Declaração de voto - J. Cunha Barbosa
1.
Divergi do juízo adotado pela maioria quanto à inconstitucionalidade dos artigos 2.º e 4.º, n.ºs 2 a 3, do Decreto n.º 264/XII, da Assembleia da República, consideradas conjugadamente, por entender que as normas neles contidas não comportam violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
2.
Os cortes remuneratórios introduzidos pelo legislador naquele Decreto distinguem-se dos anteriores num duplo plano. Em primeiro lugar, apesar de ter “caráter transitório” (cfr. o artigo 1.º, n.º 1), a medida em causa assume natureza plurianual, destinando-se a vigorar não só em 2014, mas também em 2015, 2016 e 2017, até à sua total extinção em 2018. O mencionado artigo 4.º estabelece as regras a que deve obedecer a gradual reversão do corte remuneratório. Em segundo lugar, o contexto no quadro do qual a redução remuneratória é efetuada é também ele distinto, visto que, concluído o Programa de Assistência Económica e Financeira (“PAEF”), reabre-se para o Estado português a necessidade de estrito cumprimento das regras europeias em matéria orçamental, plasmadas no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no Protocolo e nos Regulamentos que desenvolvem o Pacto de Estabilidade e Crescimento (“PEC”) e ainda no Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (“Tratado Orçamental”). Em síntese, esse adimplemento passa pela correção, já em 2015, da situação de deficit excessivo em que Portugal se encontra (para -2,5% do PIB), e a partir daí, pela aplicação da vertente corretiva do PEC, algo que implicará o cumprimento de uma trajetória de ajustamento do saldo estrutural até atingir o objetivo de médio prazo atualmente fixado em -0,5% do PIB (cfr. o Documento de Estratégia Orçamental 2014-18, o Parecer Técnico n.º 2/2014 sobre o Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018, da Unidade Técnica de Apoio Orçamental, de 21.05.2014, e o Relatório do Conselho de Finanças Públicas n.º 3/2014, de maio 2014).
3.
Considerou maioritariamente o coletivo que os artigos 2.º e 4.º, n.ºs 2 e 3 do Decreto n.º 264/XII, conjugadamente, na medida em que prevêem que a redução remuneratória dos trabalhadores do setor público permaneça para lá de 2015 em proporções não totalmente especificadas, violava o princípio da igualdade, nas suas dimensões de igualdade perante os encargos públicos e de igualdade proporcional. Manteve-se, pois, fiel ao standard já adotado noutra sede (cfr. os Acórdãos n.ºs 353/2012, 187/2013 e 413/2014, disponíveis em www.tribunalcontsitucional. pt), em virtude do qual concluiu que, não obstante existir fundamento (“particularismo distintivo”) para alguma diferença de tratamento entre trabalhadores pagos por verbas públicas e os restantes trabalhadores, a medida de diferenciação seria inequitativa e desproporcionada, não tendo as razões invocadas pelo legislador valia suficiente para justificar a dimensão de tal diferença, sobretudo tendo em conta a possibilidade de recurso a soluções alternativas. O fim do PAEF e a atenuação do contexto de excecionalidade que o mesmo importava para as finanças nacionais acentuariam a obrigação deste desfecho.
Não obstante as referências por vezes feitas a um “critério de evidência”, o qual indiciaria um escrutínio de menor intensidade (cfr. o Acórdão n.º 353/2012), é patente que o Tribunal se vem afastando progressivamente, desde o acórdão n.º 396/2011, de um controlo da igualdade como aquele que é ínsito ao princípio da proibição do arbítrio. Esse afastamento surpreende-se, entre outros aspetos, na insistência quanto à existência de soluções alternativas – maxime, no juízo quanto à dispensabilidade da redução remuneratória na prossecução do objetivo de consolidação orçamental – circunstância que indicia um entendimento sobre o teste da “necessidade” dificilmente compaginável com a margem de apreciação de que o legislador deve necessariamente dispor em matérias complexas e que envolvem prognoses empíricas e normativas.
4.
Mesmo tomando como adequado o standard adotado, no cerne da nossa divergência encontra-se, porém, o modo como o coletivo apreciou a “justa medida” subjacente à manutenção do corte remuneratório para os anos de 2016, 2017 e 2018, isto é, o modo como ponderou o acréscimo de sacrifício trazido pela redução e os interesses públicos convocados pelo legislador. Alguns aspetos merecem, neste ponto, a nossa particular atenção.
4.1.
Um deles prende-se com o peso a conferir ao interesse público subjacente à redução remuneratória. Não se veem razões para contestar o juízo empreendido pelo legislador quanto à necessidade de prosseguir na rota de consolidação orçamental. Esse interesse é ditado não só por obrigações assumidas pelo Estado português no quadro da integração europeia (cfr. o Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 84/12, e incorporado na Lei de Enquadramento Orçamental, na sua redação atual), mas também, independentemente de tais vínculos, por uma certa conceção de finanças públicas, assente num direito financeiro responsável e intergeracionalmente equitativo.
Conforme avançado supra, o contexto de aplicação da redução remuneratória em 2016, 2017 e 2018 não é o contexto de excecionalidade ditado pelo Programa de Assistência Económico-Financeira. São, com efeito, inegáveis e incomparáveis os constrangimentos por este impostos como condição do financiamento das tarefas fundamentais do Estado português. Sucede, no entanto, que o esforço de consolidação orçamental não se esgotou com aquele programa, resultando igualmente de outros compromissos que o Governo, naturalmente, ambiciona honrar.
4.2.
Por outro lado, a redução remuneratória em causa, revertida nos termos do artigo 4.º do Decreto, não ascende a um nível de onerosidade tal que permita continuar a sufragar a tese de que se está perante uma diferenciação de tratamento “acentuada e significativa” entre trabalhadores do setor público e os demais.
Na verdade, os cortes que se prefiguram valer para os exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018 traduzem uma ablação significativamente menor do que aquela que esteve subjacente às Leis do Orçamento para 2012, 2013 e 2014, e certamente menor, pressuposta a reversão, do que a introduzida por banda da LOE 2011. Acresce ainda o facto de o Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018 não prever qualquer redução da carga fiscal atualmente vigente – leia-se, de medidas de alcance universal, impostas pela via tributária – e de salvaguardar, ainda, o progressivo desbloqueamento das progressões e promoções das carreiras nas administrações públicas (cfr. o Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018, p. 41). Mais acresce a salvaguarda de a reversão total vir a ocorrer até 2018, ou seja, como se afirma no n.º 3 do artigo 4.º, no prazo máximo de quatro anos.
5.
Com base nestes elementos, sufragar-se-ia uma ponderação com diferente desfecho, concluindo, por conseguinte, pela validade constitucional da medida prevista nos artigos 2.º e 4.º, n.ºs 2 e 3 do Decreto, conjugadamente, à luz do princípio da igualdade. — J. Cunha Barbosa.