Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 413/2014 - Violação do direito à propriedade 90.

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Reposição dos cortes de Subsídios de Doença e Desemprego e de Pensões de Sobrevivência pela Segurança Social

Recibos Verdes do Estado - Aplicação do Acórdão 413/2014 do Tribunal Constitucional

Um Grupo de deputados à Assembleia da República eleitos pelo Partido Socialista pediram a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 33.º, 75.º, 115.º e 117.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro de 2013, que aprova o Orçamento do Estado para 2014.

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Violação do direito à propriedade

90. Os requerentes no Processo n.º 14/2014 alegam que, na medida em que existe uma parcela das contribuições pagas, identificada e quantificada, expressamente destinada à pensão de sobrevivência, está também em causa uma eventual restrição ilegítima de um direito análogo a um direito, liberdade e garantia, pois, através das presentes medidas de “reconfiguração”, o Estado apropria-se da contrapartida para a qual, e em nome da qual, recolheu especificas verbas, desviando-as – podendo-o fazer na totalidade – da finalidade anunciada aos que a suportaram, em regra ao longo de uma vida. Há, por isso, uma restrição desproporcionada do direito à propriedade que se traduz numa violação do artigo 62.º

O Tribunal Constitucional, em termos que são plenamente transponíveis para o caso em apreço, deu já resposta a esta questão no acórdão n.º 187/13, a propósito da norma da Lei do Orçamento de Estado para 2013 que suspendeu parcialmente o pagamento do subsídio de férias a aposentados e reformados.

Afirmou-se, com base em elementos de direito comparado que foram então analisados, o seguinte:

[…] Por um lado, doutrina e jurisprudência têm procurado fundar a tutela dos pensionistas no direito de propriedade nas situações em que os catálogos de direitos fundamentais que definem o parâmetro de validade das medidas legislativas e/ou administrativas passíveis de pôr em causa os direitos adquiridos dos pensionistas não contêm disposições relativas a direitos económicos, sociais e culturais, nomeadamente, ao direito à segurança social. Por outro lado, os critérios doutrinais e jurisprudenciais avançados para delimitar as consequências da tutela das prestações sociais – incluindo as pensões – em face do direito fundamental à propriedade privada acabam por reconduzir-se, de forma mais ou menos direta, à avaliação da conformidade das medidas passíveis de afetar as posições jurídicas em causa com os princípios da proteção da confiança e, acima de tudo, da proporcionalidade, nomeadamente na sua vertente de proibição do excesso.

63. No quadro constitucional português, e ainda que se admita a existência de uma dimensão proprietária no direito dos pensionistas, a sua proteção no específico âmbito de tutela do artigo 62.º é duvidosa, tendo em conta que existe uma norma dedicada ao direito à Segurança Social, aí se incluindo o direito à pensão – artigo 63.º (recusando essa possibilidade, Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, pág. 963, com fundamento em que isso conduziria a uma alteração do conceito constitucional de propriedade). Acresce que não existe, no nosso sistema de Segurança Social, uma relação direta entre a pensão auferida pelo beneficiário e o montante das quotizações que tenha deduzido durante a sua vida ativa (embora haja uma relação sinalagmática entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações – artigo 54º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro). Isso porque o sistema previdencial não assenta num sistema de capitalização individual, mas num sistema de repartição, pelo qual os atuais pensionistas auferem pensões que são financiadas pelas quotizações dos trabalhadores no ativo e pelas contribuições das respetivas entidades empregadoras (artigo 56º da mesma Lei), de tal modo que não pode considerar-se que as pensões de reforma atualmente em pagamento correspondam ao retorno das próprias contribuições que o beneficiário tenha efetuado no passado. Regime que se torna extensivo à proteção social da função pública por via da convergência com o sistema de Segurança Social, que foi já implementado, na sequência do disposto no artigo 104º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, pelo Decreto-Lei n.º 117/2006, de 20 de junho.

A obtenção de mais forte tutela a partir do direito de propriedade, como direito ao montante da pensão fixado, encontraria fundamento se pudesse ser estabelecida a equiparação plena dos efeitos ablatórios da suspensão do pagamento de parte da pensão à expropriação por utilidade pública. Pois então estaríamos indiscutivelmente situados no núcleo essencial do que é reconhecidamente uma dimensão do direito de propriedade de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.

Mas essa equiparação não tem fundamento. Reduções parciais do quantitativo de uma prestação social não podem ser consideradas uma expropriação parcial, por dois motivos essenciais. Não se trata, em primeiro lugar, da subtração, através de um ato jurídico, de uma posição jurídica concreta, mas da determinação, em termos gerais e abstratos, do conteúdo de toda uma categoria de direitos. Não pode esquecer-se, em segundo lugar, que estamos perante uma posição com uma forte componente social, tanto do ponto de vista genético como funcional, correspondente à participação num fundo comum de solidariedade, organizado pelo Estado, a partir de contribuições de todos os trabalhadores e das entidades empregadoras, e parcialmente financiado por transferências de verbas do orçamento geral do Estado. O que, inequivocamente afasta esta posição das que têm uma exclusiva fonte pessoal, da esfera própria do titular.

[…]»

Desta jurisprudência decorre que a aplicação do novo regime de cálculo com a consequente redução do montante das pensões de sobrevivência apenas poderia colocar a questão da violação do direito à propriedade se se reconhecesse a existência de «um estrito princípio de correspetividade no âmbito da relação jurídica de Segurança Social, de modo a que existisse efetiva equivalência entre o montante das contribuições e o valor das prestações».

A análise do regime legal conduz, no entanto, «a concluir que o cálculo do montante da pensão não corresponde à aplicação de um princípio de correspetividade que pudesse resultar da capitalização individual das contribuições, mas radica antes num critério de repartição que assenta num princípio de solidariedade, princípio este que aponta para a responsabilidade coletiva das pessoas entre si na realização das finalidades do sistema e se concretiza, num dos seus vetores, pela transferência de recursos entre cidadãos – cfr. artigo 8º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), da Lei n.º 4/2007» (neste sentido, JOÃO LOUREIRO, Adeus ao Estado social? O insustentável peso do não-ter, BFD 83 (2007), págs. 168-169).

Para além de que, contrariamente ao que vem alegado, o regime de cálculo, recalculo e redução das pensões de sobrevivência, instituído pelo artigo 117.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014, não determina em nenhum caso a ablação total da pensão de sobrevivência.

Rejeitada que seja a inclusão desta medida no âmbito de proteção do n.º 2 do artigo 62.º da Constituição, uma pronúncia definitiva sobre a questão de constitucionalidade fica sempre dependente do resultado da aplicação dos parâmetros de aferição que resultam dos princípios constitucionais da proteção da confiança, da proporcionalidade e da igualdade, que servem também de fundamento ao pedido.

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