58. No caso em apreço, para aferir do respeito daquele princípio por parte do legislador, cumpre considerar eventuais situações de confiança correspondentes à expetativa de continuidade do pagamento dos complementos de pensão fundadas em contrato individual de trabalho ou instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
Contudo, em ambas as hipóteses podem suscitar-se dúvidas quanto à imputação da situação de confiança ao Estado, mormente ao Estado-legislador. Com efeito, e desde logo, o compromisso ou a assunção da responsabilidade é da empresa, não do Estado diretamente.
Acresce que, relativamente às empresas participadas e às empresas do setor empresarial local – qualquer uma destas duas categorias de empresas integra o setor público empresarial a que se refere o n.º 1 do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013 – o Estado, mesmo que considerado enquanto mero acionista, não exerce uma influência dominante. Consequentemente, nem sequer se pode falar, ainda que indiretamente, em comportamento estadual. É o primeiro teste de aplicação do princípio de proteção da confiança que dá um resultado negativo. Com efeito, relativamente a essas situações, verifica-se que o autor da norma – o Estado nas suas vestes de legislador – não encetou qualquer comportamento capaz de gerar nos trabalhadores expetativas de continuidade. Quem o fez foram empresas dominadas e controladas por entidades públicas na órbita da administração autárquica – que detém autonomia em relação ao Estado central- como é o caso das empresas locais (artigo 19.º, n.º 4, da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto); ou empresas dominadas e controladas por particulares – e, como tal, fruto da liberdade de iniciativa económica, como é o caso das empresas participadas (artigo 14.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 133/2013).
Mas mesmo no respeitante às empresas públicas do setor empresarial do Estado – sociedades de capitais maioritária ou exclusivamente públicos e entidades públicas empresariais –, não é possível pura e simplesmente desconsiderar a respetiva personalidade e autonomia.
No setor empresarial do Estado, a função acionista é exercida pelo titular da participação social, que, no caso das empresas públicas, cabe ao membro do Governo responsável pela área das finanças, em articulação com o membro do Governo responsável pelo respetivo setor de atividade, e integra, designadamente, poderes de definição das orientações a aplicar no desenvolvimento da atividade empresarial reportada a cada triénio e de definição dos objetivos e resultados, em especial, económicos e financeiros, a alcançar em cada ano e triénio, no respeito pelas orientações estratégicas e sectoriais que tenham sido emitidas pelo Governo no exercício da sua função política (artigos 37.º e 38.º do Decreto-Lei n.º 133/13).
O conteúdo e o exercício da função acionista não interfere, no entanto, com a autonomia de gestão da empresa pública e os titulares dos órgãos de administração gozam de liberdade de conformação quanto aos métodos, modelos e práticas de gestão concretamente aplicáveis ao desenvolvimento da respetiva atividade (artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 133/13).
Por outro lado, as empresas públicas regem-se prevalecentemente pelo direito privado e desenvolvem a sua atividade nas mesmas condições e termos aplicáveis a qualquer empresa privada, impondo-se nas relações estabelecidas entre as entidades públicas titulares do capital social ou estatutário e as empresas públicas detidas a total observância das regras da concorrência (artigos 14.º e 15.º do Decreto-Lei n.º 133/13). As especificidades que se poderão observar decorrem unicamente de certas condicionantes de direito público que implicam um regime especial de orientação e controlo externo, que é essencialmente realizado por via do exercício da função acionista.
O que não impede que as empresas públicas, enquanto pessoas jurídicas distintas do Estado ou das entidades públicas que detêm a influência dominante, realizem os seus interesses próprios (sociais e estatutários) e atuem segundo opções autónomas dos respetivos dirigentes.
Por outro lado, estes mesmos princípios eram aplicáveis no quadro do precedente regime empresarial do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de dezembro – agora revogado pelo Decreto-Lei n.º 133/13 –, e no domínio do qual terão sido contratualizados os complementos de pensão a que se referem as normas do artigo 75.º da LOE de 2014.
Nesse sentido, há que reconhecer um distanciamento das empresas públicas face à «entidade pública mãe» que não tem paralelo com o que resulta da criação de entidades públicas de administração indireta, as quais são instituídas num contorno de direito administrativo e que se encontram submetidas a um regime jurídico público de orientação e controlo (a superintendência e a tutela).
Ora, pela sua própria natureza, o artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013, sem prejuízo da sua função e consequente relevância orçamental, respeita à regulação da matéria conexionada com o endividamento e a autossustentabilidade das empresas públicas e enquadra-se no relacionamento jurídico de âmbito societário entre as sociedades de mão pública e os seus sócios públicos. Nessa mesma medida, tal preceito também postula uma separação e uma distância entre o Estado-legislador e o Estado-empresário, retirando desse modo base para a imputação ao primeiro de uma eventual situação de confiança criada pelo segundo. Os critérios de gestão que permitiram a atribuição dos complementos de pensão são totalmente estranhos às razões que ditam a suspensão do seu pagamento nos termos do artigo 75.º da Lei n.º 83-C/2013.
Por outro lado, não existe qualquer evidência de que tenha sido o Estado-administrador, enquanto titular da função acionista, a induzir as empresas visadas a formalizar, através de contratação coletiva, o pagamento de complementos de pensão.
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