio introduzir alterações relevantíssimas na Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto), como, por exemplo, os princípios da estabilidade orçamental (artigo 10.º-A) e da sustentabilidade (artigo 10.º-D) ou as regras do limite da dívida pública (artigo 10.º-G) e do saldo orçamental estrutural (artigo 12.º-C).
Era no âmbito deste novo quadro normativo que as aludidas justificações constantes do Relatório do OE para 2014 sobre a redução remuneratória plasmada no artigo 33.º da LOE para 2014 deviam ter sido ponderadas e fixado o sentido e alcance deste mesmo preceito. Procedendo desse modo, facilmente se chegaria à conclusão que os interesses públicos prosseguidos pelo citado artigo 33.º não se esgotam no PAEF – aliás, estão agora presentes novos interesses públicos – e que todas as ponderações feitas em Acórdãos anteriores relativamente às reduções remuneratórias não são transponíveis, sem mais, para o caso sujeito. O termo do PAEF não é um «ponto de chegada», mas antes simples «estação» num caminho (longo) em direção à situação orçamental sustentável. E, até lá, a liberdade conformadora do legislador orçamental encontra-se – ou continua – fortemente limitada.
1.2. Em qualquer caso, a abordagem do artigo 33.º da LOE para 2014 a partir do que foi decidido anteriormente sobre medidas de redução remuneratória, sem refazer todo o processo de ponderação, abstraindo do seu específico programa normativo e da integração de novos dados no domínio da norma, e sem reanalisar a própria realidade constitucional – que neste âmbito económico-social é reconhecidamente dinâmica – afigura-se inadequada como base para a apreciação da sua constitucionalidade.
Em especial, este novo contexto factual e normativo, para lá de obstar a uma aferição da medida da diferença constitucionalmente tolerada em função do decidido em anos anteriores (cfr. os n.os 34 e 35 e, sobretudo, 38 a 43, todos do presente Acórdão), também não permite mais continuar a perspetivar as reduções remuneratórias dirigidas a quem recebe por verbas públicas em termos de «encargo público» ou como equivalente funcional de medidas tributárias. O fim precípuo do legislador é mesmo a reforma, reestruturação e redução da despesa pública, considerada excessiva, pelo que o recurso à via fiscal não constitui na ótica do interesse público em causa uma solução alternativa (cfr. o Relatório do OE para 2014, pág. 42 e seguintes).
1.3. Acresce que, ainda que se pudesse continuar a considerar existir na solução do artigo 33.º da LOE para 2014 uma diferenciação relevante à luz do princípio da igualdade entre trabalhadores pagos por verbas públicas e aqueles que o não são – e, pelo anteriormente exposto, julgo que tal já não sucederá –, a verdade é que a desconsideração ou subvalorização do referido contexto – que vai muito para além do “plano da execução orçamental relativa ao ano de 2014” – inquinaria sempre a análise da relação meio fim (também referida como “dimensão interna do princípio da igualdade”) realizada (cfr. os n.os 44 e 45 do presente Acórdão). E, de todo o modo, no tocante à aferição da “medida da diferença” (cfr. o n.º 46 do presente Acórdão), subsistiriam igualmente as objeções já formuladas na declaração de voto conjunta aposta ao Acórdão n.º 187/2013, em especial nos seus n.os 5 e 6.
§ 2.º - Quanto à alínea b) da decisão: contribuição sobre prestações de doença e desemprego (artigo 115.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro – LOE para 2014)
2. Pelas razões constantes da minha declaração de voto individual junta ao Acórdão n.º 187/2013, na parte relativa ao artigo 117.º da LOE para 2013, entendo que o artigo 115.º da LOE para 2014 não viola o princípio da proporcionalidade em qualquer uma das suas dimensões. Tais razões, de resto, valem por maioria de razão face à introdução pelo legislador de uma cláusula de salvaguarda, tal como exigido no citado Acórdão, representando a decisão agora adotada não apenas uma inflexão face ao decidido em 2013, como um verdadeiro reexame da solução adotada pelo legislador democrático.
2.1. Em primeiro lugar, cumpre recordar que em 2013, na apreciação do artigo homólogo daquele que agora está em análise – o artigo 117.º da LOE para 2013, que, excetuando a cláusula de salvaguarda, é «reeditado» por via do artigo 115.º da LOE para 2014 – foi o próprio Tribunal quem convocou o princípio da proporcionalidade como parâmetro constitucional, e não os requerentes. Nessa altura, o Tribunal considerou as dimensões deste princípio que entendeu relevantes, sendo que todos os aspetos que conduziram no presente Acórdão ao juízo positivo de inconstitucionalidade também já então se encontravam presentes na solução legislativa sub iudicio.
Em segundo lugar, as apreciações realizadas no Acórdão n.º 187/2013 – à luz do princípio da proporcionalidade (n.º 94) e da garantia da existência condigna (n.º 95) – respeitaram exclusivamente à seguinte solução ou opção legislativa (n.º 93):
“ [A] ausência de uma qualquer cláusula de salvaguarda que impeça que os montantes pecuniários correspondentes aos subsídios de doença e de desemprego, por força da dedução agora prevista [no artigo 117.º], possam ficar abaixo do limite mínimo que o legislador fixou, em geral, para o conteúdo da prestação devida para qualquer uma das duas situações.
[…]
Não está, por conseguinte, excluído que a contribuição sobre subsídios de doença e desemprego, implicando, na prática, uma redução dos montantes pecuniários a que os beneficiários têm direito, venha a determinar que a prestação a auferir fique, em certos casos, aquém do nível mínimo que foi já objeto de concretização legislativa e que se encontra sedimentado por referência a uma certa percentagem da retribuição mínima mensal, no caso do subsídio por doença, ou ao indexante dos apoios sociais, no caso do subsídio de desemprego” (itálicos aditado)
Mais: a «desrazoabilidade» imputada a tal solução em 2013, conforme decorre inequivocamente dos parágrafos primeiro e terceiro do n.º 94 do Acórdão n.º 187/2013, e é corrente na jurisprudência deste Tribunal (v., por exemplo, o Acórdão n.º 159/2007), é aquela que surge associada ao excesso ou à ausência de justa medida – correspondente ao terceiro teste da metódica de aplicação do princípio da proporcionalidade, ou seja, a proporcionalidade em sentido estrito. A falta de razoabilidade, neste sentido e com tal recorte dogmático, não é uma simples negação da ragionevolezza italiana nem se confunde com a perspetiva da dogmática alemã da «desrazoabilidade», referida a «algo» que é inadmissível, inaceitável ou intolerável (unzumutbar) na sequência da valoração à luz de um parâmetro de justiça do caso concreto (Maβstab der Einzelfallgerechtigkeit) – e é essa valoração que parece subjacente à afirmação feita no presente Acórdão de que o artigo 115.º da LOE para 2014 redunda numa “afetação inadmissível ou intolerável do ponto de vista de quem a sofre e por razões essencialmente atinentes à sua subjetividade”. Com efeito, se tal subjetividade não é a de sujeitos concretos, mas simplesmente abstrata, nada justifica a autonomização da razoabilidade nesta aceção específica do terceiro teste do controlo do princípio da proporcionalidade, uma vez que o excesso ou ausência de justa medida não podem em caso algum ser considerados desrazoáveis.
Tendo em conta todos estes dados, a censura feita à solução da LOE para 2013 respeitou exclusivamente à omissão da previsão de uma cláusula de salvaguarda impeditiva de que que a contribuição sobre subsídios de doença e desemprego viesse a determinar que a prestação a auferir ficasse, em certos casos, aquém do nível mínimo que havia sido já objeto de concretização legislativa e que se encontrava sedimentado por referência a uma certa percentagem da retribuição mínima mensal, no caso do subsídio por doença, ou ao indexante dos apoios sociais, no caso do subsídio de desemprego. De resto, somente neste quadro é que se pode compreender a declaração de voto do Senhor Conselheiro Cura Mariano aposta ao Acórdão n.º 187/2013: para ele, a inconstitucionalidade do artigo 117.º da LOE para 2013 residia não na omissão da cláusula de salvaguarda, mas na omissão de definição de um “patamar quantitativo” superior, porventura similar às isenções estabelecidas com referência aos «cortes» dos rendimentos dos trabalhadores da Administração Pública e dos pensionistas.
Pelo exposto, a interpretação e execução daquele Acórdão pelo artigo 10.º da Lei n.º 51/2013, de 24 de julho (que alterou a LOE para 2013), primeiro, e pelo artigo 115.º da LOE para 2014, depois, foram corretas – isto é, correspondem ao entendimento exato daquilo que foi a censura constitucional feita à norma do artigo 117.º da LOE para 2013 pelo Acórdão n.º 187/2013.
2.2. Sucede, isso sim, que o Tribunal decide agora perfilhar, face à mesma questão jurídico-constitucional, uma posição (ainda) mais restritiva da liberdade de conformação do legislador, considerando que a cláusula de salvaguarda por este introduzida no citado artigo 115.º, n.º 2, não impede que a redução dos montantes das prestações em causa penalize ainda excessivamente os credores de prestações mais baixas. Por outras palavras, considera o Tribunal no presente Acórdão que o legislador deveria estabelecer, no mínimo, um limiar de isenção de qualquer redução situado num patamar superior àquele que corresponde à cláusula de salvaguarda prevista no referido artigo 115.º, n.º 2.
Contudo, as razões para esta inflexão jurisprudencial não são de todo em todo convincentes.
2.3. Desde logo, no plano estritamente metódico.
A alegada «desrazoabilidade» da solução legal é – e não pode deixar de ser atento o tipo de controlo aqui em causa: a fiscalização da constitucionalidade de normas jurídicas – abstrata: considera o peso dos sacrifícios impostos aos possíveis destinatários da norma, e não a intolerabilidade ou inaceitabilidade da medida para destinatários singularmente considerados decorrente de razões atinentes exclusivamente à respetiva subjetividade. Ou seja, tudo o que é aduzido no presente Acórdão no sentido de considerar a posição dos destinatários da medida em análise, nomeadamente a sua situação de especial vulnerabilidade ou fragilidade, respeita à «carga coativa» ou ao sacrifício associados à medida legislativa em si mesma considerada, com abstração da situação particular de alguns dos seus concretos destinatários. Trata-se, por conseguinte, não de um «outro fundamento» ou de um «argumento adicional» “relacionado com a situação específica dos beneficiários dos subsídios de doença e de desemprego”, mas da (nova) consideração dos custos da medida para os direitos fundamentais afetados, típica do terceiro teste do controlo da proporcionalidade – o critério da proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida. Isso mesmo é evidenciado com meridiana clareza no seguinte passo conclusivo da argumentação desenvolvida no Acórdão em apreço:
« [I]mpor-se-ia que se não atingissem, sem uma justificação reforçada, aqueles que auferem prestações de menor valor e cuja redução só poderia constituir uma iniciativa extrema, de ultima ratio, fundada na sua absoluta indispensabilidade e insubstituibilidade.»
Simplesmente, regressando ao terceiro teste do controlo da proporcionalidade, impunha-se um passo mais, o qual foi omitido: a ponderação dos custos para os afetados acima da cláusula de salvaguarda com os ganhos ou benefícios para o interesse público.
2.4. Num plano mais substancial, não pode deixar de relevar a aparente inconsistência entre a jurisprudência constante deste Tribunal que, em matéria de direitos sociais, tem reservado – e bem – para o legislador “as ponderações que garantam a sustentabilidade do sistema e a justiça na afetação de recursos” (v., por exemplo, o Acórdão n.º 3/2010) e a exigência formulada na presente decisão de standards mínimos de proteção superioresao direito a uma existência condigna e, mesmo, superiores ao mínimo de proteção normativamente já assegurado no âmbito dos dois regimes de proteção social em apreciação. A fixação normativa de tais mínimos de proteção já implica valorações próprias da função legislativa, pelo que, fora do quadro de aplicação do princípio da igualdade – que aqui não está em causa –, não se vislumbra qual a base jurídico-constitucional para o Tribunal aferir da insuficiência dos mesmos e impor standards mínimos mais exigentes do que os estabelecidos pelo próprio legislador.
Coisa diferente – e, apesar de contraditória com a ideia de não proibição do retrocesso social sempre afirmada pelo Tribunal, em si mesma consistente em termos lógicos e do ponto de vista da sua fundamentação jurídico-constitucional – seria mobilizar o princípio da proporcionalidade para considerar que, dada a natureza específica dos subsídios de doença e desemprego e a situação de vulnerabilidade dos seus beneficiários, em caso algum seria admissível operar a diminuição do seu montante, designadamente em ordem a contribuir para a consolidação das contas públicas.
Contudo, não foi isso que o Tribunal decidiu. O que o Tribunal decide no presente Acórdão é que o valor mínimo das prestações de doença e desemprego salvaguardado pelo artigo 115.º, n.º 2, da LOE para 2014 não chega; é insuficiente. E o problema inerente a esta decisão é que não existe qualquer critério jurídico que permita ao legislador saber quando é que afinal, para o Tribunal, o valor mínimo salvaguardado será suficiente. É uma simples questão de «tentativa/erro», a decidir casuisticamente. É o que acontece quando o Tribunal deixa de rever as decisões do legislador à luz de parâmetros normativos de controlo, e passa a reexaminar o seu mérito, eliminando-as sempre que discorde das escolhas que nelas são plasmadas.
Em suma, as considerações expendidas no presente Acórdão para declarar inconstitucionais as normas do artigo 115.º da LOE para 2014 não chegam para mostrar que o órgão autor das mesmas, ao aprová-las, violou de modo claro – ou mesmo evidente – os deveres que sobre ele impendem por força do princípio constitucional da proibição do excesso.
§ 3.º - Quanto à alínea c) da decisão: pensões de sobrevivência (artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro – LOE para 2014)
3. O objetivo de reforçar numa perspetiva de longo prazo a sustentabilidade financeira do sistema de pensões mediante a restrição da cumulação de pensões a operar por via de uma penalização das pensões de sobrevivência dos cônjuges sobrevivos e membros sobrevivos de união de facto permite explicar como não arbitrárias as soluções consagradas no artigo 117.º da LOE para 2014 e, por isso, justificar suficientemente as diferenças de tratamento referidas a este respeito no presente Acórdão. Tal justificação, em meu entender, afasta o juízo de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio, formulado na alínea c) da decisão.
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem sustentado em matéria de proibição do arbítrio o seguinte entendimento (cfr. o Acórdão n.º 546/2011):
« [É] ponto assente que o n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003, disponível em www.tribunalconstitucional.pt – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face a ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavelmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
No artigo 117.º da LOE para 2014, o legislador, considerando a especificidade do instituto da pensão de sobrevivência enquanto “compensação dos familiares da perda dos rendimentos de trabalho determinada pela morte do beneficiário” ancorada numa presunção do contributo de tais rendimentos para a economia do agregado familiar (cfr. também neste sentido o Acórdão n.º 651/2009), optou por intervir no respetivo cálculo sempre que a mesma pensão juntamente com pensões de outra natureza onere o orçamento da segurança social acima de um dado valor. Esta opção implica não apenas penalizar as pensões de sobrevivência por confronto com pensões de outra natureza, como também desconsiderar outras fontes de rendimento que não as pensões ou situações em que a pensão de sobrevivência é a única pensão auferida, já que a lógica da solução legal não é análoga à tributária, atuando sobre a capacidade contributiva; mas sim racionalizadora das situações de acumulação de pensões, em ordem a desonerar financeiramente o respetivo sistema.
3.1. Nesta perspetiva, quem aufere unicamente uma pensão de sobrevivência de valor igual ou superior a € 2 000 (cfr. o artigo 117.º, n.º 15, da LOE para 2014) não está numa situação idêntica à de quem percebe um valor global mensal a título de pensão igual ou superior a € 2 000, em resultado da soma do valor da pensão de sobrevivência com o valor de pensões de outra natureza. Com efeito, na ótica do legislador, não é principalmente a condição de recursos ou a capacidade contributiva que releva, mas exclusivamente a situação de acumulação de pensões. Podia não ser assim, e o legislador considerar relevante o nível de rendimentos globalmente auferido pelo beneficiário a título de pensões – porventura, até seria essa a solução mais adequada numa perspetiva de maximização dos objetivos do legislador (a diminuição dos encargos da segurança social e o consequente reforço da sua sustentabilidade financeira). Porém, o legislador entendeu prosseguir os seus objetivos mediante a consideração apenas das situações de cumulação de pensões, restringindo-as.
E o critério da cumulação de pensões é um critério de diferenciação admissível, estando em causa uma medida essencialmente dirigida à sustentabilidade do sistema de pensões por via da racionalização das situações de acumulação de pensões. A dependência de uma única pensão de sobrevivência, para mais dadas as especificidades do seu regime em que o beneficiário pode ver-se na contingência de concorrer com outros para beneficiar de uma mesma pensão, cria uma maior vulnerabilidade por comparação com a dependência conjunta de pensões próprias e da pensão de sobrevivência.
Pelo exposto, existe ainda nesta opção legislativa uma relação de substancialidade entre os fins prosseguidos e os meios utilizados. Daí que, contrariamente ao afirmado no Acórdão a tal respeito, considere que esta solução cabe ainda na liberdade de conformação legislativa, no ponto em que é ao legislador que pertence definir e qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou diferenciadamente. E só poderiam considerar-se violados os limites externos da discricionariedade legislativa caso a medida não tivesse adequado suporte material ou fosse destituída de uma racionalidade coerente face à estratégia de atuação que se entendeu adotar.
3.2. Por outro lado, e por idênticas razões, não está o legislador impedido, nos casos de acumulação de pensões, de penalizar apenas as pensões de sobrevivência.
Conforme se refere no Acórdão, é exato que, nesses casos, o impacto da medida ora em análise no rendimento mensal do titular da pensão de sobrevivência depende da proporção que esta representa no seu rendimento global, uma vez que a redução só afeta a pensão de sobrevivência e não o valor das demais pensões por ele auferidas. Assim, valores globais mensais percebidos a título de pensão idênticos podem sofrer reduções muito diferentes, pois, quanto maior for o peso da pensão de sobrevivência no valor mensal global das prestações percebidas pelo titular, maior será o impacto da redução determinada pelo artigo 117.º da LOE para 2014.
Mas, justamente, tais diferenças assentam igualmente em valores de pensões de sobrevivência diferentes. O que, na perspetiva da opção do legislador está em causa – mais uma vez em atenção à natureza específica das pensões de sobrevivência – é não o valor global mensal percebido a título de pensão tout court, mas antes e tão-somente a redução do valor da pensão de sobrevivência em situações de acumulação com pensões de outra natureza. Por isso, o que importa comparar é o valor das diferentes pensões de sobrevivência e não o respetivo peso relativo no valor global mensal do rendimento percebido a título de pensão.
E comparando o que é comparável na ótica da solução legislativa, verifica-se que, ocorrendo os pressupostos de aplicação do disposto no artigo 117.º da LOE para 2014, diferentes valores da pensão de sobrevivência determinam diferentes reduções dessas mesmas pensões, com a consequência de o impacto sobre o valor global mensal do rendimento percebido a título de pensão ser também necessariamente diferente. No exemplo concreto referido no Acórdão, uma pensão de sobrevivência de € 600 não é igual a uma pensão de sobrevivência de € 2 000, pelo que a subtração à primeira de € 120, quando confrontada com a subtração à segunda de € 400, não pode ser considerada arbitrária, apesar de o valor global mensal do rendimento percebido a título de pensão pelos beneficiários ser inicialmente igual e resultar afetado em termos diferentes: em vez dos € 2 600 iniciais, a final, em consequência da aplicação do artigo 117.º da LOE para 2014, um dos beneficiários receberá (€ 2 600-€ 120=) € 2 480 e o outro (€ 2 600-€ 400=) € 2 200.
3.3. Em suma: na solução legal, existe igualdade no tratamento das pensões de sobrevivência percebidas em acumulação com pensões de outra natureza; não existe – nem tal é exigível por força do princípio da igualdade – igualdade no tratamento dos rendimentos percebidos a título de pensão independentemente da respetiva natureza nem igualdade no tratamento dos rendimentos percebidos em razão de uma única pensão de sobrevivência, cumulada ou não, com outras fontes de rendimento que não revistam a natureza de pensão. No “círculo dos destinatários da normas tal como se encontra legalmente delimitado” ocorrem diferenças de tratamento fundadas nas diferentes situações desses destinatários quanto à perceção de pensões de sobrevivência:
- Em primeiro lugar, quanto à questão de saber se tais pensões são auferidas juntamente com pensões de outra natureza – se assim não acontecer, os beneficiários não são afetados pela redefinição da taxa da pensão de sobrevivência estatuída no artigo 117.º da LOE para 2014 (cfr. o seu n.º 15), uma vez que o legislador intencionou restringir apenas as pensões de sobrevivência em situações de acumulação com pensões de outra natureza;
- Em segundo lugar, e mais uma vez devido à opção legal de fazer incidir a racionalização do valor das pensões atribuídas apenas sobre as pensões de sobrevivência, quanto ao valor relativo das pensões de sobrevivência no rendimento global percebido a título de pensões – quanto maior for a proporção das primeiras face ao valor de pensões de outra natureza, maior será a redução do rendimento dos beneficiários, uma vez que somente a taxa daquelas é objeto de redefinição para menos.
O legislador poderia ter optado por outras soluções racionalizadoras das pensões de sobrevivência ou do valor global mensal dos rendimentos percebidos a título de pensão, independentemente de haver acumulação de pensões de diferentes naturezas ou acumulação com outras fontes de rendimento que não pensões (as quais, por certo, não deixariam de suscitar outras ponderações relacionadas com a natureza própria das diversas fontes de rendimento acumuladas); porém, não foi esse o caminho seguido pelo artigo 117.º da LOE para 2014. Diferentemente, considerou-se que, em caso de acumulação de pensões de sobrevivência com pensões de outra natureza acima de um dado valor, apenas as primeiras deveriam ser reduzidas. E dadas as particularidades de tal tipo de pensões plasmadas no respetivo regime, tal opção não pode ser considerada arbitrária ou desrazoável nem totalmente inconsequente do ponto de vista da estratégia de reforço da sustentabilidade financeira da segurança social.
Pedro Machete
Declaração de voto
A) Quanto à alínea c) da decisão
Votei vencida no que respeita à alínea c) da decisão, embora acompanhe toda a fundamentação do Acórdão, com excepção da parte relativa ao princípio da igualdade, porque considero que, ao contrário do que nele se sustenta, o facto de a medida prevista no artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, ter um efeito diferenciado no rendimento mensal global do titular da pensão, consoante a proporção que assume a pensão de sobrevivência nesse cômputo global, não viola o princípio da igualdade. Desde logo, porque o juízo de igualdade não se pode basear, pura e simplesmente, em cálculos matemáticos absolutos. Ora, sendo o objectivo da medida, segundo o indicado pelo legislador, no Relatório do Orçamento de Estado (pág. 44), citado no Acórdão, o da redução da despesa e o de criar as condições de sustentabilidade futura das finanças públicas e do sistema de pensões, parece razoável que o legislador procure evitar a acumulação de pensões. Ora, tendo de sacrificar uma parte do rendimento global mensal dessa acumulação é razoável que o faça à custa da pensão, que, por depender da contribuição de terceiros e não do próprio, não pode deixar de ter uma menor proteção constitucional quando em acumulação com uma pensão de aposentação – a pensão de sobrevivência.
Já no que diz respeito à exclusão do cônjuge sobrevivo ou membro sobrevivo da união de facto que recebe apenas uma pensão de sobrevivência do âmbito de aplicação do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, entendo que a medida não só não é arbitrária como até é legítima, uma vez que estas pessoas estão em situação diferente das que recebem cumulativamente a pensão de sobrevivência e a de aposentação, pois dependem totalmente da primeira. Aliás, a solução legislativa contrária é que, muito provavelmente, seria inconstitucional por tratar igualmente situações diferentes, em violação, aí sim, do princípio da igualdade e ainda por violação do artigo 63.º, n.º 3, da Constituição, na parte relativa à protecção da velhice e da viuvez. Acresce que a solução legislativa contrária poderia ainda colidir com o princípio da não discriminação, por se consubstanciar, na prática, numa discriminação indirecta em razão do sexo, uma vez que a maior parte destas pensões de sobrevivência serão, porventura, atribuídas a mulheres que se dedicaram à família e nunca trabalharam.
Tudo visto e ponderado, pronuncio-me no sentido de que a norma do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, não é inconstitucional.
B) Quanto à alínea d) da decisão
Votei a decisão da alínea d), relativa ao artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, essencialmente, porque considero que o primeiro teste da confiança não está preenchido. Ainda que se pudesse admitir, numa visão menos formalista do conceito de Estado, que, no caso das empresas públicas em que o Estado detém uma influência dominante, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alíneas a) a d) do Decreto-lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, se poderia equacionar a hipótese da eventual violação do princípio da confiança. Porém, estendendo-se o âmbito de aplicação da norma do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, a todo o sector público empresarial, o qual abrange empresas em que o Estado detém influência dominante na decisão empresarial, a par de outras, em que não a detém, para se chegar a uma eventual inconstitucionalidade teria de se proceder à segmentação da norma.
Ora, a aceitação da inconstitucionalidade parcial pressupõe a cindibilidade da norma, o que me parece de difícil realização neste caso. Com efeito, o estabelecimento claro e inequívoco de uma fronteira entre a parte da norma que, eventualmente, poderia estar ferida de inconstitucionalidade e aquela que, sem quaisquer dúvidas, se afigura conforme à Constituição é extremamente difícil. Aliás, o Tribunal nem sequer dispõe de informação suficiente para levar a cabo esta tarefa. Acrescente-se que num processo, como o presente, que se integra na fiscalização abstracta sucessiva de uma norma legal (ou melhor dito, orçamental já em execução), o princípio da presunção da conformidade constitucional das normas legais, impõe-se particularmente, pelo que o juiz constitucional, na dúvida, não deve declarar a inconstitucionalidade da norma ou de parte dela. Considero, pois, que só se poderia admitir a inconstitucionalidade parcial da norma se ela se afigurasse claramente cindível, o que não sucede.
Ana Guerra Martins
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não pude acompanhar as deliberações do Tribunal relativas (a) à não inconstitucionalidade da abolição dos complementos de pensões pagos por empresas do sector público empresarial (SPE), determinada pelo artigo 75.º, (b) à inconstitucionalidade da redução das pensões de sobrevivência, determinada pelo artigo 117.º, e (c) à restrição de efeitos ex nunc da declaração de inconstitucionalidade do artigo 33.º, todos do Orçamento de Estado para 2014.
I - Tenho por excessivamente formalista a consideração da autonomia jurídica das empresas do SPE, que sustentou, no essencial, a deliberação do Tribunal relativa à não inconstitucionalidade da abolição dos complementos de pensões pagos por empresas do sector público empresarial (SPE). Entendo que, por um lado, é real e quase sempre determinante a influência do Governo nas empresas do sector empresarial do Estado (que constitui a parte mais significativa do SPE), nomeadamente naquelas – como o Metropolitano de Lisboa e a Carris – que o Governo sempre refere quando trata de enfatizar dificuldades económicas, como fez na documentação que enviou ao Tribunal (e nas quais o Estado é accionista único).
O Governo não só nomeia (e exonera) as administrações, como, através dos membros do Governo que exercem os poderes que a lei confere ao Estado na qualidade de accionista de tais empresas, condiciona fortemente a gestão empresarial. Esta circunstância torna, a meu ver, insuficiente o argumento da autonomia jurídica, para sustentar que o Governo nada teve a ver com as decisões gestionárias determinantes do pagamento dos complementos das pensões, de que resultaria a falta de fundamento para o investimento de confiança.
As decisões das administrações das empresas pretenderam, como estratégia empresarial seguramente apoiada pelo Governo, reduzir os recursos humanos das empresas e daí as propostas de reformas antecipadas, preço dessa redução. Os trabalhadores que as aceitaram, acreditando na sua seriedade, fizeram uma opção que não fariam noutras circunstâncias, opção essa irreversível. Acreditaram na estabilidade da situação económica resultante de um verdadeiro contrato com a empresa, contrato que o Governo vem agora violar (bem ao contrário do respeito escrupuloso que exibe por outros contratos, muito mais lesivos dos contribuintes), impondo-lhes uma redução, em muitos casos drástica, dos seus rendimentos.
II - Considero que o regime estabelecido no artigo 117.º do Orçamento de Estado para 2014 norma não ofende qualquer norma ou princípio constitucional. Será, quando muito, um regime de racionalidade e economicidade duvidosas, mas tal não acarreta a sua inconstitucionalidade.
Julgo que existem razões para a norma (1) atingir somente as acumulações de pensões, (2) para o fazer de forma distinta consoante o maior ou menor peso relativo da pensão de sobrevivência no conjunto dos rendimentos provenientes de pensões e ainda, (3) para não se aplicar àqueles que apenas auferem pensão de sobrevivência, independentemente do montante desta.
Atingir apenas pensões é uma opção discutível do legislador, mas compreensível, à luz da preocupação com a sustentabilidade da segurança social. Atingir mais fortemente os pensionistas que, acumulando pensões, auferem pensões de sobrevivência de montante mais elevado, afigura-se razoável, considerando que a pensão de sobrevivência é uma segunda pensão, que o próprio acórdão reconhece não ter a estabilidade da primeira (ponto 98., penúltimo parágrafo). Poupar aqueles que apenas recebem pensão de sobrevivência faz sentido, pois a pensão de sobrevivência é, para estes, a primeira (e única pensão). E “estes” serão, na sua maioria, mulheres, que dedicaram a sua vida ao trabalho não remunerado para a sua família.
III – A restrição de efeitos ex nunc da declaração de inconstitucionalidade do artigo 33.ºdo Orçamento de Estado para 2014, possibilitando a salvaguarda dos efeitos da norma declarada inconstitucional durante quase metade do período de vigência do Orçamento, constitui um claro e inaceitável “benefício do infrator”, tanto mais de lamentar quanto a situação se vem repetindo, ano após ano. Acresce que os argumentos utilizados pelo Tribunal para fundar a declaração de inconstitucionalidade traduziram um juízo especialmente severo sobre a norma em causa.
João Pedro Caupers
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Pronunciei-me pela inconstitucionalidade das normas do artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (redução remuneratória), nos termos da alínea a) da decisão, por razões que radicam em toda a expressão diferenciadora da medida, a qual considero desrespeitar o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, de acordo com o entendimento que exprimi em declaração de voto aposta no Acórdão n.º 187/2013, e para a qual remeto. Considero mesmo que a fixação de um novo patamar remuneratório ressalta ainda mais evidente, na medida em que o seu enquadramento fundamentador afasta-se da invocação da emergente necessidade de sacrifício conjuntural, e da excecionalidade da redução salarial, descobrindo o propósito de intervenção duradouramente corretiva sobre o que se qualifica como “padrão de iniquidade entre o público e privado”. É a esta luz, e não como resposta temporária e transitória a emergentes necessidades de consolidação das contas públicas, que encaro a nova, e mais acentuada, medida de afetação remuneratória imposta a quem recebe por verbas públicas.
2. Discordo da fixação de efeitos ex nunc da declaração de inconstitucionalidade das normas do mesmo artigo 33.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, pois entendo que, no quarto ano de aplicação de reduções remuneratórias de quem aufere por verbas públicas, e perante condicionalidades externas qualitativamente distintas daquelas presentes em anteriores decisões do Tribunal Constitucional, não se verificam para tal razões de excecional relevo, como exige o n.º 4 do artigo 282.º da Constituição.
3. Também não acompanho a posição que encontrou vencimento na alínea c) da decisão, quanto ao juízo de inconstitucionalidade das normas do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (pensões de sobrevivência). Atuando a norma no interior do sistema de segurança social, como restrição da cumulação de pensões, a medida em apreço traduz a ponderação do legislador democrático, contida na sua margem de determinação, de que a intervenção reconfiguradora inserida numa estratégia de contenção da despesa pública com prestações sociais deveria incidir primacialmente sobre a parcela correspondente à compensação da perda de rendimentos do trabalho com a morte do beneficiário, tida como resposta previdencial suplementar ou de acréscimo – e por isso a componente mais dúctil em face de pressão insustentável sobre o sistema de pensões -, sempre que coexista com outros rendimentos de pensões.
Enquanto medida relativa ao sistema de pensões, dirigida à sustentabilidade do sistema de segurança social e em particular à sustentabilidade do sistema de pensões, obedecendo a um princípio de equidade intergeracional, não se vê que a sua coerência e racionalidade fique colocada em crise quando não considerada a integralidade dos rendimentos do sujeito.
Não se trata aqui de aferir da capacidade contributiva do sujeito, mas da sua posição como beneficiário do sistema de pensões, o que permite compreender, ao que me parece, a diferenciação entre quem aufere uma pensão, sendo essa a única prestação do sistema de segurança social de que beneficia – o que corresponderá as mais das vezes a cônjuges ou unidos de facto que nunca exerceram atividade laboral remunerada, contribuindo em dedicação exclusiva para a vida familiar e dependendo economicamente por inteiro dos rendimentos do trabalho do beneficiário falecido -, e aqueles que, fruto da atuação concomitante de diferentes situações de facto ou relações de vida geradoras de proteção, beneficiam de mais do que uma pensão, presumindo então o legislador que a dependência em vida do beneficiário que subjaz à atribuição de pensão de sobrevivência não era completa e, desse jeito, a perda de rendimentos a compensar seria menos acentuada. Note-se que o direito à pensão de sobrevivência relativamente a titulares que não sejam os cônjuges e membros de união de facto ou os filhos menores já depende da demonstração de uma situação de dependência económica em relação ao beneficiário falecido, sendo o impacto da solução de redução ou recálculo mais mitigado do que aconteceria com a limitação das condições da atribuição da pensão de sobrevivência.
É certo que, tomando o universo dos cônjuges ou membros sobrevivos de união de facto que percebam várias pensões, entre as quais uma pensão de sobrevivência, a concreta modelação da medida suscita interrogações de resposta duvidosa. Mas, em todos os quadros aplicativos, denota-se que os níveis de redução são tanto maiores quanto o peso relativo que a pensão de sobrevivência assume no valor acumulado, o que encontra relação com a distinta natureza das pensões em pagamento e o diferente lastro contributivo específico que a cada uma corresponde, sendo mais elevado no que respeita à pensão de aposentação ou reforma (sobre a evolução do esforço contributivo relativo às pensões de sobrevivência, cfr. João Carlos Loureiro, Sobre a Chamada Convergência das Pensões: O caso das Pensões de Sobrevivência, Coimbra, 2013, págs. 11 a 14). Ou seja, na concretização da medida de redução e recálculo, não se atendeu apenas ao valor global das pensões em pagamento, mas também à natureza da prestação e ao que cada uma significa em termos do esforço contributivo autónomo associado à proteção da eventualidade morte e do seu impacto nos cônjuges e unidos de facto sobrevivos, de acordo com o princípio da contributividade. Essa ponderação confere, ao que me parece, fundamento razoável e bastante ao tratamento diferenciado no (re)cálculo ou redução de pensões de sobrevivência, também no plano da igualdade interna.
Por tais razões, dissenti da decisão quanto à inconstitucionalidade das normas do artigo 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
4. Encontro-me vencido quanto ao juízo de não inconstitucionalidade que versa as normas constantes do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (complementos de pensão), constante da alínea d) da decisão, pois pronunciei-me pela formulação de juízo de inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, ínsito no artigo 2.º da Constituição.
Diferentemente da posição que encontrou vencimento, não creio que a ponderação da atuação do Estado, na sua veste de acionista, em particular quando em posição dominante, deva quedar-se pelo plano meramente formal, inteiramente descomprometido das principais decisões tomadas pelos titulares dos seus órgãos em aspetos relevantes de política remuneratória, relativamente aos vários entes que integram o Sector Empresarial do Estado (SEE). Numa visão material de Estado, que tenha em atenção toda a dimensão conformadora da atuação Estado administrador no SEE, creio que existem boas razões para considerar que as posições subjetivas que decorrem dos vários acordos de empresa em que se estipulam a concessão de complementos de pensões, não só foram permitidas, como corresponderam a orientações estratégicas das empresas dimanadas dos poderes públicos.
É certo que Tribunal não está em condições de determinar com precisão quais as empresas e os trabalhadores e ex-trabalhadores afetados, mas não é menos certo que o interesse fundamentador da medida expresso no Relatório OE remete para a “viabilização financeira do SEE na área dos transportes”. Ora, creio existir evidência de que tais benefícios pós emprego foram concedidos e mantiveram-se por influência determinante dos poderes públicos nos órgãos de tais empresas. Tenha-se em atenção, a título de exemplo, o que é dito por exemplo no Relatório de Auditoria do Tribunal de Contas n.º 30/2009, relativo aos exercícios económicos de 2003 a 2007 da Carris, SA (disponível https://erario.tcontas.pt/pt/actos/rel_auditoria/2009/2s/audit-dgtc-rel030-2009-2s.pdf).
Sinaliza-se nesse texto a ausência de contabilização dos encargos futuros com complementos de pensões, em desrespeito da Diretriz Contabilística n.º 19, apenas registando como custo do exercício os complementos pagos, o que significava que, quando adicionados esses encargos, o capital social encontrava-se completamente perdido, determinando a aplicação do artigo 35.º do CSC. Perante essa realidade, a Assembleia Geral da Carris deliberou, em 11 de abril de 2006: “O accionista está ciente da situação de insuficiência dos capitais próprios da CARRIS e dos défices de exploração sistemáticos evidenciados pelas contas da Empresa, não obstante as compensações indemnizatórias concedidas, encontrando-se a ponderar as medidas que se mostrem adequadas bem como a definição das orientações estratégicas” e, quase dois anos mais tarde, em 25 de março de 2008, “(...) a matéria relativa ao Artigo 35.º do CSC, não seja objeto de deliberação na presente Assembleia Geral, uma vez que não se encontram reunidas as condições para o Accionista Estado se pronunciar sobre a mesma”. Daí que tenha o Tribunal de Contas concluído: “Tais deliberações demonstram a incapacidade do accionista Estado de encontrar uma solução célere para esta Empresa de Serviço de Interesse Económico Geral, portanto estratégica, contribuindo, dessa forma, para a sua crescente degradação financeira. Nestas circunstâncias, se a CARRIS não fosse uma empresa do Sector Empresarial do Estado a sua continuidade seria dificilmente viável, logo abrangida pelas soluções preconizadas no art. 35.º do CSC”. Ou seja, apesar dos desequilíbrios repetidamente registados, que a sustentabilidade da empresa não se encontrava em risco, pois há muito que ocorrera o “alarme” – sucessivamente ignorado - e a necessidade de racionalização de custos.
Neste contexto, partilhado por outras empresas do setor público empresarial no domínio dos transportes, entre as quais o Metropolitano de Lisboa, não comungo da ideia de que o distanciamento - na forma - face à “entidade pública mãe” será por si só idóneo a afastar o preenchimento do primeiro teste do princípio da confiança. Ao invés, entendo que a medida em apreço atinge expetativas de estabilidade do regime jurídico relativos ao quadro normativo dos benefícios pós laborais relativos a complementos de pensões induzidas e alimentados por comportamentos dos poderes públicos, nas vestes de Estado Administrador. Do ponto de vista material, entendo existir fundamento para imputar aos poderes públicos a criação nos trabalhadores e ex-trabalhadores de tais empresas da convicção de que os acordos que estipularam tais benefícios obedeceram à vontade estadual, sendo compagináveis tanto com as orientações estratégicas executadas, como com a viabilidade dos entes que assumiam tais responsabilidades, atenta a dimensão de interesse económico geral e o relevo social do respetivo objeto empresarial.
Por outro lado, entendo que as expetativas de continuidade dos trabalhadores e ex-trabalhadores relativamente a tais benefícios são legítimas, justificadas e assentes em boas razões.
Os complementos de pensão integram a política de remunerações de uma empresa, constituindo mecanismos de atração e de retenção de colaboradores, na medida em que asseguram aos membros da organização produtiva segurança económica, removendo o receio de perda de poder de compra na velhice. Nessa medida, representam uma forma de investimento da empresa no “capital humano”, que proporciona aos seus servidores um maior desempenho e uma maior produtividade, cujo retorno é refletido positivamente nos respetivos resultados operacionais. Acolhendo uma visão jurídico-constitucional da atividade empresarial pública que não tenha como vetor único a maximização do retorno do capital investido, e integre na sua racionalidade de gestão políticas responsáveis do ponto de vista social, incluindo na dimensão (interna) de resposta a necessidades sociais dos seus colaboradores - contributo essencial para o desenvolvimento sustentável e comprovadamente gerador de resultados positivos a longo prazo para qualquer empresa, como se sublinha no Livro Verde Promover um Quadro Europeu para a Responsabilidade Social das Empresas, COM(2001) 366 Final, e na resolução do Parlamento Europeu que sobre ele incidiu, onde se afirma que “há um consenso global cada vez maior, no seio das empresas e nos círculos de investidores, de que têm uma missão mais vasta do que apenas a de gerar lucros e que o desafio do seu sucesso consiste na combinação entre rentabilidade, sustentabilidade e responsabilidade” (JO C187E de 07/08/2003, pp. 180-188) - entendo que os complementos de pensão em apreço não estão à margem do sistema de recompensas pecuniárias pela laboração em empresa do SEE, sendo nessa medida indissociáveis da sua operacionalidade.
A sua racionalidade poderá encontrar-se no seio da estratégia remuneratória, não como uma espécie de cláusulas de repartição de lucro, ou como benefícios contingentes, mas como compensação em prestações futuras pelos serviços dos trabalhadores, sendo por estes interiorizados como integrando responsabilidades a respeitar e a satisfazer em condições não inferiores àquelas assumidas pela empresa para com os demais credores. O trabalhador comum do universo empresarial abrangido será naturalmente impressionado pela natureza e dimensão das empresas envolvidas, compondo uma garantia de solvabilidade que, em todo o caso, não está em condições plenas de avaliar. Essa avaliação cabe, em primeira linha, aos órgãos de gestão e aos poderes públicos com posição de influência e de tutela, agindo o trabalhador beneficiário na convicção, de boa fé, de que não é celebrado acordo que se sabe não poder ser cumprido.
Face à particular intensidade da posição de confiança criada, que atinge uma opção de vida crucial – a passagem à reforma – e irreversível – o trabalhador não pode mais completar a sua carreira contributiva de forma a diminuir, quando possível, o diferencial entre a remuneração no ativo e na reforma - considero que as razões de interesse público invocadas para a edição da norma não atingem peso prevalecente sobre o investimento de confiança legítima em presença, ponderando o leque limitado de sujeitos e o concreto valor envolvido, que do ponto de vista das empresas não atinge montantes de gastos com o pessoal muito significativos, enquanto na perspetiva dos trabalhadores e ex-trabalhadores amputa uma percentagem considerável dos rendimentos respetivos. Sendo verdade que, ao reduzir os gastos com pessoal das empresas públicas visadas, a medida em apreço contribui para a redução das transferências do Orçamento de Estado que lhes são destinadas, a fim de compensar situação deficitária, existem razões para considerar não justificada a opção do legislador. Mesmo considerando a reclassificação de algumas das empresas em causa, e a consequente integração no perímetro de consolidação das contas públicas, com efeitos diretos sobre o défice e a dívida pública, essa condição não é imputável, de forma alguma, aos seus trabalhadores ou ex-trabalhadores.
Releva para o balanceamento entre a afetação desfavorável dos interesses particulares e as razões de interesse público invocadas pelo legislador que deparamos, em termos práticos, com uma verdadeira ablação, e não perante mera suspensão. As condições de retoma dos pagamentos – em que não basta o equilíbrio, exigindo-se três anos consecutivos de resultados líquidos positivos - à luz dos resultados de exercício anteriores e do grau de dependência financeira externa de tais empresas, tornam muito improvável, no horizonte de vida dos atuais beneficiários, que o pagamento dos complementos de pensão volte a ter lugar.
Fernando Vaz Ventura
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencida quanto à declaração de inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 33.º, 115.º, n.ºs 1 e 2 e 117.º da Lei do Orçamento de Estado para 2014. Entendo que com esta decisão o Tribunal restringiu indevidamente a liberdade de conformação política do legislador ordinário, e que o fez de forma tal que da sua argumentação se não pode extrair qualquer critério material percetível que confira para o futuro uma bússola orientadora acerca dos limites (e do conteúdo) da sua própria jurisprudência. Entendo ainda que tal aconteceu por não terem sido seguidas na fundamentação exigências básicas do método jurídico quando aplicado a assuntosconstitucionais, de cujo cumprimento depende o traçar rigoroso da fronteira entre o que significa julgar em direito constitucional e o que significa atuar por qualquer outra forma.
Dentro dessas exigências, salientarei apenas o seguinte, que me parece, para o caso, central.
Não se invalida uma norma editada pelo legislador democraticamente legitimado invocando para tal apenas a violação de um princípio (seja ele o da igualdade ou da proporcionalidade) se se não apresentarem como fundamento para o juízo razões que sustentem a evidência da violação. Além disso, o Tribunal, quando escrutina uma medida legislativa tendo como parâmetro apenas um princípio, não pode partir da assunção segundo a qual o legislador penetrou num domínio material que lhe não pertencia. Essa assunção só será legítima – e mesmo assim, necessitada, evidentemente, de posterior reexame crítico – quando a norma da lei ordinária que se tem que julgar “afetar”, ou aparenta “afetar”, no sentido lato do termo, um direito das pessoas que seja determinado e determinável a nível constitucional Aí, pode partir-se do ponto de vista segundo o qual, prima facie, o legislador terá penetrado numa área de competência que lhe não pertencia, uma vez que lesado terá sido um direito das pessoas que se não encontrava à sua disposição. Mas para além destas hipóteses, em que se não considera portanto que o problema jurídico-constitucional que tem que resolver-se se consubstancia na afetação, por parte do legislador ordinário, de um direito fundamental, o Tribunal não pode nunca partir do princípio segundo o qual o legislador terá atuado para além da sua competência. Quer isto dizer que, nestas situações, o controlo do Tribunal, além de ser um controlo de evidência, deverá ter sempre uma intensidade mínima. A conclusão não pode senão reforçar-se quando estão em causa interações complexas, com repercussões sistémicas imprevisíveis, nas quais não pode deixar de reconhecer-se ao legislador uma amplíssima margem de liberdade para efetuar juízos de prognose.
Para além deste ponto, que me parece fundamental, um outro há que interessa salientar.
As normas constitucionais que têm a estrutura de um princípio são, por causa da indeterminação do seu conteúdo, normas de dificílima interpretação. A “descoberta” do sentido destas normas enquanto parâmetros autónomos de vinculação do legislador tem sido portanto feita, gradual e prudencialmente, tanto na Europa quanto na tradição mais antiga norte-americana, em trabalho conjunto da doutrina e da jurisprudência. A razão por que tal sucede é a de evitar saltos imprevisíveis na compreensão do conteúdo destes princípios.
2. No caso presente, o Tribunal julgou inconstitucionais as normas constantes do Orçamento de Estado para 2014 com fundamento em violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e do princípio da proporcionalidade (artigo 2.º da CRP). A violação da igualdade foi a razão invocada para declarar a inconstitucionalidade da norma sobre reduções remuneratórias (artigo 33.º do LOE) e daquela outra sobre pensões de sobrevivência (artigo 117º da LEO). Por seu turno, a violação da proporcionalidade foi a razão invocada para declarar a inconstitucionalidade das normas relativas às contribuições em caso de subsídio de doença e desemprego (artigo 115.º da LOE). Como em qualquer um destes casos o Tribunal partiu do princípio segundo o qual a lei não tinha “afetado” nenhum direito que fosse fundamental, de harmonia com as premissas metódicas de que parti o seu juízo deveria ter sido o da evidência e a densidade do seu escrutínio de grau mínimo. Não o foi. Por isso, entendo que com esta decisão o Tribunal invadiu um campo que pertencia ao legislador; e que, por ter agido à margem das exigências metódicas que são próprias da argumentação jurídico-constitucional, não deixa para o futuro qualquer bússola orientadora sobre o conteúdo da sua própria jurisprudência, e sobre o entendimento que tem quanto aos limites do seu próprio poder.
3. A meu ver, assim é, desde logo, com o juízo de inconstitucionalidade sobre as normas constantes do artigo 33.º (reduções remuneratórias).
Como já se disse, foi esse juízo fundado, apenas, em violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.
A igualdade de que fala o artigo 13.º não é uma “igualdade” qualquer. Não é um programa geral de filosofia política ou de tarefas do Estado, pois que essas são matérias não sindicáveis pela função jurisdicional. A igualdade a que se refere o artigo 13.º da CRP é a igualdade jurídica, elemento do Estado de direito, que se traduz na igualdade de todos quanto à aplicação da lei – ou seja, em vínculos que impendem sobre a função administrativa (legalidade e imparcialidade da administração) e sobre a função jurisdicional (neutralidade dos tribunais) – e na igualdade de todos através da lei – que se traduz, por seu turno, em vínculos que impendem sobre o próprio legislador.
No entanto, e como legislar significa, por essência, definir regimes diferenciados para as situações da vida que o requeiram, desde cedo se identificou o vínculo que impende especificamente sobre o legislador à luz do princípio da igualdade como proibição do arbítrio, ou como proibição de introdução, pelo mesmo legislador, de diferenças entre as pessoas insuscetíveis de serem compreendidas através de quaisquer critérios de racionalidade intersubjetivamente aceitáveis. Esta “fórmula”, adotada pela jurisprudência do Tribunal na sequência da doutrina fixada pela Comissão Constitucional, correspondia ao património comum da ciência do direito público europeia sobre a matéria (construído a partir da obra seminal de Leibhoz, de 1925), e pretendia dar prioritariamente resposta ao problema da distribuição de competências entre a justiça constitucional e o legislador, num domínio em que o poder de escrutínio da primeira se deveria limitar – como já vimos – a um grau mínimo de evidência.
Não tem naturalmente cabimento proceder, numa declaração de voto, a uma análise da evolução da jurisprudência do Tribunal sobre esta matéria. Mas importa dizer que só a partir do acórdão n.º 330/93, o qual recebeu a “neue Formel” do Tribunal Constitucional Federal alemão, é que o Tribunal Constitucional português, considerando insuficiente a fórmula da proibição do arbítrio, passou a admitir que pudesse haver violação do princípio da igualdade para além das situações de arbítrio legislativo. No plano dogmático, aquilo a que a “nova fórmula” conduz é a um acréscimo da intensidade de escrutínio por parte da justiça constitucional e, portanto, a uma redução da margem de livre conformação do legislador. Esta última será tanto mais reduzida – diz a “nova fórmula” – quanto mais forte for a projeção da desigualdade de tratamento no exercício de direitos de liberdade, ou quanto mais as características pessoais com base nas quais é feita a diferenciação entre os grupos de cidadãos se aproximarem das chamadas «categorias suspeitas», enunciadas, na CRP, no n.º 2 do artigo 13.º.
Porém, tal não significou o abandono da fórmula da proibição do arbítrio por parte da jurisprudência posterior. Por isso, caberia sempre ao Tribunal a elaboração de critérios suficientemente estáveis para determinar quais as situações em que se deveria recorrer a cada uma das fórmulas, dado resultar, da aplicação de uma ou de outra, diferentes consequências quanto ao grau de intensidade do escrutínio adotado e, logo, quanto ao grau de constrangimento da liberdade conformadora do legislador.
Dizendo de outro modo: haveria sempre que justificar com cuidado por que motivos se aplicariam a certos domínios da vida o “teste mínimo”da proibição do arbítrio e a outros um teste mais “largo”, com consequências mais restritivas da liberdade de conformação do legislador. Não sendo constitucionalmente proibida, em certas circunstâncias, a adoção de um escrutínio mais intenso a propósito da aplicação do princípio geral da igualdade, deveria sempre o Tribunal precisar com cuidado quais os critérios gerais (e estáveis) que presidiriam à opção por um ou outro “modelo” de controlo.
4. Não foi porém, a meu ver, isso que se fez no presente acórdão, a propósito do juízo de inconstitucionalidade da norma sobre reduções remuneratórias. Na sequência de decisões suas anteriores (Acórdão n.º 396/2001; 353/2012 e 187/2013), o Tribunal dá um passo de gigante na interpretação que faz do princípio da igualdade, abandonando a fórmula da proibição do arbítrio e abandonando também os caminhos próprios da “nova fórmula”, inaugurada em 1993. Daqui decorre uma constrição da liberdade de conformação do legislador que toda a jurisprudência anterior [sedimentada até há pouco tempo] não deixava antever; que não surge, em minha opinião, minimamente justificada; e que, por isso mesmo, torna absolutamente imprevisível a atuação futura do Tribunal.
A forma como vem identificado o novo princípio, que surge como fundamento único da decisão de inconstitucionalidade, é ela própria muito variável. Invocando a sua jurisprudência de 2011, 2012, e 2013 (onde se falava a este propósito de igualdade proporcional, enquanto “elemento estruturante do Estado de direito)”, o Acórdão refere-se agora tanto a um “princípio de proibição do excesso em termos de igualdade proporcional”, quanto a um “princípio de igualdade perante os encargos públicos”, ou ainda a um princípio de “equitativa adequação”. Mas basicamente, o que o novo princípio diz – independentemente do nomen que se lhedê – é que o artigo 13.º da CRP habilita o Tribunal a proceder, a propósito do artigo 33.º da Lei do Orçamento do Estado, a um duplo teste: (i) saber se o fundamento da diferença [que leva a que só os funcionários públicos, e não os demais trabalhadores por conta d’outrem, sejam alvo de reduções remuneratórias em contexto de crise económica] é arbitrária ou racionalmente fundada; (ii) saber se a medida dessa diferença é ou não excessiva, aqui se contendo a dimensão da proporcionalidade. E entendendo o Acórdão, em harmonia com jurisprudência que remonta a 2011, que é negativa a resposta ao primeiro teste (a medida legislativa não seria pelo seu fundamento arbitrária), também em concordância com as decisões de 2011, 2012 e 2013 conclui, apesar disso, pela juízo de inconstitucionalidade, por entender que é positiva a resposta ao segundo “teste”: a medida seria excessiva, por ir além dos “limites do sacrifício” imposto pelas reduções remuneratórias.
Mas como medir aqui o excesso? Como saber a partir de quando é que se ultrapassaram os limites do sacrifício? Como saber exatamente qual o parâmetro de juízo que aqui foi aplicado? Terá sido o decorrente simplesmente do princípio da proporcionalidade? À primeira vista dir-se-ia que sim, visto que a fundamentação do Acórdão se estriba, essencialmente, na medição do quantum da redução remuneratória que os sacrificados já sofreram (numa análise que se restringe à comparação das relações intragrupo, ou seja, à comparação entre o nível de remuneração que o mesmo grupo de pessoas tinha antes e tem agora), daí se retirando a evidência do excesso do sacrifício. No entanto, a aplicação do “teste” da proporcionalidade com estes resultados pressuporia a assunção do princípio segundo o qual as pessoas afetadas teriam um direito fundamental à não redução dos seus montantes remuneratórios, direito esse que teria sido excessivamente restringido pelo legislador ordinário, com as consequências decorrentes da parte final do n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Contudo, o Tribunal diz – e di-lo desde 2011 – que não parte do entendimento segundo o qual o direito à não afetação do montante da remuneração seja um direito fundamental.
Assim sendo, volta a perguntar-se: qual é então o parâmetro do juízo? O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, com o recurso ao duplo escrutínio que a “proibição do excesso no contexto de igualdade” conferiria ao Tribunal? Por definição, tal pressuporia a possibilidade de comparar as diferenças de níveis remuneratórios, não entre pessoas pertencentes ao mesmo grupo, e, nelas, entre níveis remuneratórios presentes e níveis remuneratórios passados, mas entre grupos distintos de pessoas, que aqui seriam aquelas que exercem funções de emprego público, por um lado, e aquelas que se “empregam” no setor privado, por outro. Mas também não é isso que é feito: aliás, nem poderia ter sido feito, visto que sempre seria impossível ao Tribunal, com os poderes de que dispõe, avaliar exatamente a “medida da diferença” existente entre as remunerações dos assalariados públicos e privados.
Por isso, o que mais impressiona no raciocínio do Acórdão é que se contente com uma avaliação da perda remuneratória dos trabalhadores do setor público em 2014 face à sua própria situação em anos anteriores, assumindo que os níveis remuneratórios no setor privado para os diferentes níveis de rendimento são, normativamente ou de facto, insuscetíveis de sofrer qualquer flutuação durante um período de quatro anos (2011-2014). Se assim não é numa economia de mercado mesmo em período de crescimento económico, não o será seguramente num contexto de crise económica e financeira. Como impressiona sobremaneira o facto de o Tribunal, depois de não ter declarado a inconstitucionalidade da norma que concretizava a introdução de uma medida que estabelecia uma redução remuneratória dos trabalhadores do setor público, prevista na LOE 2011, vir agora, rever a sua posição. É certo que, comparativamente com a medida validada pelo Tribunal no Acórdão n.º 396/2011, a medida ora em apreciação é redesenhada em aspetos não-irrelevantes que se traduzem, na prática, num agravamento da redução da retribuição mensal. Simplesmente, verifica-se, por outro lado, uma diferença entre a LOE 2011 e a LOE 2014 que o Tribunal não valora devidamente. É que, quando a LOE 2011 foi aprovada no Parlamento, em novembro de 2010, Portugal não estava ainda sujeito ao programa de ajustamento económico e financeiro, acordado, em maio de 2011, entre o Governo de Portugal e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Se no acórdão n.º 396/2011, se considerou justificada a introdução da redução remuneratória na LOE 2011 à margem de uma situação de emergência financeira, em que, apesar de tudo, a República Portuguesa ainda conseguia obter financiamento nos mercados financeiros através do mecanismo normal de emissão de dívida pública, não parece que se possa, sobretudo num controlo de evidência, negar relevância à sobrevigência de uma situação em que a República, impossibilitada de emitir dívida a uma taxa de juro comportável, se viu na necessidade de negociar um empréstimo internacional e de se submeter às condições exigidas pelos credores, não apenas em termos de calendarização de objetivos de consolidação orçamental, mas obrigando-se a adotar um conjunto de medidas concretas, nos termos de um programa de assistência económica e financeira, sujeitas a revisão regular. Mesmo que fosse de atribuir relevância jurídico-constitucional ao agravamento da medida – o que, num controlo de evidência, é impossível – seguramente que a alteração do contexto que determinou a reconfiguração da medida deveria ter sido devidamente valorada. Em meu entender, não o foi. A lógica que, quanto a este ponto central, o Tribunal segue – a de que, à medida que o tempo de “ajustamento” ia passando, ia também crescendoa obrigação para o legislador ordinário de procurar outras vias que não estas de redução de despesa – parece-me incompatível com a margem de liberdade, larguíssima, que dever reconhecer-se ao legislador na prognose dos factos (cfr. supra, ponto 1).
5. A mesma falta de rigor na determinação do conteúdo do parâmetro constitucional invocado, e a mesma incerteza, daí decorrente, quanto à previsibilidade da orientação futura do Tribunal está patente, segundo creio, no juízo de invalidade relativo às normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 115.º da lei orçamental, respeitantes às contribuições em caso de subsídio de desemprego e doença.
Depois de o legislador ordinário ter, na sequência da decisão proferida pelo Acórdão n.º 187/2013, estabelecido uma cláusula de salvaguarda que impede que a aplicação da contribuição sobre prestações de desemprego e doença possa prejudicar a garantia do valor mínimo das prestações que resulte do regime aplicável a qualquer das situações, a presente decisão vem agora dizer (argumentando que tal se encontrava já dito in nuce na sua jurisprudência de 2013) que tal não é suficiente para fazer cumprir a Constituição.
O fundamento para tanto invocado é o do princípio da razoabilidade, que nunca antes tinha sido apresentado como parâmetro único de invalidação de uma norma legislativa com força obrigatória geral.
Num só parágrafo, define-se o conteúdo do princípio. Trata-se, segundo o Tribunal, de um parâmetro de validade da norma legislativa que “surge relacionado com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito”, mas que se autonomiza deste último na medida em que através dele se acentuam “as consequências da imposição [legislativa]na esfera pessoal daquele que é afetado.” Com esta definição, fica-se sem saber o que é que, no domínio da fixação dos montantes de prestações sociais em caso de doença e desemprego se poderá considerar como razoável, e, portanto, conforme com a Constituição. A dúvida é tanto mais grave porquanto, nestes domínios, a competência para a regulação da matéria cabe exclusivamente ao legislador ordinário, visto estarmos fora do âmbito de direitos cujo conteúdo seja determinado ou sequer determinável a nível constitucional. A invalidação da medida legislativa surge assim fundada em violação do artigo 2.º da CRP – sede do princípio da proporcionalidade – a partir de um “sub-parâmetro” que o Tribunal nele encontrou, sem que se saibam ao certo quais os instrumentos hermenêuticos que foram utilizados para o autonomizar, qual o seu conteúdo rigoroso, e o que esperar por isso da sua futura evolução.
6. Finalmente, a declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 117.º da lei orçamental, relativas às pensões de sobrevivência.
O parâmetro invocado para invalidar a medida legislativa volta a ser o princípio da igualdade, contido no artigo 13.º da CRP.
Contudo, o entendimento que o Tribunal aqui adota de “igualdade” não parece ser o mesmo que fundamentou a invalidação das reduções remuneratórias (artigo 33.º da lei orçamental). Com efeito, nenhuma conjunção se estabelece agora entre “igualdade” e “proporcionalidade”. Mas também se não retorna, segundo creio, nem à fórmula tradicional da proibição do arbítrio, nem sequer aos modelos intermédios próprios da“novafórmula” de origem alemã (supra, ponto 3 desta declaração). Aparentemente, portanto, teremos também aqui um novo princípio, ou um novo entendimento quanto ao conteúdo de um princípio, que volta a assumir contornos assaz indefinidos.
Que se não regressa aos domínios possíveis ensaiados pela “nova fórmula” é certo, uma vez que esses pressupõem que se avaliem diferenças, estabelecidas pelo legislador, entre grupos de pessoas, sendo tanto mais intenso o escrutínio do Tribunal quanto mais essas diferenças forem estabelecidas em função das chamadas “categorias suspeitas”, fixadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Nada disso está em causa no juízo agora efetuado pelo Tribunal, uma vez que o que esse juízo censura é a desigualdade existente entre o mesmo grupo de pessoas. É apenas a este estrito domínio – que o Acórdão qualifica como “o âmbito da relação interna” do princípio da igualdade, respeitante portanto apenas ao “círculo dos destinatários das normas [sob juízo]” – que se aplica o disposto no artigo 13.º da CRP. Mas com que sentido se aplica?
O sentido tradicional da proibição do arbítrio também não parece ser, para o caso, adequado. É que é difícil conceber que se considere como arbitrária, isto é, não racionalmente fundada, ou ininteligível de acordo com critérios de racionalidade intersubjectivamente aceites uma opção legislativa de “limitação de acumulação de pensões”, que limite essa cumulação em função de uma redução apenas da pensão de sobrevivência. Poder-se-ia discutir a constitucionalidade da opção legislativa noutra sede e noutro lugar que não a do princípio da igualdade: uma vez que o legislador entendeu – por motivos de interesse público que o Acórdão rigorosamente identifica – instituir limites à acumulação entre pensão de sobrevivência e outra pensão afetando apenas o montante da primeira, poder-se-ia discutir se a tutela constitucional da pensão de sobrevivência é menos intensa do que a tutela conferida a outras pensões. Não foi contudo esse o caminho que o Acórdão seguiu, uma vez que entendeu que nenhum problema se colocava quanto à proteção da “confiança” que os titulares dos direitos, neste caso afetados, tinham “investido” na continuidade do Direito. Não tendo sido esse o caminho seguido, como considerar arbitrária a referida “desigualdade interna”, ao ponto de se considerar também inconstitucional (por violação do artigo 13.º da CRP), o facto de não ser alvo de qualquer redução [do montante da pensão] quem for apenas titular da pensão de sobrevivência?
O entendimento que aqui se faz da “igualdade” parece, portanto, ser ainda um outro, que não o decorrente da fórmula tradicional da proibição do arbítrio. Mas a meu ver não se entende bem qual seja: é que é difícil aceitar que o legislador ordinário esteja constitucionalmente vinculado a configurar a medida de limitação da acumulação de pensões tendo em conta o rendimento global que decorre dessa acumulação a partir do disposto no do artigo 13.º da CRP.
Por todas estas razões, desta decisão, como das outras tomadas neste caso no sentido da inconstitucionalidade, radicalmente me afasto.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da posição assumida pela maioria, quanto ao juízo de (in)constitucionalidade formulado relativamente às normas dos artigos 33.º e 115.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro de 2013, que aprova o orçamento de Estado para 2014, concluindo pela sua não inconstitucionalidade, com os fundamentos que de seguida se explicitam.
1. Quanto à inconstitucionalidade do artigo 33.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 (redução remuneratória):
Considerou a posição que obteve vencimento no acórdão que, no plano normativo, a questão da validade constitucional da medida inscrita no artigo 33.º da LOE 2014 não seria substancialmente diversa daquela que foi apreciada por este Tribunal, no acórdão n.º 187/2013, a propósito das medidas de redução remuneratória, associadas à suspensão do pagamento do subsídio de férias dos trabalhadores do setor público.
Essa similitude deteta-se na natureza das medidas em causa – mormente no seu caráter transitório, perpassado por um objetivo imediato de consolidação orçamental - e ainda na circunstância de, mantendo-se inalteradas as circunstâncias da execução orçamental, as medidas introduzidas em 2014 terem uma carga ablativa de “sentido ambivalente” às estabelecidas (cumulativamente) na LOE 2013.
Atentos estes pontos de contato, não surpreende que a conclusão da maioria quanto à validade constitucional da medida em causa não tenha sofrido alterações. Tal posição, recorde-se, não contesta a razoabilidade do fundamento oferecido pelo legislador para justificar a diferença de tratamento introduzida entre aqueles que recebem por verbas públicas e aqueles que atuam no setor privado, mas impugna – antes – a razoabilidade da medida da diferença instituída por esse tratamento (igualdade proporcional). A “descoberta” dessa desrazoabilidade prende-se, por um lado, com a evidência da dispensabilidade da solução encontrada pelo legislador no quarto ano consecutivo de execução orçamental, e, por outro, com a medida do sacrifício exigido aos trabalhadores do setor público, que se qualifica de desproporcionada e excessiva.
Discorda-se deste juízo pelas razões já apontadas na declaração de voto anexa ao acórdão n.º 187/2013. Limitamo-nos, por isso, a enfatizar alguns aspetos. Como ali se disse, a matéria cuja validade constitucional se aprecia não integra o leque daquelas em que se devolve ao legislador o ónus de demonstrar a bondade das suas escolhas (sobre este ónus, v., por ex., o acórdão n.º 632/2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Tampouco o critério de diferenciação mobilizado pelo legislador justifica, da parte do Tribunal, um crivo mais severo do que aquele de que geralmente se lança mão na apreciação do “conteúdo mínimo” do princípio da igualdade, proposição que tem, importa sublinhar, um extensíssimo lastro na jurisprudência constitucional sobre a matéria (v. Maria Lúcia AMARAL, “O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Armando Marques Guedes, Coimbra Editora, 2004, p. 50).
Destarte, tendo em conta a prerrogativa de avaliação de que quer o executivo (autor da proposta de Orçamento), quer o legislativo democraticamente legitimado devem beneficiar em matéria financeira e orçamental, crê-se que os argumentos avançados no que concerne a evidência da dispensabilidade da medida e a existência de soluções alternativas para a redução do deficit continuam a situar-se no plano daquilo que é “jurisdicionalmente indemonstrável”.
2. Quanto à inconstitucionalidade do artigo 115.º da Lei do Orçamento de Estado para 2014:
Discordei ainda do entendimento perfilhado pela maioria sobre a inconstitucionalidade do artigo 115.º da LOE 2014, que institui uma contribuição sobre prestações de doença e de desemprego.
Como ponto prévio, ainda que não determinante, importa destacar que da fundamentação do acórdão n.º 187/2013 decorre - assim o cremos - que o juízo de inconstitucionalidade nele proferido a propósito da norma constante do artigo 117.º da LOE 2013 se ficou a dever, em exclusivo, à ausência de qualquer isenção de base quanto às prestações de desemprego e doença afetadas. Esta conclusão, mesmo depois de estabelecida a mencionada isenção de base, não torna a medida imune ao escrutínio constitucional. Não nos convencem, todavia, as dúvidas levantadas pelo acórdão quanto à necessidade e proporcionalidade em sentido estrito das contribuições instituídas. Vejamos.
É consabido, e o acórdão não o contraria, que a Constituição não assegura o direito a um concreto montante de assistência material, pelo que a redução do quantum das prestações em causa não se assume como uma medida restritiva do direito dos trabalhadores à assistência material em situação de desemprego e de doença (cfr. os artigos 63.º, n.º 3 e 59.º, n.º 1, alíneas e) e f), da Constituição). Visto que a medida ora analisada salvaguarda os níveis mínimos de rendimento já objeto de concretização legislativa, não há que apurar da respetiva validade à luz do direito fundamental a um mínimo para uma existência condigna. Tal dado é igualmente relevante no que concerne o escrutínio da proporcionalidade da medida, porquanto este não pode deixar de obedecer a níveis de intensidade diversos consoante em causa esteja, ou não, a restrição a um direito fundamental.
Fora desta hipótese, atento o amplo poder de conformação de que dispõe o legislador na concreta modelação do conteúdo dos direitos sociais, a censura constitucional só deverá ser dirigida a situações-limite, ou seja, aquelas em que seja possível concluir, indubitavelmente, pela violação manifesta das exigências constitucionais.
Em nosso entender, a medida inscrita no artigo 115.º da LOE 2014 não é uma dessas situações. Com efeito, atento o terreno pisado, é imprestável tentar evidenciar cabalmente a indispensabilidade da opção legislativa, concebendo a existência de outros meios menos gravosos, ou indagando do benefício orçamental proveniente da sobrecarga contributiva. Certo é que se encontra salvaguardado o nível mínimo exigido pela dignidade da pessoa humana e que a medida tem caráter transitório e excecional, não soçobrando argumentos para desmerecer as justificações fornecidas pelo Governo quanto à sua mais-valia na racionalização das despesas com prestações sociais e no combate ao deficit da segurança social.
Face ao exposto, concluímos que a opção legislativa vertida no artigo 115.º da LOE 2014 ainda se conserva dentro de um “círculo de razoabilidade” reclamado pelo princípio da proporcionalidade, não havendo, por conseguinte, violação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
J. Cunha Barbosa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencido quanto à alínea d) da decisão, pois entendo que as normas do artigo 75.º, referente a complementos de pensão, violam o artigo 56.º, n.º 3, da Constituição e, em conexão, o princípio da proteção da confiança.
Quanto ao primeiro, as razões são substancialmente as mesmas que expendi no ponto 3 da declaração que emiti no Acórdão n.º 602/2013. Como aí se disse, colocar os efeitos vinculativos de uma convenção coletiva de trabalho, «sob condição resolutiva imprópria de livre revogação [ou suspensão] por lei posterior é destruir a garantia institucional que o reconhecimento constitucional do direito à contratação coletiva subentende». Está em causa a violação, pelo legislador, do dever de respeitar os efeitos normativos resultantes de um anterior exercício da autonomia coletiva. Por isso, passam ao lado da questão todas as considerações, apoiadas no Acórdão n.º 517/98, que intentam demonstrar que a matéria dos complementos de pensão está fora do conteúdo essencial ou da reserva de contratação coletiva. Essa colocação do problema é falseadora da sua natureza, pois não está em causa a matéria regulada, mas antes a perduração da eficácia de uma anterior regulação. Para este efeito, basta que a matéria seja objeto possível de contratação coletiva, não se requerendo que seja reservada a convenção coletiva de trabalho ou de regulação necessária por este instrumento. E se há qualquer dúvida quanto à validade dos acordos coletivos, a questão é para ser dirimida na esfera judicial e não pelo exercício do poder legislativo.
Sobretudo no que diz respeito aos trabalhadores que já beneficiam dos complementos de pensão, a destruição da garantia que uma convenção coletiva disponibiliza representa também uma lesão particularmente grave da confiança legitimamente depositada na aplicação do regime acordado. Com a passagem à reforma, os trabalhadores tornam-se titulares do direito de crédito às prestações correspondentes aos complementos de pensão, o que outra coisa não significa, para o que aqui interessa, do que o direito a confiar que elas lhes serão pagas. A intervenção do legislador retira-lhes (pelo menos temporariamente) esse direito, numa fase em que esses trabalhadores já não estão em condições de ajustar a sua conduta ao novo quadro legal, ficando definitivamente presos a opções tomadas no passado, por investimento na confiança, agora irremediavelmente frustrado. E nem se diga, como argumenta o Acórdão, que foram as empresas e não o Estado a celebrar os acordos coletivos, pelo que não pode ser imputada ao Estado a criação de uma situação de confiança. A promiscuidade, existente no passado, entre as empresas públicas do tipo das envolvidas e o Estado-Administração não autoriza semelhante separação, no quadro da tutela constitucional da confiança, legitimando, pelo contrário, a “desconsideração da personalidade jurídica” das entidades empresariais outorgantes.
Joaquim de Sousa Ribeiro
gratificaçoes
gostaria de saber se as gratificações são obrigatórias descontar para a segurança social?