Declaração de voto - Pedro Machete
1.
As normas dos artigos 2.º e 4.º do Decreto n.º 264/XII da Assembleia da República concretizam normativamente a opção político-orçamental de contenção da massa salarial das Administrações Públicas em ordem a alcançar as metas quanto à redução do défice orçamental e da dívida pública definidas para Portugal no quadro de coordenação e governação da União Económica e Monetária, em geral, e do Pacto de Estabilidade e Crescimento, em especial.
De acordo com a Recomendação do Conselho de 21 de junho de 2013 – uma «recomendação específica por país» (country-specific recommendation) emitida ao abrigo do artigo 126.º, n.º 7, do TFUE e prevista no âmbito da vertente corretiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento (cfr., em particular, o Regulamento (CE) n.º 1467/97 do Conselho, de 7 de julho) – Portugal deve reduzir o seu défice orçamental nominal para 4% do PIB em 2014 e 2,5% do PIB em 2015, de modo a encerrar o Procedimento por Défice Excessivo (PDE) iniciado em 2009 (e suspenso durante a vigência do PAEF). Porém, uma vez atingido esse objetivo, a vertente preventiva do citado Pacto (cfr., em especial, o artigo 121.º do TFUE e o Regulamento (CE) n.º 1466/97 do Conselho, de 7 de julho) prevê, além da manutenção do saldo orçamental nominal abaixo do referencial de 3% do PIB, o cumprimento de uma trajetória de ajustamento do saldo orçamental estrutural até à consecução do «objetivo de médio prazo» (OMP) – no que se refere a Portugal, um saldo estrutural definido em -05% do PIB a atingir em 2017; sobre o OMP, cfr. o artigo 2.º-A do Regulamento (CE) n.º 1466/97). Enquanto não for alcançado esse objetivo, o ajustamento anual do saldo estrutural não pode ser inferior a 0,5% do PIB e a taxa líquida de crescimento da despesa pública encontra-se fortemente condicionada (cfr. o artigo 12.º-C da Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto – Lei de Enquadramento Orçamental ou LEO – e o artigo 72.º-B e seguintes do mesmo diploma; v. também o artigo 3.º do Tratado Orçamental).
No tocante à redução da dívida pública, com o encerramento do PDE inicia-se um período transitório de três anos (2016-2018) que antecede a aplicação da regra de correção do excesso de dívida ao ritmo de 5% ao ano (cfr. o artigo 10.º-G da LEO). Durante esse período, e em ordem a progredir satisfatoriamente na redução do rácio da dívida, o saldo orçamental estrutural deve ser ajustado de acordo com certos critérios quantitativos (cfr., em especial, o ponto 4.4., pág. 12 e seguintes, do Relatório do Conselho de Finanças Públicas n.º 3/2014 – Análise do Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018).
Confirma-se, por conseguinte, a ideia já afirmada na minha declaração de voto junta ao Acórdão n.º 413/2014 de que «o termo do PAEF não é um “ponto de chegada”, mas antes simples “estação” num caminho (longo) em direção à situação orçamental sustentável. E, até lá, a liberdade conformadora do legislador orçamental encontra-se – ou continua – fortemente limitada» (cfr. o respetivo n.º 1.1.). Na verdade, os interesses conexionados com a redução do défice orçamental e com a redução da dívida pública – que, aliás, o presente acórdão também não deixa de reconhecer (cfr. o início dos respetivos n.os 13 e 17) – estão suficientemente identificados e quantificados, e constituem, pela sua importância no plano da economia nacional e da integração europeia, interesses públicos de primeira grandeza suscetíveis de fundarem políticas públicas de médio e longo prazo adequadas à sua prossecução. De resto, isso mesmo é confirmado, a propósito da análise do Documento de Estratégia Orçamental 2014-2018 (DEO 2014-2018), por um órgão técnico independente, como o Conselho de Finanças Públicas (cfr. Relatório cit., p. ii):
«[O]s objetivos orçamentais traçados pelo DEO/2014 são adequados ao estado das finanças públicas e da economia. A necessidade de prosseguir na rota de consolidação orçamental e de continuar a melhorar os resultados alcançados durante a vigência do programa de assistência financeira é indiscutível.»
Sublinhe-se, por outro lado, que o referido balanço das perspetivas macroeconómicas de Portugal também não pode deixar de relevar ao nível de eventuais expetativas quanto a uma rápida reversão de medidas impositivas de sacrifícios de natureza transitória: nesse plano, e uma vez mais, não só o terminus do PAEF não é sinónimo de regresso ao statu quo ante, como ainda há que percorrer várias outras etapas no processo de ajustamento (pelo menos: encerramento do PDE em 2015, consecução do OMP em 2017 e aproveitamento racional do período transitório pós-PDE de 2016 a 2018). Acresce que inexiste qualquer evidência – aliás, bem pelo contrário, a dar crédito à posição assumida pelo Conselho de Finanças Públicas – de que o esforço inerente àquela opção político-orçamental seja, em si mesmo considerado, inadequado ou excessivo.
2.
As razões justificativas da mencionada opção político- orçamental e do seu recorte específico são enunciadas no DEO 2014-2018 nos seguintes termos (cfr. pp. 39-40):
«Tendo assegurado a conclusão formal do 11.º exame regular, a preparação do Documento de Estratégia Orçamental para o período pós-Programa implicou uma reavaliação das perspetivas de médio-prazo em termos de política orçamental. Esta reavaliação assentou, em particular, na importância de iniciar a reversão de medidas de carácter transitório, executadas num contexto de emergência financeira.
Tendo em conta os compromissos assumidos no quadro europeu e a importância de garantir a sustentabilidade das finanças públicas, a questão principal residiu na determinação do espaço orçamental disponível para iniciar o processo de reversão, atendendo a dois pressupostos- chave: (i) a compensação do impacto orçamental da decisão de forma a cumprir o limite para o défice em 2015; e (ii) a opção por medidas de carácter permanente para assegurar a continuidade do ajustamento no futuro.
Neste contexto foram tomadas as opções que se seguem.
(i) Reversão da redução remuneratória nas APs
Desde 2011, os trabalhadores do sector público têm a sua remuneração reduzida pela aplicação de uma taxa progressiva, gerando assim um quadro no qual os trabalhadores com salários mais baixos são protegidos e os trabalhadores que auferem remunerações mais elevadas são chamados a contribuir com um maior esforço para a consolidação orçamental. A aplicação destas reduções deve ser de carácter transitório, uma vez que introduziu uma distorção excessiva entre trabalhadores menos qualificados e aqueles com maiores qualificações e responsabilidades.
A disciplina orçamental exige que a massa salarial das Administrações Públicas (APs) permaneça contida. Porém, a redução no número de funcionários públicos que tem ocorrido por força da reduzida taxa de substituição das aposentações e da execução de programas de rescisões por mútuo acordo, permitiu e continuará a permitir a redução da massa salarial por efeito quantidade. Assim, cria-se espaço orçamental para reverter de forma gradual a medida de redução remuneratória atualmente em vigor, sem que tal resulte da massa salarial agregada nas APs.
Deste modo, o aumento de eficiência e de produtividade na APs, traduzido na prestação de serviços eficientes e de qualidade com menos recursos, refletindo também o investimento na desmaterialização de processos, centralização de serviços e racionalização de procedimentos, reverterá em benefício também dos trabalhadores das APs.
Nesses termos, o Governo aprovou, e pretende discutir com os representantes dos trabalhadores, a reversão gradual das reduções remuneratórias, tendencialmente num horizonte de cinco anos. Em particular, prevê-se:
• Para 2015, a reversão de 20% da taxa de redução aplicada atualmente;
• A partir de 2016, a manutenção do valor da massa salarial das APs, com os efeitos da diminuição do número de efetivos e outros ganhos de eficiência a condicionar o ritmo da reversão da redução remuneratória.»
É esta a razão fundamental quer para a unidade e incindibilidade do programa normativo dos artigos 2.º e 4.º do Decreto n.º 264/XII, quer para a indeterminação relativa do ritmo da reversão da redução remuneratória a partir de 2015. De qualquer modo, é de ressaltar a garantia de uma reversão total no prazo máximo de quatro anos, a qual é reforçada pelo reconhecimento expresso do efeito de distorção associado à medida de redução remuneratória aplicada desde 2011 aos trabalhadores das Administrações Públicas. Com efeito, resulta da interpretação conjugada daqueles dois preceitos, e considerando ainda a transitoriedade expressamente afirmada no artigo 1.º, que:
(i) A redução remuneratória aplicável aos trabalhadores em causa – e que tem um figurino semelhante ao estabelecido no artigo 19.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 e dezembro (LOE 2011) – pode vigorar durante os restantes meses do corrente ano de 2014 e até ao fim de 2018;
(ii) Em 2019 tal redução remuneratória não será aplicada;
(iii) Os orçamentos do Estado de 2015 a 2018 deverão fixar uma percentagem de reversão da mesma redução remuneratória em função da disponibilidade orçamental, sendo que a percentagem aplicável em 2015 deverá ser de 20%.
Por outro lado, a propósito do teste da necessidade ou indispensabilidade da medida aferida com referência à respetiva proporcionalidade, o Governo salienta o seguinte na Nota Técnica junta ao presente processo (v. p. 77):
«[Para a consecução da] redução sustentada do défice e da despesa pública nos termos acordados com as instâncias internacionais, que permita assegurar o financiamento do Estado português[,] não sobra outra alternativa viável ao legislador, que não passe pela redução das remunerações do universo dos trabalhadores, agentes e titulares de cargos públicos que aufiram rendimentos através de verbas públicas. As alternativas que, no plano hipotético, se poderiam divisar implicariam um aumento da carga fiscal – que, entretanto, atingiu níveis que dificilmente podem ser ultrapassados sem consequências nefastas para a economia, designadamente para o aumento do desemprego – ou a redução da despesa pública (que deixasse intocados salários e pensões), o que só se imagina possível – atendendo aos valores necessários – com uma afetação séria da qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos».
Esta estimativa quanto ao nível da carga fiscal é, além disso, expressamente corroborada na parte conclusiva do mencionado Relatório do Conselho de Finanças Públicas n.º 3/2014 (p. ii):
«A definição e o cumprimento de limites de despesa é essencial para assegurar a estabilidade e sustentabilidade das finanças públicas, sobretudo quando o país esgotou o espaço para o crescimento da dívida pública e da carga fiscal e tem de contar com investimento privado de qualidade, virado para os sectores transacionáveis e para o aumento da produtividade, com vista a concretizar a estratégia que o DEO/2014 corretamente enuncia.»
3.
Atentas as mencionadas justificações, e considerando de modo particular a imprevisibilidade para além de certos limites da evolução da economia, não pode deixar de se considerar a medida de reversão das reduções remuneratórias aplicadas aos trabalhadores das Administrações Públicas como suficientemente caracterizada, fundamentada e balizada: a mesma tem um termo inicial e um termo final definidos; e tem igualmente um sentido geral que só não é mais densificado, nomeadamente no que se refere ao ritmo da reversão da redução remuneratória durante o triénio 2016-2018, por razões de prudência relacionadas com a necessidade de assegurar a contenção do valor da massa salarial a suportar por aquelas entidades, que são atendíveis e, em si mesmas consideradas, também são razoáveis. Na verdade, sendo o objetivo da política de emprego público (com a necessária projeção orçamental no médio e longo prazo) a reversão da redução remuneratória aplicada aos trabalhadores das Administrações Públicas sem, ao mesmo tempo, aumentar o valor da respetiva massa salarial, tornase evidente a interdependência entre o ritmo da reversão da redução remuneratória e a diminuição do número de efetivos e outros ganhos de eficiência, conforme explicitado no DEO 2014-2018: o espaço orçamental para a reversão das reduções remuneratórias é criado em função da «redução da massa salarial por efeito quantidade» imputável àqueles dois fatores. Existe ainda um incentivo legal forte no sentido de os órgãos superiores das Administrações Públicas acelerarem o processo do seu redimensionamento no respeitante ao número de efetivos e aos mencionados ganhos de eficiência, já que em 2019 a lei prevê a cessação das reduções remuneratórias.
Comparando com a situação atual, e que dura desde 2011 devido às sucessivas renovações em leis orçamentais, verifica-se que o legislador, reconhecendo embora a subsistência de um quadro de necessidade de redução urgente da despesa pública, se compromete com um dado horizonte temporal para fazer cessar a política de redução das remunerações dos trabalhadores das Administrações Públicas. Atentos os diversos fatores condicionantes da reversão de tal política – os quais em larga medida escapam ao controlo do legislador –, não se afigura desrazoável salvaguardar alguma flexibilidade quanto ao ritmo a observar na concretização da mesma reversão.
Pelo exposto, não parece que o grau de indeterminação que caracteriza o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto n.º 264/XII se deva ter por excessivo. Tal indeterminação, além de balizada pelos termos inicial e final da reversão das reduções remuneratórias, encontra a sua razão de ser – que é objetivamente justificada – no interesse público de contenção do valor da massa salarial das Administrações Públicas ao nível atual até dezembro de 2018.
4.
No que se refere à persistência de reduções remuneratórias aplicáveis por força da lei aos trabalhadores das Administrações Públicas, durante os restantes meses do corrente ano de 2014 e, possivelmente, até ao final de 2018, e à sua avaliação à luz do princípio da igualdade, mantenho que o Tribunal Constitucional, ao efetuar o juízo correspondente com base no artigo 13.º da Constituição, está habilitado a escrutinar tanto a racionalidade do fundamento invocado pelo legislador para conferir a diferentes grupos de cidadãos tratamentos jurídicos diversos, quanto a, mais intensamente, a razoabilidade da medida da diferenciação (cfr. a declaração de voto conjunta feita no Acórdão n.º 187/2013). No primeiro caso, aplicável a diferenças de tratamento de menor intensidade e afetando grupos de pessoas em razão de determinadas situações, o princípio da igualdade vale, sobretudo, como proibição do arbítrio, cujo respeito é controlado com base num critério de evidência (a desigualdade é proibida, caso não se funde num qualquer fundamento racional e objetivo); no segundo caso, aplicável a diferenciações jurídicas mais intensas que atingem grupos de pessoas em razão de aspetos pessoais ou que interferem com a respetiva autonomia pessoal, o princípio da igualdade vale como proibição de tratamento desigual na ausência de uma justificação substancial e objetiva (a desigualdade é permitida se e na medida em que se mostre justificada com base num fundamento substancial e objetivo). O controlo do respeito do princípio da igualdade implica, então, um juízo de proporcionalidade destinado a verificar: (i) se o fim – interno (consideração de diferenças objetivas preexistentes invocadas para justificar a diferenciação jurídica estabelecida) ou externo (criação de diferenças de tratamento pelo próprio legislador em vista de certo fim, determinando ele próprio a espécie e o peso de tais diferenças) – visado pela desigualdade de tratamento é legítimo; (ii) se tal desigualdade é adequada e necessária para a prossecução desse fim; e (iii) se existe uma justa medida ou equilíbrio entre a importância do fim prosseguido e a extensão da diferenciação jurídica (sobre a aplicação do princípio da igualdade na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão e as insuficiências da formulação da chamada “Nova Fórmula”, cfr. a síntese de Pieroth, Schlink, Kingreen e Poscher, Grundrechte – Staatsrecht II, 29. Aufl., C.F. Müller, Heidelberg, 2013, Rn. 470 e ss., pág. 113 e ss.).
4.1.
Em vista do fim visado pelo autor das normas dos artigos 2.º e 4.º do Decreto n.º 264/XII – recorde-se: a consolidação orçamental por via da manutenção do valor da despesa com pessoal –, as reduções remuneratórias em apreciação, na sua generalidade, não podem ser consideradas arbitrárias, já que, para aqueles efeitos, os rendimentos com origem em verbas públicas se distinguem essencialmente dos rendimentos com outras origens – justamente porque se trata de rendimentos provenientes do orçamento do Estado, o seu aumento ou diminuição repercute-se imediatamente no nível da despesa pública – sendo a sua diminuição, por isso, adequada àquele objetivo (cfr. os Acórdãos n.os 396/2011, 353/2012 e 187/2013).
4.2.
Contudo, tais razões já não valem prima facie em relação àquelas pessoas que tenham um vínculo com entidades abrangidas na enumeração do artigo 2.º, n.º 9, do Decreto n.º 264/XII, mas cujas remunerações, não sendo pagas por via do orçamento do Estado, também não relevem como despesa pública. Nesses casos, a redução das remunerações não contribui para a consolidação orçamental por via da redução da despesa pública e, consequentemente, tão-pouco contribui para o esforço de redução da dívida pública. É o que sucede, por exemplo, com os gestores públicos e os trabalhadores de empresas públicas abrangidos, respetivamente, pelas alíneas o) e r) do citado preceito, desde que as empresas em que exerçam funções: (i) sejam qualificáveis como «produtor mercantil », nos termos e para os efeitos do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (cfr. quanto ao SEC 95, o Regulamento (CE) n.º 2223/96 do Conselho, de 25 de junho, Anexo A, ponto 2.68; e quanto ao SEC 2010, o Regulamento (UE) n.º 549/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio, Anexo A, ponto 20.05); e (ii) não tenham sido «reclassificadas», conforme previsto no artigo 2.º, n.º 5, da LEO.
A falta de adequação entre a redução remuneratória aplicada a essas pessoas e o fim invocado pelo legislador para a justificar inculca que tal medida, nessa parte, não possa deixar de ser tida como arbitrária.
Porém, como este aspeto implica ponderações e desenvolvimentos distintos dos realizados nos Acórdãos n.os 396/2011, 353/2012, 187/2013 e 413/2014 e o pedido fiscalização preventiva da constitucionalidade se reporta apenas à suscetibilidade de violação de princípios e normas constitucionais – como, entre outros, o princípio da igualdade – «tal como resulta da interpretação que destes princípios vem sendo feita pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, em especial nos acórdãos n.º 353/2012, n.º 187/2013 e n.º 413/2014» (cfr. o n.º 4.º do requerimento), entendo que, sob pena de violação do princípio do pedido, tal matéria não deve ser objeto de decisão no presente processo.
4.3.
Quanto à avaliação da razoabilidade da medida de diferenciação, e considerando como termo de comparação único a proveniência (pública/não pública) dos rendimentos, verifica-se não ser possível determinar objetivamente a medida da diferença e, por conseguinte, o limiar a partir do qual o “limite do sacrifício” de quem é tratado diferenciadamente se pode considerar ultrapassado.
Prosseguindo o fim de interesse nacional de redução da despesa pública – a consolidação orçamental pelo lado da despesa –, o legislador decidiu diminuir os rendimentos de quem recebe por verbas públicas, criando ele próprio uma desigualdade (sucedendo que os demais cidadãos não podem sequer ser afetados por tais medidas, sendo-o embora, e porventura juntamente com alguns que fazem parte do primeiro grupo, afetados por muitas outras medidas igualmente destinadas à consolidação das contas públicas). Simplesmente, dada a diversidade de medidas adotadas em ordem à consolidação orçamental e o diferente modo como todos foram por elas atingidos, não é possível estabelecer comparações e, consequentemente, aferir da razoabilidade de eventuais diferenças de tratamento.
Aliás, como notam os Autores acima referidos – ob. cit., Rn. 473 e 474, pág. 114 –, estando em causa fins externos, «a justificação [para a diferença de tratamento jurídico] não pode localizar-se nas próprias diferenças [criadas pelo legislador], mas tão só nos fins por ele prosseguidos com tal diferenciação». Mais: a avaliação do teste da necessidade ou indispensabilidade da medida acaba por desempenhar, nos casos em que a diferença é criada pela própria medida legislativa – e independentemente de se tratar de uma diferenciação estabelecida in melius ou in peius –, um papel menos relevante do que o que lhe pertence na avaliação da proporcionalidade de restrições a direitos, liberdades e garantias, já que, para o fim visado pelo legislador – um fim externo, portanto –, existem por via de regra múltiplas alternativas que afetam de modo diverso as pessoas integradas num ou noutro dos grupos que resultam da aplicação daquela medida. Em tais situações, será suficiente para formular um juízo negativo sobre a violação do princípio da igualdade que não se divise uma alternativa à medida diferenciadora que, sendo igual ou menos onerosa para o Estado, seja cumulativamente: (i) mais eficaz na prossecução do fim visado; e (ii) menos prejudicial para o grupo de pessoas desfavorecido em consequência da diferenciação jurídica em análise (cfr. Autores cits., ob. cit., Rn. 475, pág. 114).
Ora, no caso sujeito não se vislumbra uma alternativa que cumpra todas essas condições. Vale, por isso, também aqui a consideração feita na declaração conjunta anexa ao Acórdão n.º 187/2013 (cfr. o respetivo n.º 6):
«[A maioria entende que] ao aumentar a carga fiscal, e logo, a universabilidade dos encargos (que passam assim a ser repartidos de forma mais generalizada por todos os contribuintes) mas ao persistir em sobrecarregar adicionalmente os que recebem por verbas públicas, o legislador estará a desconsiderar a igualdade “externa” que une tanto uns como outros cidadãos, excedendo com isso a justa medida em que se deveria comportar o sacrifício sofrido pelos trabalhadores públicos e pensionistas.
[…]
[Simplesmente, com este argumento] – que serve para que se responda negativamente à questão de saber se a medida legislativa se inclui ainda nos “limites do sacrifício” – o Tribunal atribuiu-se uma competência (de aferir a “justa medida” da diferença a partir de uma situação de igualdade a priorística que considera como um dado vinculante) que, segundo cremos, deveria caber ao legislador. É que, como já vimos, não é este um domínio em que a Constituição proíba a priori o estabelecimento de diferenças entre as pessoas, seja tendo em linha de conta o seu critério (pagos ou não pagos por verbas públicas), seja tendo em linha de conta o seu fim (redução da despesa pública por razões de equilíbrio orçamental).». — Pedro Machete.