A União Europeia tem, desde o fim de 2024, um quadro comum para regular o mercado de criptoativos. Em Portugal, porém, a aplicação prática ficou aquém do calendário europeu. Falta o diploma nacional que designa o supervisor e operacionaliza o Regulamento dos Mercados de Criptoativos. O Governo garante ter o texto pronto para avançar, enquanto empresas e utilizadores apontam incerteza e perda de competitividade.
MiCA em poucas palavras e onde Portugal ficou para trás
O MiCA é o regulamento europeu que estabelece regras harmonizadas para emitentes de criptoativos e para os prestadores de serviços (exchanges, custódia, negociação, entre outros), com foco em transparência, proteção do investidor e supervisão.
Após acordo político em 30 de junho de 2022, o texto foi aprovado e entrou em vigor faseadamente, tornando-se plenamente aplicável na UE a partir de 30 de dezembro de 2024. É neste enquadramento que começam a surgir interseções com fenómenos como o dos pagamentos digitais a nichos de entretenimento online vinculados ao ecossistema cripto.
Há segmentos que cruzam tecnologia, meios de pagamento e jogos de perícia. Por exemplo, o poker bitcoin, onde as operações de depósito e levantamento com cripto exigem clareza regulatória e salvaguardas de proteção ao consumidor, exatamente o tipo de padrões que o MiCA pretende uniformizar na UE.
Em Portugal, a falha não está no regulamento europeu, que é diretamente aplicável, mas sim na ausência, até agora, do diploma que indica quem autoriza e supervisiona os operadores, passo indispensável para aceitar pedidos de licença e ativar o regime transitório.
Quem deve supervisionar e porque é que isso atrasou tudo
O impasse concentrou-se na definição institucional. Em janeiro, o Governo respondeu que o atraso se deveu ao tempo que CMVM e Banco de Portugal levaram a emitir contributos técnicos, deixando o processo sem a peça crucial para abrir as autorizações sob MiCA.
Em maio, Portugal continuava entre os poucos Estados-membros sem execução nacional, o que alimentou críticas do setor. Enquanto isso, a Representação da Comissão Europeia em Portugal recordou, em julho desse ano, os vários processos de infração em curso.
Embora a nota não fosse exclusiva a cripto, reforçou a pressão de Bruxelas para cumprir calendários europeus em matérias regulatórias sensíveis. O caso MiCA tornou-se, assim, um teste à capacidade de execução legislativa no tempo certo.
Sem diploma nacional, não há autoridade formalmente designada para aceitar e decidir pedidos de autorização MiCA e, sem isso, o regime transitório, pensado para operadores já ativos poderem continuar a funcionar até à decisão final, no máximo até 1 de julho de 2026, fica, na prática, paralisado.
Os Estados-membros podiam, inclusive, encurtar ou não aplicar o transitório se o quadro doméstico fosse menos exigente do que o europeu. Para as empresas, isto traduz-se em incerteza jurídica, planejamento travado e risco de deslocalização para jurisdições da UE onde a porta de autorização já está aberta.
Para os utilizadores, há um hiato entre a promessa de maior proteção (segregação de ativos, regras de conduta, governação) e a sua materialização no dia a dia, que depende do arranque das licenças. O Executivo tem o diploma nacional de execução do MiCA fechado, a aguardar agendamento para discussão interna e, depois, envio à Assembleia da República.
O mercado atual: Quem já está e quem quer entrar
Portugal tinha 11 entidades registadas para operar no segmento cripto, modelo pré-MiCA, número que dá uma ideia da base instalada que pretende migrar para o novo licenciamento europeu, e de potenciais entrantes que aguardam previsibilidade.
Sem um supervisor designado, pedidos e investimentos ficam suspensos num limbo regulatório que não existe noutros mercados europeus onde o processo foi concluído. Na ótica do utilizador final, o MiCA trará exigências mais claras sobre separação de ativos de clientes e da própria empresa, comunicação de riscos e governação, quando a aprovação do regulamento foi formalizada pelo Conselho da UE.
O objetivo é reduzir assimetrias de informação e harmonizar padrões mínimos de proteção. Portugal tem ambição de se estabelecer em áreas de tecnologia financeira e de infraestruturas digitais.
Uma regulação previsível, que permita licenciar operadores com celeridade e fiscalizar condutas com clareza, é condição para atrair investimento e talento, e para que a inovação conviva com a proteção do consumidor. O MiCA oferece o manual comum europeu. Cabe ao diploma nacional ligar a corrente.
Apenas as plataformas que cumprirem as novas regras poderão atuar. Até que a engrenagem portuguesa arranque, continuaremos a ver negócios a optar por outros portos europeus onde o processo já corre em velocidade de cruzeiro.
Com o supervisor designado e os formulários abertos, os operadores que atuavam legalmente antes da data de aplicação europeia poderão pedir autorização e, se cumprirem, beneficiar do regime transitório até 1 de julho de 2026.
Novos entrantes terão um caminho claro de licenciamento. Para o utilizador, isto deve traduzir-se em ofertas com informação padronizada, regras de custódia mais estritas e mecanismos de reclamação e supervisão definidos, um novo normal que se aplicará tanto a grandes plataformas como a serviços mais de nicho que toquem cripto.